domingo, outubro 21, 2007

A semana do corvo: as escolhas dos gatos

Os três gatinhos
perderam os chapelinhos
puseram-se a chorar
oh mãe, mãezinha
os nossos chapelinhos
não os podemos achar

Quando vejo crias de gato ocorre-me sempre esta cantilena infantil. Eu sei que a canção fala em três gatinhos e que na figura estão quatro, mas o que interessa é o espírito da coisa. Notem que, tal como os da canção, os da fotografia não têm chapéus, e se não parecem muito afectados por isso é porque é a hora do almoço. A imagem dos gatos a comer é adequada para mais uma ressalva na interpretação dos resultados das experiências de comportamento animal de que tenho falado por aqui. Os seres humanos que participaram nas experiências, que descrevi na última contribuição, seguramente não davam o mesmo valor a um M&M que um chimpanzé dá a uma bolacha. Para os seres humanos, a experiência é sobretudo um desafio intelectual, em que a recompensa pesa pouco. Para os animais não humanos, a recompensa é primordial. É pouco provável que um animal não humano se vá empenhar numa tarefa árdua a menos que esteja mesmo interessado no que vai ganhar. Só que a ânsia pela recompensa pode levar alguns animais a desempenhos menos conseguidos, e sobretudo a uma grande diferença no comportamento de indivíduos da mesma espécie. Isso vê-se por exemplo com os indivíduos da espécie Felis silvestris catus. [... ler mais]

O estudo que refere o comportamento dos gatos é o mesmo artigo de Francisco Silva, Dana Page e Kathleen Silva, publicado na revista Learning & Behavior (ref1), que referi na contribuição anterior. Em vez dos tubos usou-se o teste da mesa com armadilhas. Um dos exemplos das configurações utilizadas é este, em que recompensas são colocadas atrás de um ancinho, tendo à frente um buraco onde a recompensa pode cair (esquerda) ou uma marca na mesa que não captura a recompensa (direita).

Vejamos então o que fizeram os gatos:
Um estudo a decorrer no nosso laboratório, do comportamento dos gatos domésticos em problemas de mesas com armadilhas, mostra um custo de estudar exclusivamente primatas. Confrontados com um problema de mesas com armadilha modificado, mas semelhante ao da figura, o gato 1 nunca respondeu correctamente acima do esperado ao acaso após mais de 200 tentativas. Este gato era insensível à presença de um buraco funcional num dos lados da mesa.

Será que isto quer dizer algo sobre as capacidades cognitivas dos gatos, ou mesmo deste gato em particular? Nem por isso:
Um segundo gato, contudo, escolheu recuperar a comida no lado mesa sem o buraco em quase 100% das tentativas após as 10 primeiras, resultados que são muito melhores que os que se obtêm com os chimpanzés.

Os autores usaram outros tipos de configurações. Por exemplo, o ancinho pode estar também à frente da armadilha e neste caso tanto faz qual dos lados se escolhe.

O gato 2 mostrou perceber o que estava em jogo.
Mais tarde, quando submetido a testes em que a comida era colocada em frente ao buraco (isto é, a armadilha era ineficaz), este gato distribuíu o seu comportamento igualmente entre ambos os lados da mesa. Esta comportamento do gato sugere que percebeu os principais causais abstractos envolvidos no problema da mesa armadilhada.

O problema do gato 1 é que parece que à vista da comida ficava de tal maneira obcecado que inibia os seus processos mentais.
Experiências adicionais mostraram que cobrindo a comida com um bocado de pano aumentava as respostas correctas do primeiro gato. Se seguirmos a forma de pensar avançada nalguns estudo da física do dia-a-dia dos chimpanzés, estes resultados preliminares sugerem que os gatos podem ter uma melhor compreensão das características causais de um problema físico do que os chimpanzés. Isto parece estranho.

Parece estranho, de facto. Tal como os autores deste estudo referem parece mais provável que haja algo errado com as premisas do raciocínio que leva a esse tipo de conclusões. Enquanto testes "positivos" como o do gato 2 são relativamente claros na interpretação de que o gato percebeu a tarefa de um modo "tipicamente humano", é óbvio pelo exemplo do gato 1 que há outros factores em jogo. O facto de os animais por vezes fazerem disparates não é só por si indicativo da falta de capacidades cognitivas.

Ficha técnica
Imagem dos gatinhos mais a sua mãe cortesia de Laitche via Wikimedia Commons.

Referências
(ref1) Silva, Francisco J.; Page, Dana M.; Silva, Kathleen M. (2005). Methodological-conceptual problems in the study of chimpanzees' folk physics: How studies with adult humans can help. Learning & Behavior 33: 47­5

sábado, outubro 20, 2007

A semana do corvo: as escolhas dos humanos

Nem sempre os corvos da Nova Caledónia parecem assim tão espertos. Mesmo a Betty, perita em improvisar ganchos, continua frequentemente a tentar primeiro com o arame direito, mesmo depois de ter sido submetida à mesma experiência várias vezes. Outras vezes a Betty, depois de fazer um gancho, agarra-o pelo lado errado. Seria fácil encarar isso como evidência de que os corvos não possuem uma compreensão de tipo humano das tarefas que executam. Mas o que é exactamente essa compreensão humana? Como é que os Homo sapiens se comportam no tipo de tarefas que temos visto os Corvus moneduloides a executarem? É aqui que entra a experiência dos chimpanzés de que falei ontem. Quando foi repetida, usando humanos adultos, estes mostraram as mesmas preferências que os chimpanzés. [... ler mais]

O artigo que analisa o lado humano da questão é da autoria de Francisco Silva, Dana Page e Kathleen Silva e foi publicado na revista Learning & Behavior (ref1). Numa tradução livre do resumo:

Examinámos em três experiências a física do dia-a-dia dos humanos (isto é, um conhecimento do mundo físico espontâneo e que ocorre naturalmente ), usando variações de problemas usados para estudar a física do dia-a-dia dos chimpanzés. Confrontados com o problema do tubo e armadilha em duas experiências, os adultos humanos mostraram uma preferência desnecessária para inserirem um pauzinho na extremidade do tubo mais afastada da recompensa, para a empurrarem para fora pela outra extremidade. Quando confrontados com problemas da mesa e armadilha os humanos evitaram, de forma desnecessária, o lado com o buraco. A semelhnaça entre o comportamento de humanos e chimpanzés nestas tarefas ilustra problemas metodológicos e conceptuais nos estudos de física do dia-a-dia dos chimpanzés e sugere explicações alternativas para o seu comportamento.

Neste estudo os investigadores analisaram muitas variantes do problema to tubo, variando a posição relativa do buraco e da recompensa. Isto porque uma explicação para o comportamento observado nos chimpanzés é que eles estariam simplesmente a recorrer à opção que significava deslocar a recompensa pela menor distância possível. Os autores consideraram três variáveis: (1) a presença de uma armadilha ou armadilhas, (2) a presença de uma armadilha ou armadilhas não funcionais, (3) a distância da recompensa à ponta do tubo.

A primeira experiência foi feita com 10 alunos de licenciatura. Em vez de bolachas a recompensa eram M&M's, os tubos eram opacos e nalguns casos nem sequer havia maneira de tirar o M&M. Eis aqui todas as configurações usadas, agrupadas de acordo com as características.

No grupo 1, ou não há armadilha ou a armadilha não interfere na progressão do M&M, que é colocado mais perto de uma das extremidades. No grupo 2 é possível extrair o M&M, colocado no centro do tubo, a partir de qualquer um dos lados. No grupo 3 as armadilhas funcionam, sendo o M&M colocado em várias posições na vizinhança de diferentes extremidades. No grupo 4 o M&M era colocado no meio, num tubo com uma armadilha funcional. O grupo 5 era uma maldade, pois o M&M cairia no buraco, de onde quer que fosse empurrado.

Obviamente que ao contrário dos chimpanzés os humanos não tiveram problemas em retirar os M&M nos grupos 3 e 4. Uma das coisas mais curiosas neste estudo foi que no grupo 5, nove dos dez indivíduos testados empurraram o M&M a partir do lado direito. Isso pode ser talvez explicado porque 8 dos indivíduos eram destros. Mas o que estava realmente em jogo era a estratégia em relação à distância à recompensa. No grupo 2, onde as armadilhas não funcionavam e a recompensa estava no meio, os testandos tentaram tantas vezes de um lado como do outro. No grupo 1 os indivíduos a serem testados escolheram preferencialmente empurrar a partir do lado mais afastado. Esse é o comportamento que a chimpanzé Megan adoptou no estudo de que falei ontem.

Os autores repetiram o teste, só que em vez de tubos e M&M usaram esquemas no papel, e pediram a 24 alunos de licenciatura para os resolverem. À partida não havia razões para resultados diferentes, à excepção talvez do grupo 5. De facto nos grupo 1 o tal comportamento à chimpanzé também se verificou. Curiosamente, no Grupo 2, onde a recompensa estaria no meio, houve uma tendência significativa de empurrar a partir da esquerda, algo que se verificou também no grupo 5. Uma das hipótese que os autores referem, e que é aquela que me ocorreu de imediato, tem a ver como a forma como estes indivíduos estariam habituados a ler, da esquerda para a direita.

Os autores fizeram ainda uma experiência com uma mesa, em que se podia transportar uma recompensa, através de um lado onde havia um buraco, mas demasiado pequeno e onde a recompensa passava sem cair, ou de um lado onde não havia buraco. Em princípio não havia razão para escolher um lado em detrimento do outro, mas em 19 alunos de licenciatura testados, 15 preferiram sempre o lado sem buraco. Isto mais uma vez não significa que os humanos não tenham percebido o problema, significa apenas que em geral somos naturalmente cautelosos. Nós sabemos que as coisas caem dentro de buracos, o buraco parece pequeno, mas para quê arriscar quando do outro lado não há buraco nenhum?

Este estudo mostra que é precisa muita cautela ao interpretar o resultado de experiências com animais. É óbvio que todos aqueles estudantes percebiam como funcionava a armadilha. Isso significa que ao contrário do que assumiram os autores do estudo dos chimpanzés, o comportamento da Megan não pode ser usado como evidência de que ela não percebe o mecanismo causal que faz com que a armadilha funcione (a gravidade).

Ora já falámos de chimpanzés, humanos, e que tal gatos? Amanhã há mais.

Referências
(ref1) Silva, Francisco J.; Page, Dana M.; Silva, Kathleen M. (2005). Methodological-conceptual problems in the study of chimpanzees' folk physics: How studies with adult humans can help. Learning & Behavior 33: 47­58

sexta-feira, outubro 19, 2007

A semana do corvo: a inteligência dos símios

O desempenho dos corvos de que falei nas contribuições anteriores tem que ser contextualizado comparando com outros animais, humanos e não humanos. Ora em 2000, um senhor chamado Povinelli e alguns colaboradores fizeram 27 experiências, para tentarem perceber se os chimpanzés seriam capazes de compreender como funcionam conceitos invisíveis, como a gravidade. Os resultados foram publicados num livro com um título sugestivo, que se pode traduzir como «A física do dia-a-dia para os antropóides: A teoria de como funciona o mundo segundo os chimpanzés.» Os resultados foram aparentemente esclarecedores, levando os autores a concluir que os chimpanzés, ao contrários dos humanos, não conseguem invocar conceitos abstractos para resolver problemas. Uma dessas experiências era particularmente interessante e relevante para a questão da inteligência dos corvídeos. [... ler mais]

A experiência que é referida por Reaux e Povinelli no tal livro sobre a física dos chimpanzés (ref1) é relativamente simples. Recorre ao uso dos chamados tubos-armadilha. Eis um esquema aqui abaixo:

Dentro do tubo há uma recompensa, por exemplo uma bolacha. Para remover a bolacha dá-se ao chimpanzé um pau para que ele possa empurrar a bolacha para fora do tubo. O chimpanzé só obtém sucesso se usar o pauzinho no lado em que a armadilha está mais próxima dele que a bolacha, caso contrário a bolacha cai num buraco de onde o chimapanzé não consegue tirá-la.

Os chimpanzés revelam grande dificuldade na tarefa e são raros os que conseguem uma taxa de sucesso superior à que se esperaria do simples acaso. Mas alguns portam-se à altura, e dos chimpanzés estudados por Reaux e Povinelli houve uma fêmea chamada Megan que conseguiu um bom desempenho. Os cientistas não ficaram no entanto muito convencidos sobre as capacidades da Megan e confrontaram-na com o dispositivo de pernas para o ar:

Nesta situação tanto faz um lado ou outro, mas a Megan em 39 de 40 tentativas optou sempre por introduzir o pauzinho por forma a fugir à ratoeira. Não havendo necessidade disso, os autores interpretaram então o resultado como significando que os chimpanzés:

não compreenderam como a armadilha funcionava no contexto das interações causais entre a ferramenta, a recompensa, e a armadilha ela mesma.

Uma frase algo pomposa para dizer que a Megan até podia compreender o efeito da armadilha, mas não percebia o conceito de gravidade. Os chimpanzés pareciam assim muito diferentes dos humanos, ou será que não? Uns anos depois, um outro estudo, sobre os primos verticais dos chimpanzés, teve resultados surpreendentes. Isso fica para a próxima contribuição.

Ficha técnica
Imagem do chimpanzé com ar sonhador no início da contribuição cortesia de Aaron Logan, retirada da sua galeria LIGHTmatter.

Referências
(ref1) Reaux, J. E., & Povinelli, D. J. (2000). The tube-trap problem. In D. J. Povinelli, Folk physics for apes: The chimpanzee's theory of how the world works (pp. 108-131). Oxford: Oxford University Press.

quinta-feira, outubro 18, 2007

A semana do corvo: Betty, a desenrascada

Eis aqui um selo da Nova Caledónia com uma uma imagem do animal emblemático da ilha o Corvus moneduloides. No selo podem ver exemplos das ferramentas que os corvos neocaledónicos produzem a partir de folhas. Estes animais são capazes de coisas fantásticas que indiciam capacidades cognitivas elevadas, e hoje vou mostrar um dos exemplos mais espantosos, relacionado com um corvo fêmea, a Betty, de que falei nas duas contribuições anteriores. Como referi na última contribuição, a Betty tinha um parceiro com mau feitio, o Abel. Um dia os investigadores que trabalhavam com estes dois corvos colocaram-nos frente a uma experiência em que, para obterem a sua comida favorita, pedacinhos de coração de porco, tinham que puxar um pequeno balde, tendo de escolher entre duas ferramentas de arame: uma direita, outra em forma de gancho. Ora o Abel fugiu com o gancho mas a Betty não se atrapalhou, mesmo nunca tendo visto arame antes desta experiência, soube o que fazer. [... ler mais]

O artigo onde o comportamento da Betty é descrito é da autoria de Alex A. S. Weir, Jackie Chappell e Alex Kacelnik e foi publicado na revista Science (ref1). Desta vez nem vou traduzir o resumo, é que não são precisas palavras basta ver o filme:

A Betty tenta umas quantas vezes com o arame direito, não consegue puxar o balde, e então decide fazer um gancho. Os corvos fazem ganchos na natureza mas não desta maneira. Frente a uma ferramenta com a forma errada e um material pouco familiar a Betty não se atrapalhou, improvisou e lá conseguiu a sua recompensa.

Ficha técnica
Imagem do selo via Wikimedia Commons.

Referências
(ref1) Alex A. S. Weir, Jackie Chappell, and Alex Kacelnik (2002). Shaping of Hooks in New Caledonian Crows. Science, Vol. 297. no. 5583, p. 981. DOI: 10.1126/science.1073433

quarta-feira, outubro 17, 2007

A semana do corvo: a física do dia-a-dia dos corvos

Como mostrei na contribuição anterior, os corvos da Nova Caledónia, espécie Corvus moneduloides, sabem escolher bem o comprimento das ferramentas que usam. Ora os cientistas decidiram testar um outro aspecto relativo à forma como estes animais lidam com as ferramentas, algo a que eles chamam folks physics, ou seja física do dia-a-dia. Os cientistas mais uma vez procuraram verificar se estes animais manifestam algum tipo de compreensão das propriedades dos objectos que estão a utilizar, e não se limitam apenas ao recurso a um conjunto de reacções pré-determinadas. Aqui ao lado está um dos animais que participou no estudo anterior, uma fêmea chamada Betty, e que foi protagonista também deste estudo. A Betty está atarefada a usar um pauzinho para fazer cair comida do outro lado de um tubo transparente. Só que a tarefa não é fácil, é que o pauzinho que está a usar tem algumas lascas na ponta e não é adequado à tarefa. Mas não se preocupem, a Betty resolveu o problema em pouco tempo, pouco mais que um piscar de olhos. [... ler mais]

O trabalho é da autoria de Jackie Chappell e Alex Kacelnik e foi publicado na revista Animal Cognition (ref1). Numa tradução livre do resumo:

Um elemento importante do uso complexo e flexível de ferramentas, em particular quando o fabrico de ferramentas está envolvido, é a habilidade de selecionar ou fabricar as ferramentas adequadas antecipando as necessidades de uma qualquer tarefa dada e uma habilidade raramente testada em não primatas. Examinamos aspectos desta habilidade nos corvos neocaledónicos, uma espécie que se sabe fazedora e utilizadora exímia de ferramentas.

O estudo é muito detalhado, e consistiu em experiências bastante diferentes das tarefas com que seriam confrontados num meio natural. Tinham que empurrar um pequeno pote com comida por forma a cair do outro lado de um tubo transparente. Para isso tinham que manobrar um pauzinho enfiado através de um orifício estreito. O esquema mostra-se abaixo.

Os investigadores deixaram os corvos familiarizarem-se com o dispositivo em quatro tentativas. Os animais não tiveram quaisquer problemas em perceber a tarefa. Continuando com o resumo:
Examinamos aqui a forma como lidam com o diâmetro das ferramentas. Na experiência 1, mostramos que quando confrontados com três raminhos soltos que podiam ser usados como ferramentas, eles preferiam o mais estreito. Quando os três pauzinhos estavam dispostos por forma a que uma estava solto e os outros dois num feixe, eles só desmanchavam o feixe quando a ferramenta preferida estava atada.

As ferramentas nesta experiência eram dadas pelos humanos e eram relativamente rígidas, não se dobrando nem se partindo. Daí que a escolha pelo pau mais fino, mais fácil de manobrar e mais leve faça sentido. Com ferramentas naturais isso não sucede: um raminho demasiado fino dobra-se ou parte-se quando se tenta empurrar algo com ele.
Na experiência 2 mostramos que eles produzem e modficam uma ferramenta com um diâmetro adequado de um ramo de árvore, de acordo com o diâmetro do orifício através do qual a ferramenta terá que ser inserida. Estes resultados juntam-se ao quadro de evidências que mostra os corvos neocaledónicos como produtores e utilizadores de ferramentas sofisticados com um nível de compreensão elevado da física do dia-a-dia

Os corvos faziam em geral um utensílio com um diâmetro próximo do da abertura, não recorrendo aos ramos mais estreitos e flexíveis. Curiosamente de vez em quando escolhiam raminhos demasiado curtos para empurrarem o potezinho até ele cair, uma prova de que esta é uma tarefa à qual não estão habituados. Na natureza, e nos exemplos que mostrei anteriormente, os corvos puxavam a comida, não a empurravam. De vez em quando os animais produziam uma ferramenta que se verificava ter problemas. Eis aqui um desses casos com a Betty:

A ponta do raminho tinha uma aparas que estorvavam os esforços da Betty em conseguir comida. Mas ela não se atrapalhou, reparem como ela retira lascas da extremidade do seu raminho:

Com a "nova" ferramenta num instante mandou o pequeno pote para fora:

Mas nem tudo na vida da Betty é fácil. Ela tem um parceiro com mau feitio que assim que viu a possibilidade de uma refeição fácil avançou imediatamente.

Voltarei à Betty na próxima contribuição com uma das coisas mais extraordinárias que jamais vi um animal não humano fazer. Curiosamente tem que ver com o tal parceiro com mau feitio.

Referências
(ref1) Chappell, J., & Kacelnik, A. (2004). Selection of tool diameter by New Caledonian crows Corvus moneduloides. Animal Cognition, 7: 121-127. DOI 10.1007/s10071-003-0202-y

terça-feira, outubro 16, 2007

O peixe-boi anão

Esta criatura adorável é um peixe-boi anão, um manatim da Amazónia brasileira. Na Amazónia já era conhecida uma espécie de peixe-boi, o Trichechus inunguis, com 2.5 a 3 metros de comprimento e 350 a 500 kg de peso. O peixe-boi é na verdade um mamífero de um grupo conhecido por sirénios. É isso mesmo, estamos a falar de sereias na Amazónia. O animal aqui ao lado, por incrível que pareça, é um adulto, com 1.3 metros de comprimento e 60 kg de peso. O animal foi "descoberto" por Marc van Roosmalen, que submeteu um artigo onde o considera uma nova espécie, mas o artigo ainda não foi publicado, pelo que para já não vou avançar com o nome proposto para a criaturinha. Agora o que me espanta nesta "descoberta" é que o animal é bem conhecido pelas populações locais, que lhe chamam simplesmente "pretinho". Aliás o crânio-tipo que Marc van Roosmalen usou para definir a possível nova espécie proveio de um animal consumido por seres humanos. Isto levanta alguns problemas, pois o animal só é conhecido das águas do rio Arauazinho, e deverão existir pouco mais de 100 destas criaturas. Para quando uma expedição científica de grande envergadura para investigar casos deste tipo? Afinal basta perguntar aos moradores.

segunda-feira, outubro 15, 2007

A semana do corvo: a ferramenta certa com o tamanho certo

Como foi referido na contribuição anterior, os corvos da Nova Caledónia, da espécie Corvus moneduloides, fabricam e utilizam ferramentas mesmo sem terem sido expostos a tais comportamentos. O comportamento é assim em parte instintivo, e só por si não significa que estes corvos sejam particularmente inteligentes. As teias de aranha, os ninhos de barro de certas vespas, algumas termiteiras muito elaboradas, são alguns exemplos, entre muitos outros, de que os animais são capazes de fazer coisas elaboradas sem que isso exija capacidades cognitivas avançadas. Para avaliar a inteligência animal um dos testes é colocar os animais em situações novas, e verificar se conseguem adaptar o seu desempenho para lá de qualquer padrão inato que possam possuir. No caso dos corvos neocaledónicos os cientistas resolveram executar a experiência que se mostra na imagem. Os cientistas forneceram pauzinhos de vários tamanhos e colocaram comida a várias distâncias dentro dos tubos transparentes. O que se procurava ver com esta experiência era se os corvos testavam pauzinhos ao acaso, ou se escolhiam de forma sistemática a ferramenta mais adequada. [... ler mais]

O trabalho que testa as escolhas dos corvos é da autoria de Jackie Chappell e Alex Kacelnik, e foi publicado na revista Animal Cognition (ref1). Os corvos usados nesta experiência não nasceram em cativeiro, trata-se de animais que foram capturados na natureza, um macho e uma fêmea, de seu nome Betty, que se pode ver na imagem no iníco da contribuição. Os animais são mantidos numa gaiola onde podem voar livremente, e durante o dia têm acesso a um pátio, com brinquedos, bebedouros onde podem tomar banho, cascalho, locais com terra onde podem escavar, e mesmo brinquedos de cachorro. Os autores referem que, poucas horas depois de terem sido colocados neste local, os corvos arrancaram pauzinhos dos troncos de árvore que lhes serviam de poleiro, e desataram a pesquisar todos os buracos e fendas das imediações, incluindo as tomadas de electricidade e os alarmes de incêndio, que tiveram que ser vedados. Embora não fosse esse o objectivo do estudo, os autores notam ainda que os animais aparentavam explorar e brincar com os vários objectos que tinham à disposição. Noto ainda que é referido que, durante as experiências que se irão descrever em seguida, os animais não foram privados nem de água nem de comida.

Ora quais foram então os resultados da experiência? Numa tradução livre do resumo:

Descrevemos uma experiência que mostra que os corvos neocaledónicos são capazes de escolher ferramentas de tamanho adequado para uma nova tarefa, sem aprendizagem por tentativa e erro. Esta espécie é quase única entre todas as espécies animais (juntamente com alguns primatas) no grau de uso e manufactura de ferramentas polimórficas na seu ambiente natural. Contudo, a flexibilidade do seu uso de ferramentas não tinha sido testada até agora. A flexibilidade, incluindo a habilidade de selecionar a ferramenta adequada a uma tarefa, é considerada como o paradigma das adaptações cognitivas complexas para o uso de ferramentas.

Os autores fizeram na verdade duas experiências, ambas com resultados interessantes.
Na experiência 1, testámos a habilidade de dois animais cativos (um macho e uma fêmea) de selecionarem um pau (de um intervalo de comprimentos providenciado) que igualasse a distância à comida colocada num tubo horizontal transparente. Ambos os animais escolheram ferramentas que igualavam a distância ao seu alvo significativamente mais vezes do que se esperaria pelo acaso.

Isto é interessante, pois significa que os animais conseguem projectar o alcance da ferramenta. Os autores notam que os corvos repartiam as escolhas entre as duas possibilidades: «ou se escolhe a ferramenta que mais se aproxima da distância ou ,em caso de dúvida, se opta pela que tem o maior tamanho.» Esta dupla estratégia foi usada 70% das vezes, quando se fosse por acaso teria sido usada apenas 19% das vezes. A fêmea cometeu mais erros que o macho (escolheu por vezes uma ferramenta mais curta do seria necessário) mas numa amostra tão pequena isso não é significativo.

A segunda experiência envolvia um teste à distância. Esta situação corresponde mais ao que se passa na natureza, em que os utensílios são fabricados longe dos orifícios a pesquisar.
Na experiência 2 usámos uma tarefa semelhante, mas com as ferramentas colocadas fora da vista do tubo de comida, de forma a que os pássaros tinham que recordar a distância à comida antes de selecionarem uma ferramenta. A tarefa foi completada apenas pelo macho, que escolheu uma ferramenta de tamanho suficiente bastante mais vezes do que se esperaria pelo acaso, mas que não mostrou uma preferência por igualar a distância.

Na verdade a fêmea não "falhou", ela nem sequer tentou. Mas não ficou inactiva, simplesmente andou pelo resto da gaiola em busca de comida, chegando mesmo a usar alguns dos pauzinhos destinados a esta experiência noutros locais da gaiola. O macho, no entanto, não mostrou grandes problemas nem hesitou muito, assim que decidia que queria aquela comida levava sensivelmente o mesmo tempo a completar a tarefa que no teste anterior. A tarefa era claramente mais difícil que a anterior, em que o macho só se enganou uma vez em vinte tentativas. Na experiência 2, em vinte tentativas, houve quatro situações em que o macho escolheu uma ferramenta demasiado curta, mas em duas delas recuperou a comida à mesma: agarrou no pauzinho pela ponta e meteu parte do bico dentro do tubo. Nos outros dois casos voltou à pequena bancada com os pauzinhos, escolheu um maior, e recuperou então a comida.

Pode parecer estranho que os animais, pelo menos na primeira experiência, tentassem por vezes escolher uma ferramenta do tamanho certo e não agarrassem logo na ferramenta maior. Os autores especulam um pouco a esse respeito. Eles notam que uma ferramenta maior pode ser mais difícil de manobrar e logo levar a que a tarefa demore mais tempo. Se nesta experiência o tempo não é um factor importante, na natureza, com competidores, e presas vivas e capazes de se moverem, pode ter alguma influência.

Alguns de vocês poderão estar a pensar que a fêmea em questão era relativamente pouco esperta, mas não desdenhem já das capacidades da Betty. Esse pássaro fez uma das coisas mais espantosas que já vi um animal não humano fazer. Falarei disso daqui a duas contribuições. Para a próxima continuarei nas questões de escolha. Os corvos neocaledónicos sabem escolher bem o tamanho, mas e quanto à espessura?

Referências
(ref1) Chappell, J., & Kacelnik, A. (2002). Tool selectivity in a non-mammal, the New Caledonian crow (Corvus moneduloides). Animal Cognition, 5:71-78. DOI:10.1007/s10071-002-0130-2.

domingo, outubro 14, 2007

A semana do corvo: capacidades inatas

A imagem mostra um corvo da Nova Caledónia, a espécie Corvus moneduloides, muito atarefado a usar um pauzinho para retirar comida de uma fenda. O uso de ferramentas existe num razoável número de outras criaturas na natureza, mas que revelam em geral pouca flexibilidade, e é muitas vezes inato. Claro que o facto de um comportamento se basear numa capacidade inata, não invalida o papel da aprendizagem e mesmo a existência de um padrão cultural. A produção e uso eficiente de ferramentas exigem obviamente um conjunto de competências motoras, e consequentes adaptações fisiológicas e neurológicas, e podem revelar-se nalguns tipos de propensão inata, mesmo entre os humanos. Todos os pais sabem que os bebés humanos começam a bater com objectos noutros objectos, e mesmo nos pais e visitas, muito antes de estarem aptos a usar martelos de forma adequada. Assim, antes de falar de cultura e aprendizagem noutras espécies, é importante perceber quais as competências de animais "ingénuos", isto é, que nunca tiveram acesso a treino. [... ler mais]

O estudo que analisa até que ponto as capacidade dos corvos neocaledónicos são inatas foi publicado num artigo de Ben Kenward e colegas na revista Nature (ref1). Os autores estudaram quatro animais jovens que tinham sido criados à mão por seres humanos desde pequenos, sem acesso a pauzinhos e coisas que tais. Os autores estudaram duas situações, uma em que mostravam o que fazer aos animais, e outra em que os colocavam sozinhos face a pauzinhos e comida escondida.

Eis aqui um exemplo de um animal, com 98 dias, chamado Uék, a quem foi mostrado o que fazer:

O corvo olhou muito atentamente para o que o ser humano fez, chegando ao ponto de agarrar a extremidade do pauzinho. Depois de comer o que o humano tinha retirado, resolveu experimentar o utensílio, que ainda estava dentro da fenda.

O animal entreteve-se a manobrar o pauzinho de forma semelhante à que viu o humano fazer. Estes corvos são criaturas que mostram curiosidade e capacidade de reproduzir o que observam. No entanto, o que fazem quando confrontados com ferramentas, sem que lhes seja mostrado como proceder? Isso foi testado com outros dois animais que nunca viram humanos ou congéneres a usarem ferramentas, nem tinham tido contacto prévio com ferramentas. O resultado é indicado nesta tradução livre do resumo do artigo:

Os corvos neocaledónicos (Corvus moneduloides) são entre as aves os mais prolíficos utilizadores de ferramentas. A variação regional na forma das suas ferramentas pode ser o resultado de evolução cultural cumulativa, um fenómeno considerado como apanágio da cultura humana. Mostramos aqui que corvos neocaledónicos juvenis criados à mão em cativeiro fabricam e utilizam ferramentas de forma espontânea, sem qualquer contacto com adultos da sua espécie e sem demonstrações anteriores por parte de humanos. A nossa descoberta é um passo crucial para produzir modelos de transmissão cultural nesta espécie, e nos animais em geral.

Ou seja, é claro que estes corvos possuem uma capacidade pré-programada para o uso e mesmo o fabrico de ferramentas. Para lá de serem capazer agarrar num pauzinho e andar com ele às voltas, os animais foram também capazes de fabricar ferramentas sem serem ensinados. Eis aqui um exemplo, em que um corvo chamado Corbeau, rasga uma tira da folha de uma planta do género Pandanus:

Eis o mesmo animal, a usar uma tira desse tipo para procurar comida.

Não tendo encontrado nenhuma comida naquele lado o animal tentou noutro sítio e foi recompensado.

O Corbeau aprendeu a fazer tudo isto sozinho.

Como referi no início, o facto de os animais conseguirem utilizar e fabricar ferramentas, sem serem ensinados, não quer dizer no entanto que não haja espaço para aprendizagem, e mesmo para um qualquer tipo de cultura. Os autores notam que as ferramentas produzidas por estes animais "ingénuos" são bastante diferentes daquelas que os animais usam na natureza. Isso, e a atenção que os animais mostraram face ao uso de ferramentas pelos humanos, sugere que possa existir uma componente cultural sobreposta a uma tendência inata. Além disso, os corvos parecem capazes de avaliar a aptidão das ferramentas para o fim que têm em vista, sem precisarem de recorrer a tentativa e erro. Mas isso terá que ficar para a próxima contribuição.

Referências
(ref1) Ben Kenward, Alex A. S. Weir, Christian Rutz, and Alex Kacelnik (2005). Tool manufacture by naive juvenile crows. Nature, 433: 121. DOI:10.1038/433121a.

sábado, outubro 13, 2007

A semana do corvo

Algures debaixo daquele pontinho azul ficam as ilhas da Nova Caledónia, um local de paisagens deslumbrantes, e lar de animais e plantas únicos. Já falei aqui de um desses animais, o corvo da espécie Corvus moneduloides. Trata-se de um corvo capaz de, não apenas utilizar, mas também fabricar ferramentas, e com capacidades cognitivas que se conhecem apenas nos seres humanos e nos grandes símios. É seguramente um dos animais mais fascinantes do planeta. A começar no próximo Domingo, e durante toda a semana, o Corvus moneduloides será o convidado de honra aqui no Cais de Gaia.

Segurança na estrada

Falei, na penúltima contribuição, de um trabalho de 2001, de um senhor chamado Joel Berger, que se disfarçava de alce para estudar o impacto da chegada de predadores, como ursos e lobos, em regiões onde os humanos os tinham exterminado dezenas de anos antes. Como referi, após um período inicial de desnorte, em que os alces tratavam os lobos como simples coiotes, e em que as mães os deixavam aproximarem-se a curta distância das crias, matando-as mesmo ao seu lado, os alces aprenderam a ser cuidadosos. Joel Berger continuou a estudar estas populações de alces, e acaba de documentar uma estratégia notável que as mães alces, como a da figura, usam para conseguirem um parto livre de ursos. Como descrevi, algumas contribuições atrás, as estradas são locais perigosos para os alces, mas pelos vistos também têm os seus benefícios, como as mães alces rapidamente descobriram. [... ler mais]

O novo artigo de Joel Berger foi publicado na revista Royal Society Biology Letters (ref1). Numa tradução livre do resumo:

As áreas protegidas são pontos de referência cruciais para aferir a mudança ecológica, contudo, certas áreas de África, Ásia e da América do Norte, que retêm grandes carnívoros, estão sob intensa pressão económica e política para acomodar uma quantidade imensa de visitantes e providenciar a infrastrutura adequada. Uma consequência indesejada é a forte modulação da interação tripartida envolvendo pessoas, predadores, e presas, uma dinâmica que coloca em questão até que ponto a interação e distribuição dos animais são independentes de influências humanas subtis.

Este é um aspecto que eu já referi a propósito das aves ciganas e dos golfinhos: o chamado ecoturismo é sobretudo turismo, e de ecológico tem muito pouco. O afluxo regular de visitantes tem sempre algum tipo de efeito pernicioso no ecossistema. No caso dos alces as modificações estão ligadas a infrastruturas construídas pelos humanos.
Aqui, eu recorro à notável sincronia dos nove dias em que nascem 90% do alces neonatos no ecossistema de Yellowstone, para demonstrar uma mudança substancial na forma como as presas evitam os predadores; os locais de parto deslocam-se das zonas com ursos pardos aversos ao tráfego, e na direcção de estradas pavimentadas. Este modificação ao longo de um decénio esteve associada com a recolonização dos carnívoros, mas nem as mães em zonas livres de ursos nem as mães fora dos períodos de parto alteraram os seus padrões de uso das paisagens.

O ênfase é meu e ilustra um ponto importante, os alces fêmeas continuam a alimentar-se nas suas áreas tradicionais, é só durante o período crítico do parto, e apenas em regiões com ursos, que se aproximam das estradas alcatroadas. Porque é que os alces o fazem? Os humanos são pouco tolerantes em relação a predadores de grande envergadura que se aproximem demasiado, daí que os ursos receiem as estradas, mantendo em geral pelo menos cerca de 500 metros de distância das bermas. É nesta "zona livre de ursos" que os alces fêmeas dão à luz. É um resultado curioso e muito interessante, com implicações que vão para além do caso dos alces.
Estas descobertas oferecem evidência conclusiva de que os mamíferos usam os humanos como escudo contra os carnívoros e levantam a possibilidade de que essa redistribuição ocorreu noutros grupos de mamíferos, devido à presença humana, tomando formas que temos ainda que adivinhar. Para interpretar o funcionamento ecológico dos sistemas dentro dos parques, temos também que levar em consideração os efeitos antropogénicos indirectos na distribuição e comportamento das espécies.

Pois é, os parques não são vitrinas em que se observa a dinâmica natural dos animais que lá vivem. São sistemas artificiais, fortemente influenciados pela presença humana. Neste caso, os humanos trazem benefícios a uma das partes (os alces), mas retiram aos ursos a possibilidade de uma refeição fácil, e inflacionam a taxa de sobrevivência dos alces jovens. Toda a dinâmica do parque, incluindo os tipos de vegetação e populações de aves é afectada, pois as populações de alces têm um impacto profundo no ecossistema. Não deixa no entanto de ser notável ver como as populações de alces se adaptaram em tão pouco tempo à presença dos predadores, e desenvolveram estratégias tão eficientes para os evitar.

Ficha técnica
Imagem via Wikimedia Commons.

Referências
(ref1) Joel Berger (2007). Fear, human shields and the redistribution of prey and predators in protected areas. Royal Society Biology Letters, no prelo. doi:10.1098/rsbl.2007.0415.

sexta-feira, outubro 12, 2007

Sopa da pedra - versão zero

Algumas pessoas têm reclamado que eu não coloco apontadores para outros blogues na barra lateral. A questão é que não gosto disso, não me apetece ter uma barra com centenas de nomes, a maioria deles entretanto desaparecidos. Se vejo algo de que gosto prefiro escrever sobre isso ou incluir um laço numa das minhas contribuições. Sendo assim, decidi iniciar uma nova rubrica. No primeiro fim de semana do mês de Novembro farei uma resenha de contribuições sobre Geologia e Paleontologia, em português, publicadas durante o mês de Outubro noutros blogues. Aceito sugestões; se tiverem encontrado algo interessante, ou se quiserem fazer publicidade ao vosso blogue, enviem uma mensagem para o email que se encontra na barra lateral, ou deixem um comentário aqui. [... ler mais]

O critério é algo vasto. As coisas que me interessam são:

  • Ruminações de especialistas do ramo, desde que minimamente interessantes, e que não se percam em considerações sobre política ou criacionismo.
  • Menções a descobertas por parte de não especialistas, tal como se faz neste blogue, desde que incluam referências e não se limitem a ser cópias de comunicados de imprensa.
  • Entusiastas que falem dos seus passeios a grutas, recolha de fósseis e calhaus, visitas a museus, etc.

Porque não uma sopa de vermes ou algo semelhante dedicada à Biologia? Bem, logo se verá. Para já isto parece-me mais fácil.

Ficha técnica
Já que algumas pessoas mostraram curiosidade em relação ao nome deste blogue aproveito para esclarecer. Não tem nada que ver com teorias da Terra como organismo vivo, nem com grupos ecológicos. Vila Nova de Gaia é uma cidade no norte de Portugal, situada na margem esquerda do Douro, junto à Foz. O Cais de Gaia é o nome da zona ribeirinha, que mostro na imagem. A fotografia é da minha autoria, e pode ser usada livremente.

A candura das presas

A imagem ao lado mostra dois cavalheiros vestidos com uma fantasia animal. Não se trata de nenhum jogo, nem de nenhuma partida, trata-se de trabalho científico muito sério. Eu falei aqui, há algum tempo atrás, do trabalho que investigadores de uma universidade brasileira faziam para habituar emas, criadas em cativeiro, aos predadores que iriam encontrar se libertadas num meio natural. Vou voltar a essa questão mas de um outro prisma: o que sucede quando predadores voltam a áreas de onde tinham desaparecido? Uma situação desse tipo está a acontecer no Parque de Yellowstone, no Estados Unidos, com a reintrodução dos lobos e com a expansão da população de ursos pardos. Uma das espécies afectadas é o alce (espécie Alces alces) e é dessa criatura que Joel Berger e colega estão disfarçados. O disfarce permitia-lhes aproximarem-se dos animais e lançarem-lhes bolas de neve ensopadas em urina humana, de lobo, e de urso. Claro que a imprensa pegou sobretudo no aspecto algo folclórico e deu pouca importância à investigação em si. Os investigadores chegaram a ser convidados a aparecer, vestidos de alce, em programas televisivos, mas recusaram, pois não lhes era dado tempo suficiente para estabelecerem a seriedade do trabalho que faziam. [... ler mais]

Esta pesquisa foi publicada num artigo de Joel Berger, Jon Swenson, e Inga-Lill Persson na revista Science (ref1). Numa tradução livre do resumo:

A extinção actual de muitos dos grandes carnívoros terrestres deixou muitas das espécies-presa existentes sem conhecimento de predadores contemporâneos, uma situação que tem paralelo à de 10,000 a 50,000 anos atrás, quando animais ingénuos encontraram pela primeira vez caçadores humanos coloizadores. Ao longo das frentes modernas de recolonização por carnívoros, os ursos castanhos (também chamados pardos) matam alces adultos ingénuos a taxas desproporcionalmente elevadas na Escandinávia, e mães alces que perderam crias para os lobos recolonizadores na região de Yellowstone na América do Norte desenvolveram hipersensibilidade aos uivos dos lobos. Embora as presas, que não tinham tido contacto com predadores durante a 50 a 130 anos, fossem altamente vulneráveis aos encontros iniciais, ajustes comportamentais para reduzir a predação surgiram apenas numa única geração. O facto de pelo menos uma espécie-presa ter aprendido rapidamente a ter cuidado com os carnívoros reintroduzidos deve mitigar medos relativos à extinção localizada de presas.

Há vários pontos neste estudo que merecem um tratamento mais detalhado. Os autores escolheram locais na Escandinávia, Alasca e na região do Yellowstone, onde podiam encontrar três tipos de populações: (i) populações livres de predadores, (ii) populações não habituadas a predadores mas que enfrentavam uma recolonização nos seus territórios por predadores, e (iii) populações em locais onde alces e lobos coexistiam há muito tempo.

Os autores submeteram os alces a toda uma série de estímulos, por exemplo os auditivos. Vestidos de alce, os autores passavam gravações de vários sons aos animais. Como controlo, verificaram que ao passarem ruído de água a correr não havia diferenças no comportamento de alces habituados e não habituados. Contudo, quando passavam sons de lobos, havia um aumento de 250% nos comportamentos de vigilância nos alces do Alasca habituados a predadores, relativamente a grupos, também do Alasca, mas habituados a viverem em regiões sem lobos. Curiosamente, os alces das regiões onde coexistem há muito com predadores são sensíveis a um outro estímulo auditivo: os crocitares de chamamento dos corvos quando encontram carcaças de animais mortos. Os alces que viviam em regiões com experiência prolongada no contacto com predadores mostravam uma resposta seis vezes maior a esses chamamentos em relação aos animais ingénuos. Faz sentido pois os bandos de corvos estão muitas vezes ligados a ursos e lobos.

A diferença entre animais ingénuos e habituados era também patente na resposta a estímulos olfativos. Aqui entra mais uma vez aquela história do disfarce de alce. Os autores fizeram 70 tentativas em que lançavam urina de lobo no meio de alces ingénuos, e em nenhuma delas os animais abandonaram o local. Aliás em 16% dos casos os alces ingénuos aproximavam-se mesmo dos odores. Os alces habituados nunca o faziam. Quando enfrentam lobos ou ursos, os alces baixam a cabeça, recolhem as orelhas, e erguem os pêlos do pescoço. Os alces habituados reagiam desta forma em 47% das vezes em que eram confrontados com os odores. Apenas em 11% dos casos é que os alces ingénuos mostraram comportamento agressivo quando confrontados com estímulos olfativos.

Como dá para perceber a resposta dos alces aos predadores é em grande parte aprendida, não é uma coisa inata. As populações sem contacto "esquecem" o que devem fazer. Isso vê-se claramente nas taxas de predação. Nas regiões em que entram em contacto com populações ingénuas os ursos têm um sucesso muito maior no que se refere à captura de alces adultos. Os autores referem, por exemplo, que numa região de Yellowstone, onde alces e ursos coexistem desde 1880, não há registos de alces adultos mortos por ursos de 1959 a 1992. Noutra região de Yellowstone, onde só recentemente começaram a aparecer ursos, 10 alces adultos foram mortos por ursos entre 1996 e 2000.

Mas após a fase vulnerável do impacto inicial, os alces mostraram ser capazes de reagir. As mães alces, em zonas onde a presença de predadores era algo recente, e que tinham perdido crias para lobos, mantinham-se muito mais vigilantes (aumento de 500%) no ano seguinte e escolhiam outros locais para darem à luz as suas crias. Desenvolviam também uma sensibilidade extrema aos uivos dos lobos, muito mais que animais de zonas onde os alces e lobos nunca deixaram de coexistir. Uma geração não foi no entanto tempo suficiente para os animais aprenderem a recear o cheiro a urina dos lobos e ursos, nem o crocitar dos corvos. Mas a reacção dos alces é encorajadora, pois os autores receavam um cenário de extinção generalizada, tal como tinha sucedido quando os caçadores humanos invadiram continentes como a Austrália e as Américas onde os animais não os temiam.

A situação no caso dos alces é apesar de tudo algo diferente da que sucedeu com os seres humanos. Os homens caçavam tudo, machos e fêmeas, juvenis e adultos. Embora lobos e ursos matem alces adultos, os alvos primordiais são sobretudo os juvenis e as crias. Isso permite aos adultos, após um contacto inicial com mortalidade elevada, ajustarem os comportamentos de uma época de procriação para a seguinte. Claro que os alces mostraram também serem animais relativamente adaptáveis e espertos, e é possível que os animais que se extinguiram no contacto com os humanos tivessem mais dificuldade nesses aspectos.

Um artigo recente mostra um desenvolvimento curioso nesta adaptação dos alces aos predadores. É a tal referência às estradas que tinha anunciado na contribuição anterior, e de que falarei amanhã. Deixo-vos para já com uma imagem que ilustra bem o tamanho destes animais:

Ficha técnica
Imagem cortesia de Dieter Wirz via Wikimedia Commons.

Referências
(ref1) Berger, J., J. E. Swenson, and I. Per-Illson (2001). Re-colonizing Carnivores and Naive Prey; Conservation Lessons from Pleistocene Extinctions. Science 291:1036-1039. DOI:10.1126/science.1056466.

quinta-feira, outubro 11, 2007

Colidir com um alce

Este é um sinal rodoviário que se pode encontrar com alguma frequência na Terra Nova, no Canadá. Não é um aviso qualquer, mas sim algo a que convém prestar mesmo muita atenção. No sinal podem ver um carro desfeito e ao lado a silhueta imponente de um alce (espécie Alces alces). A imagem do alce incólume e do carro destruído dá uma ideia daquelas cenas típicas de desenhos animados, em que ninguém se magoa, só que as coisas não são bem assim. Os embates com automóveis são muito perigosos, quer para os alces, quer para os humanos. Algo que confirmei ao encontrar alguma literatura sobre o tema, em sueco. Mais especificamente, encontrei um relatório sobre testes do comportamento de diversos modelos de automóveis em embates com alces. Claro que nesses testes os suecos não usam animais vivos, recorrem a "bonecos", mas os estragos são semelhantes aos de um alce verdadeiro. [... ler mais]

O trabalho sobre os testes de embate com alces é da autoria de Ylva Matstoms e faz parte de uma série de relatórios designada VTI meddelande (ref1). Está quase tudo em sueco mas há um pequeno resumo em inglês. A partir desse resumo é fácil perceber o que está em jogo. Na Suécia, em cada ano, cerca de 80 pessoas morrem, ou são feridas com gravidade, em acidentes envolvendo alces. No resumo em inglês não referem as baixas no lado dos alces, mas suponho que sejam em número muito mais elevado.

O álcool não é,em geral, uma causa destes acidente. Os condutores humanos envolvidos nestas colisões estavam em geral sóbrios, e suponho que os alces também. A maioria dos embates ocorre em estradas públicas, com um limite de velocidade de 90 km/hora, com o alce a aparecer de forma súbita e inesperada, não dando ao condutor tempo para se desviar, ou mesmo travar a viatura. Numa colisão com animais pequenos, os bichos batem no pára-choques do carro e são projectados. Isso não sucede com um alce. Um alce é um pouco como ter um barril de mais de meia tonelada em cima de umas andas. Face a automóvel de passageiros de tamanho normal, as pernas do alce ficam ao nível do pára-choques e o corpo do animal ultrapassa em altura o tejadilho do carro.

Eis aqui um esquema dos primeiros 60 milissegundos de uma colisão típica:

Nos primeiros instantes de um embate o infeliz alce fica de imediato com as pernas partidas, mas muito pouca energia é transferida do veículo para o corpo do animal. O verdadeiro impacto não é com o pára-choques do automóvel, mas sim com o pára-brisas, a parte estruturalmente mais fraca do veículo.

Como o alce acaba muitas vezes por esmagar o tejadilho, e lançar o pára-brisas na direcção dos ocupantes, nem mesmo o airbag e cintos de segurança ajudam por aí além num acidente destes. Daí o interesse em fazer testes de colisão. O modelo que os suecos usam é uma coisa, com o tamanho e peso aproximados de um alce, suspensa a uma altura corrpespondente ao corpo do animal.

Eis aqui o resultado de um dos testes dessa coisa chamada "Alce II".

O carro ficou bastante destruído. Mas não se pense que o modelo exagera os efeitos das colisões. Eu sabia que tinha visto algo relativo a este tema, alguns anos atrás. Após procurar um pouco na minha caixa do correio, encontrei referência a umas imagens, que circulavam por volta de 2004, sobre um acidente envolvendo um alce. Infelizmente, os endereços onde se encontrariam as imagens já não tinham nada lá. Contudo na internet nada se perde e, após pesquisar um pouco, lá encontrei o que queria. As imagens podem ser vistas aqui. O mais supreendente é que a senhora que ia no automóvel escapou apenas com ferimentos ligeiros.

Todo este enredo de alces e automóveis tem a ver com um estudo científico recente. É uma história de alces que procuram a vizinhança das estradas. Será que são suicidas? Tudo será revelado na próxima contribuição.

Ficha técnica
Sinal rodoviário obtido via Wikimedia Commons.

Referências
(ref1) Ylva Matstoms (2003). Evaluation of the moose dummy Mooses II with a view to consumer guidance. VTI meddelande 955. PDF (em sueco).

quarta-feira, outubro 10, 2007

Uma história de corvos interpretada por orangotangos

A ilustração aqui ao lado refere-se a uma conhecida fábula de Esopo, "o corvo e o jarrro." É a história de um corvo morto de sede que encontra um jarro com água, mas com apenas um pouquinho no fundo, de tal maneira que o animal não consegue lá chegar com o bico. O jarro é também demasiado pesado para que o animal o consiga virar. O corvo tem no entanto uma ideia e começa a largar pequenas pedras dentro do jarro. Tantas lança que a água finalmente sobe o suficiente para que o animal possa saciar a sua sede. Esta é mais ou menos a versão que me recordo da minha infância e a moral da história era qualquer coisa como "o engenho vale mais que a força bruta." Ora foi publicado um artigo que é uma espécie de encenação moderna desta história, só que em vez de um corvos temos como protagonistas orangotangos, em vez de sede temos a vontade de comer um amendoim, e em vez da largada de seixos temos cuspidelas de água. [... ler mais]

O trabalho com os orangotangos é da autoria de Natacha Mendes, Daniel Hanus, e Josep Call e foi publicado na revista Royal Society Biology Letters (ref1). Pelo que percebi da referência à FCT nos agradecimentos, Natacha Mendes é uma estudante portuguesa a fazer o seu doutoramento por terras germânicas. Numa tradução livre do resumo:

Investigámos o uso de água como ferramenta confrontando cinco orangotangos (Pongo abelii) com um amendoim a flutuar fora de alcance dentro de um tubo vertical transparente.

Eis aqui, em imagens, o dispositivo, e uma mãe orangotango maila sua cria. A mãe inspeciona o dispositivo, vê que o dedo não chega ao amendoim e depois desaparece da imagem.

A cria repete o comportamento da mãe, que na verdade não tinha desistido. Limitou-se a procurar em volta até encontrar uma ferramenta para tirar o amendoim.
Todos os orangotangos recolheram água de um bebedouro e cuspiram-na para dentro do tubo para ganhar acesso ao amendoim. Os indivíduos necessitaram de uma média de três bocas cheias de água para alcançarem o amendoim. Esta solução ocorreu na primeira tentativa e todos os indivíduos continuaram a usar esta estratégia de sucesso nas tentativas subsequentes.

Eis aqui os mesmo animais da sequência anterior, com a mãe a encher o tubo com a água que traz na boca.

Só que este esguicho não foi suficiente. Ele verifica de novo o alcance dos dedos e confirma que o amendoim está fora de alcance.

Parte então novamente em busca de água, que desta vez enche o tubo até colocar o amendoim ao alcance dos dedos.

Como é costume neste tipo de estudos os autores fizeram uma série de controlos:
A demora em obter a recompensa diminuíu de forma drástica após a primeira tentativa. Para além disso, a demora entre as cuspidelas em relação à primeira boca cheia também diminuíu dramaticamente na primeira tentativa para as seguintes na mesma tentativa ou em tentativas subsequentes. Condições de controlo adicional sugeriram que esta resposta não era devida à simples presença do tubo, à exitência de água no interior, ou à frustração de não conseguir a recompensa.

Adoro que tenham controlado para o "já que não te consigo agarrar cuspo-te em cima." O resumo termina com uma frase que parece a conclusão óbvia do estudo:
A aquisição súbita do comportamento, o tempo das acções e as diferenças com condições de controlo fazem deste comportamento um candidato provável para a resolução ponderada de problemas.

Fascinante. Interrogo-me quantos alunos das nossas universidades seriam capazes de resolver este problema pelo engenho e não pela força bruta. Eis aqui as imagens que mostram a mãe orangotango a recolher a sua recompensa:

O olhar triste da cria não lhe serviu de nada, a mãe comeu o amendoim. Simpatizei com o pequenito, espero que os tratadores lhe tenham dado qualquer coisa.

Ficha técnica
Ilustração da fábula de Esopo por Milo Winter (1886-1956) via etexto no projecto Gutemberg.
Imagens da experiência retiradas do filme que acompanha o artigo indicado como ref1 abaixo.

Referências
(ref1) Natacha Mendes, Daniel Hanus, e Josep Call (2007). Raising the level: orangutans use water as a tool. Royal Society Biology Letters Volume 3, Number 5, 453-455. DOI:10.1098/rsbl.2007.0198.

terça-feira, outubro 09, 2007

A guerra das escamas compridas


Esta é uma reconstrução do aspecto do Longisquama insignis, o tal réptil estranho encontrado por Alexander Sharov na Quirguízia. O animal é de facto bizarro mas assim à primeira vista não parece coisa para despertar grandes paixões, nem capaz de inflamar os ânimos. Na verdade, descrita em 1970, a criatura foi durante muito tempo encarada como um curiosidade, e só recentemente se gerou a controvérsia de que falei nas contribuições anteriores. Esta história do Longisquama é um bom exemplo de como as coisas podem ficar feias entre cientistas, quando há subjectividade na avaliação dos dados. Já referi anteriormente o artigo original de Terry Jones e colegas que falavam nas penas, e num artigo de Robert Reisz e Hans-Dieter Sues, que dizia que não era nada disso. Por incrível que possa parecer, ambos os trabalhos tinham como base o mesmo fóssil. Onde se vê até que ponto as coisas ficaram azedas é em comentários e subsequentes respostas ao artigo de Terry Jones na Science que eu não resisto a mostrar aqui. [... ler mais]

Vamos então às guerras do Longisquama (ref1). No início do primeiro comentário, Richard Prumm é algo lacónico:

O réptil do Triásico Longisquama possui apêndices integumentares em forma de lâminas que Terry D. Jones e colegas no seu relato "Penas não avianas num arcossauro do Triásico Tardio" propõem serem homólogas às penas avianas. Contudo, um exame da sua evidência sugere que esta conclusão tem falhas.

Basicamente o autor fornece uma leitura diferente das características morfológicas das estruturas e conclui que as semelhanças são superficiais. Isto baseado numa análise do fóssil que teria feito na mesma altura que a equipa do artigo de Terry Jones e colegas. A resposta de Jones e colegas é igualmente contundente e nem é preciso entrar nos detalhes:
Richard Prum diz que "examinou o Longisquama com os autores em Abril de 1999." Embora cada coautor do nosso relato tenha passado muitas horas durante 3 a 4 dias a estudar todo o material disponível o "exame" de Prum (testemunhado por todos os coautores) consistiu de 5 a 10 minutos de manuseamento apenas da placa principal. Muitas das suas outras afirmações são igualmente enganadoras ou incorrectas.

Acho que nãoé preciso citar mais nada desta parte da resposta.

Há ainda um comentário de Unwin e Benton que para lá de diferenças na interpretação morfológica das "penas", foca os aspectos filogenéticos. Os vários grupos de répteis podem distinguir-se por aberturas entre os ossos do crânio, as fenestras (janelas). Foi com base nessas aberturas, que julgou identificar no Longisquama, que Sharov o identificou como arcossauriano. Unwin e Benton dizem contudo que essas aberturas não são fiáveis no crânio do Longisquama e poderão simplesmente representar danos no fóssil. Vão ainda mais longe:
Nos vestígios conhecidos do esqueleto do Longisquama faltam todas as outras características de diagnóstico arcossauriano [a fúrcula mencionada por Jones et al. consiste em clavículas emparelhadas, tal como Sharov notou originalmente], mas exibem duas características, dentes acrodontes e uma interclavícula, que são típicas dos lepidossauros. Em consequência, suspeitamos que o Longisquama não é um arcossauro.

Ou seja chegam mesmo a propor que o Longisquama poderá estar mais próximo das cobras e lagartos (lepidossauros) que das aves e crocodilos (arcossauros). Ora Terry Jones e colegas responderam à letra:
Embora Unwin and Benton sugiram que o Longisquama não seria um arcossauro, uma fenestra anteorbital, a marca que define os Archosauria, é claramente visível na contra-placa. Contrariamente às afirmações adicionais por Unwin and Benton, a interclavícula é retida num certo número de arcossauros (por exemplo, Euparkeria) e aves, e a fúrcula do Longisquama é virtualmente idêntica à do Archaeopteryx. Devido à pobre preservação, a natureza exacta da inclusão dos dentes não pode, no presente, ser determinada a partir dos exemplares conhecidos. Concordamos com Sharov, e todos os autores anteriores, no provável estatuto arcossauriano do Longisquama.

Como se pode ver por esta amostra de citações, cada um dos lados vê as coisas que lhe dão jeito e atribui os problemas a questões de preservação do fóssil. Os argumentos são do tipo "tu vês isso mas é um disparate, eu vejo isto e eu é que sei." É óbvio que para acalmar os ânimos precisamos de mais fósseis desta criatura, que possam para já confirmar que as estruturas pertencem mesmo ao Longisquama, e que nos permitam ter mais certezas na interpretação do esqueleto.

Ficha técnica
Ilustração cortesia de Arthur Weasley via Wikimedia Commons.

Referências
(ref1) Richard O. Prum;, D. M. Unwin, M. J. Benton;, Terry D. Jones, John A. Ruben, Paul F. A. Maderson, and Larry D. Martin (2001). Longisquama Fossil and Feather Morphology. Science Vol. 291. no. 5510, pp. 1899 - 1902. DOI: 10.1126/science.291.5510.1899c.

segunda-feira, outubro 08, 2007

Nem sempre uma escama longa é uma pena

De volta ao enigmático réptil descoberto por Sharov na década de 1960, ou mais exactamente às coisas que o bicho tinha nas costas. O Longisquama era um animal pequeno, que viveria uma vida provavelmente arborícola alimentando-se de insectos nas florestas da Ásia cerca de 220 milhões de anos atrás. O mundo do Triásico em que o Longisquama insignis vivia era povoado por outros répteis fantásticos, como o Sharovipteryx mirabilis de que falei há pouco tempo, e de outros seres igualmente bizarros conhecidos como lagartos-macacos, de que falarei proximamente. Para já vou falar da controvérsia em relação às hastes que lhe saíam das costas. A discussão não demorou muito a passar para a literatura científica. Uns meses depois do artigo que dizia que as estruturas eram penas semelhantes às das aves modernas, saíu um artigo, baseado exactamente nos mesmos vestígios, a dizer que aquelas coisas de penas não tinham nada. [... ler mais]

O artigo que diz que o que se vê nas costas do Longisquama não são penas é da autoria de Robert Reisz e Hans-Dieter Sues e foi publicado na revista Nature (ref1). Numa tradução livre do resumo:

Os apêndices dorsais alongados do réptil Longisquama insignis do Triásico do Quirguistão, foram reinterpretatados recentemente como sendo o primeiro registo de penas num tetrápode não aviano — precedendo por grande margem as penas da mais antiga ave conhecida, o Archaeopteryx. Apresentamos aqui evidência de que as escamas dorsais do Longisquama não são penas, e que elas são de facto marcadamente diferentes de penas avianas. Concluímos que o Archaeopteryx permanece o mais antigo tetrápode conhecido com penas.

Não vou entrar em detalhes, os autores dizem que o veio que se vê nas estruturas do Longisquama não se assemelha à haste de uma pena e que as extremidades distais das estruturas não têm nada a ver com as das penas. Este trabalho baseia-se exactamente no mesmo fóssil que o trabalho anterior. Não deixa de ser impressionante como as conclusões podem ser tão antagónicas. Mas as reacções não se ficaram por aqui nem as respostas. Amanhã há mais.

Ficha técnica
Imagem de fóssil de Longisquama a partir do trabalho de Alexander Sharov, obtida nas páginas do seu filho Alexei Sharov.

Referências
(ref1) Robert R. Reisz and Hans-Dieter Sues (2000). The 'feathers' of Longisquama. Nature 408, 428. doi:10.1038/35044204.