quarta-feira, fevereiro 27, 2008

O regresso do monstro com dentes grandes como pepinos

Esta sorridente pequerrucha é filha de Jørn Hurum, um paleontólogo que procura restos de répteis marinhos nas costas da Noruega. A criança está a servir de escala para uma descoberta do pai, um bicharoco cuja barbatana com quase três metros ultrapassa em muito o tamanho da miúda. Eu já tinha falado anteriormente desta descoberta, um plessiossauro de pescoço curto e boca enorme, um pliossauro, que os descobridores diziam ter "dentes grandes como pepinos." Pois bem, a partir desta barbatana é possível estimar que o tamanho do animal, que terá vivido cerca de 150 milhões de anos atrás, era maior do que se pensava, andaria por volta dos 15 metros. Ou seja, este é o maior pliossauro jamais descoberto. O animal aguarda para já uma descrição mais formal, e um nome, mas Jørn Hurum, Espen Knutsen, e Hans Arne Nakrem do Museu de história Natural da Universidade de Oslo colocaram em linha algum material que reproduzo aqui. [... ler mais]

A descoberta foi feita no remoto arquipélago norueguês de Svalbard, a 78 graus de latitude Norte, e a apenas 1300 quilómetros do Pólo Norte. Eis aqui uma imagem de trabalho de campo no meio do frio e alguma neve.

Eis aqui a vermelho os elementos do esqueleto que foram recuperados até agora:

A partir destes elementos, e admitindo que não andará muito longe de outros pliossauros conhecidos, é possível reconstruir o aspecto do animal em vida. Eis aqui uma ilustração mostrando o "monstro" a tentar capturar um pterossauro.

Embora grande o monstro de Svaalbard ficava bastante aquém de uma baleia azul. Eis aqui uma ilustração, à escala, mostrando uma orca, uma baleia azul, e o pliossauro de quinze metros:

O mergulhador humano, não sei porquê, fez-me recordar o cabeçalho da Malla pelo Mundo. A Lúcia ficaria bem aconchegadinha dentro daquela bocarra.

Como tinha referido na contribuição mais antiga, este pliossauro é apenas um de entre muitos fósseis de répteis marinhos descobertos em Svaalbard. Há cerca de 40 criaturas recuperadas na ilha. Entre elas encontram-se os plessiossauros mais comuns, de pescoço comprido, mas com as mesmas quatro barbatanas, que podemos ver numa outra ilustração artística:

Já agora, alguns comunicados de imprensa que vi por aí referem este animal como sendo o maior réptil marinho de todos os tempos. Ora isso não é verdade, alguns ictiossauros eram bem maiores.

Ficha técnica
Imagens, ilustrações e inspiração para o texto a partir do comunicado de imprensa no Museu de História Natural na Universide de Oslo.

terça-feira, fevereiro 26, 2008

O turismo não é para os engripados

A senhora com roupa adequada a um bloco operatório é o mote para a contribuição de hoje. É que vou falar de chimpanzés e de "ecoturismo." Quando se visitam locais onde se podem observar chimpanzés selvagens, há um certo número de regras a observar. É preciso conservar distâncias mínimas da ordem da dezena de metros, não se deve comer ou deixar restos de comida, não se deve tossir, espirrar, ou cuspir para o chão. Estas regras não se destinam apenas a evitar actos violentos por parte dos chimpanzés, destinam-se sobretudo a evitar a transmissão de doenças contagiosas. Aquilo que nos atrai tanto nos chimpanzés e gorilas é serem tão parecidos connosco. Essa parecença torna-os susceptíveis às nossas doenças. Pessoas que se mostrem adoentadas não são admitidas nos passeios, e mesmo os que são autorizados a aproximar-se dos antropóides têm obrigatoriamente que usar máscaras cirúrgicas, como a da imagem. Estes cuidados são absolutamente necessários, pois qualquer constipação ou gripe ligeira, transmitida pelos seres humanos, é capaz de matar um chimpanzé. Mesmo com todos estes cuidados, o ecoturismo, e mesmo a simples pesquisa, podem deixar marcas devastadoras nas populações deste antropóides. Esse é o resultado de um estudo efectuado entre 1996 e 2006 na Costa do Marfim, e que foi publicado recentemente. [... ler mais]

O artigo que analisa as mortes por doença respiratória dos chimpanzés é da autoria de Sophie Köndgen e colegas e foi publicado na revista Current Biology. Numa tradução livre do resumo:

A caça comercial e a perda de habitat são factores importantes para o rápido declínio dos grandes símios. O ecoturismo e a pesquisa têm sido há muito defendidos como uma forma de fornecer um valor alternativo para os antropóides e para os seus habitats. Contudo, o contacto próximo entre os humanos e os antropóides habituados durante a pesquisa e o turismo de antropóides têm despertado receios de que os riscos de transmissão de doenças se sobreponham aos benefícios. Apresentamos aqui a primeira evidência directa de transmissão de vírus de humanos para os antropóides selvagens.

A evidência proveio da análise de cadáveres.
Amostras de tecido de chimpanzés habituados que morreram durante três surtos de doenças respiratórias no nosso local de pesquisa, na costa do Marfim, continham dois paramixovírus humanos. As estirpes virais recolhidas dos chimpanzés estavam relacionadas de perto com estirpes contemporâneas que circulam em epidemias humanas com carácter global.

O que a última frase significa é que os animais que morreram tinham sido contaminados recentemente, por uma estirpe que só podia vir dos humanos.
Vinte e quatro anos de dados de mortalidade observada em chimpanzés mostram que este tipo de surtos respiratórios pode ter uma história longa. Contrastando com esse aspecto, dados de levantamentos mostram que a presença de investigadores tem um efeito positivo bastante forte na supressão da caça furtiva em torno do local de pesquida. Estas observações ilustram o desafio de maximizar os benefícios da pesquisa e do turismo dos grandes símios ao mesmo tempo que se minimizam os efeitos negativos colaterais.

Ecoturismo é um termo enganador, o que existe é turismo. O ideal seria não perturbar os animais e não os expor desnecessariamente aos seres humanos. Infelizmente, em muitos locais os esforços de protecção não são possíveis sem contrapartidas económicas. Daí ser necessário um compromisso. Ou seja, não fiquem com um peso na consciência se vos calhar ir a África, e decidirem visitar os chimpanzés. As visitas dos turistas aos chimpanzés selvagens reduzem a caça furtiva e, devido às receitas que geram, fornecem peso político às actividades de conservação. Os autores deste artigo mostram que essa protecção acrescida compensa e muito o número de mortes por doença, mas para manter esse balanço positivo o turismo tem que ser acompanhado de muito perto, e obedecer a regras muito severas. Ver chimpanzés na natureza é tão delicado como entrar num bloco operatório.

Voltarei a este tema relativamente ao turismo antártico e aos efeitos desastrosos que está a ter nos delicados ecossistemas da Antártida.

Ficha técnica
Imagem cortesia de Timely Medical Innovations via Wikimedia Commons.

Referências
(ref1) Sophie Köndgen et al (2008). Pandemic Human Viruses Cause Decline of Endangered Great Apes. Current Biology, Vol 18, 260-264.

domingo, fevereiro 24, 2008

O bronzeado humano que branqueia os corais

Estas imagens mostram aquilo que é chamado de lixiviamento dos corais, um fenómeno de despigmentação que se deve à perda de zooxantelas, um grupo de algas simbióticas que vivem nos tecidos dos corais. Estas algas são a principal fonte de nutrientes dos corais, que sem elas acabam por morrer ao fim de algum tempo. Entre 1997 e 1998 houve um surto de lixiviamento de corais à escala planetária, ligado à subida da temperatura de superfície dos oceanos, associada ao chamado fenómeno do El Niño. Essa ocorrência trouxe o fenómeno do desbotar dos corais para as bocas do mundo, como mais uma das possíveis consequências do malfadado aquecimento global. Num cenário de aquecimento global devido ao aumento de emissões de CO2, em que o aquecimento é acompanhado de um aumento de acidez dos oceanos, o fim dos recifes de coral é apontado como uma consequência previsível. Mas o branqueamento dos corais das imagens não tem que ver com aquecimentos globais, embora seja consequência da actividade humana. Trata-se de mais uma das consequências nefastas do turismo na vida selvagem. O que matou aqueles corais foi um vulgar protector solar, aquilo que as pessoas usam para evitar queimaduras quando se expõem ao Sol. [... ler mais]

O lixiviamento dos corais devido aos protectores solares é descrito num artigo de Roberto Danovaro e colegas na revista Environmental Health Perspectives (ref1). O resumo começa com uma breve descrição do problema:

O lixiviamento dos corais (isto é, a libertação de zooxantelas simbióticas) tem impactos negativos na biodiversidade e no funcionamento de ecossistemas de recife e na sua produção de bens e serviços. Este fenómeno em crescimento a nível global está associado com anomalias de temperatura, irradiância elevada, poluição e doenças de índole bacteriana. Mostrou-se recentemente que produtos de cuidados pessoais, incluindo cremes protectores solares, podem ter um impacto nos organismos aquáticos semelhante ao dos outros contaminantes.

Os resultados dos testes dos vários tipos de cremes solares são claros:
Os protectores solares causam o lixiviamento rápido e completo dos corais, mesmo a concentrações muito baixas. O efeito dos protectores solares é devido aos filtros orgânicos de ultravioletas, que são capazes de induzir o ciclo viral nas zooxantelas simbióticas com infeções latentes.

O processo era já bastante óbvio 16 a 48 horas após a exposição aos cremes, e cerca de 96 horas depois tem-se aquele branco fantasmagórico, indicativo de um coral moribundo. A imagem abaixo mostra imagens de zooxantelas com partículas de tipo viral, com formato arrendondado e 130 nanómetros de tamanho médio, ligadas à membrana celular.


Na imagem marcada com (C) são mesmo visíveis caudas a penetrar a membrana da zooxantela. A escala são 100 nanómetros para (A,B) e 200 nanómetros para (C).
Concluímos que os protectores solares, ao promoverem infecções virais, podem desempenhar um papel potencialmente importante no lixiviamento dos corais em áreas susceptíveis a níveis elevados de uso recreativo pelos humanos.

Os vírus existem dentro das zooxantelas ou dentro do coral, mas num estado latente, só se libertam e se tornam activos quando se juntam os protectores solares. Os autores estimam que pelo menos cerca de dez por cento dos corais do mundo estão em perigo devido aos cremes protectores solares. Se juntarmos a isto outras substâncias como pesticidas, hidrocarburetos, e outros produtos que lançamos nos oceanos, que provocam o mesmo tipo de efeitos, a situação dos corais não é famosa, mesmo sem aquecimentos globais.

Deve notar-se que avisar os mergulhadores para não usarem cremes protectores solares próximo de recifes de coral é uma práctica comum. Este estudo fornece as evidências científicas que explicam porque razão esse é um bom hábito. Já agora, uma questão. Quantos dos leitores ouviram falar do aquecimento global e do possível desaparecimento dos corais, e quantos leram algo a respeito deste estudo sobre cremes solares na imprensa? Por vezes parece que os impactos na natureza só são importantes se forem consequência do aquecimento global.

Referências
(ref1) Roberto Danovaro, Lucia Bongiorni, Cinzia Corinaldesi, Donato Giovannelli, Elisabetta Damiani, Paola Astolfi, Lucedio Greci, Antonio Pusceddu (2008). Sunscreens Cause Coral Bleaching by Promoting Viral Infections. Environmental Health Perspectives, no prelo. doi:10.1289/ehp.10966.

quinta-feira, fevereiro 21, 2008

A soneca da alforreca

Este sinal, fotografado na vizinhança de uma praia australiana, adverte para a presença de alforrecas particularmente perigosas, da espécie Chironex fleckeri. Esses bicharocos são cubomedusas, mas muito maiores do que aquelas de que tenho falado aqui recentemente. Como se pode ver nesta fotografia, possuem um sino com um diâmetro comparável ao de uma cabeça humana. Já agora, não tentem fazer em casa o que estão a ver nessa imagem, agarrar assim nesses bichos, com as mãos, é só para profissionais. Cada um dos 60 tentáculos que ostenta, e que pode atingir três metros de comprimento, possui cerca de 5000 células urticantes chamadas nematocistos. Os nematocistos reagem a estímulos químicos quando entram em contacto com peixes, camarões, ou mesmo humanos, funcionando então como pequenos ferrões que injectam veneno altamente tóxico. As C. fleckeri não encaram os humanos como presas, e se nos mantivermos parados usam a visão para nos evitarem, mas um humano a nadar pode lançar-se inadvertidamente contra elas. O contacto com três metros de tentáculos são suficientes para matar um humano adulto.. Face ao razoável perigo que representam para os banhistas, não admira que estas cubomedusas fossem escolhidas como cobaias para carregarem pequenos transmissores, para que os seus padrões de actividade diária pudessem ser conhecidos em maior detalhe. Esse estudo revelou um dado curioso: estas alforrecas são grandes dorminhocas. [... ler mais]

O artigo que descreve o sono das cubomedusas é da autoria de Jamie Seymour, Teresa Carrette, e Paul Sutherland, tendo sido publicado em 2004 na revista The Medical Journal of Australia (ref1). É um artigo muito curto, com restrições quanto ao uso de imagens, mas podem acedê-las através do apontador fornecido com a referência no fim da contribuição. Ora o senhor Seymour e os seus colegas encontraram um certo número de contrariedades na sua tarefa de colocar emissores nas alforrecas. Com animais como os peixes é simples, faz-se uma incisão, coloca-se um emissor na cavidade corporal, fecha-se o corte, e pronto, basta seguir o animal. Ora, como os autores referem:

Com as alforrecas não é assim tão simples. Em primeiro lugar, as alforrecas não possuem uma cavidade corporal (possuem apenas duas camadas de células, uma ectoderme e uma endoderme, com uma camada não celular, a mesogleia, entre elas). Em segundo lugar, suturar as alforrecas não é fácil. Na verdade, é impossível!
Mas os cientistas lá se desenrascaram:
Após muitas tentativas falhadas para fixar transmissores, finalmente deparámos com um método simples mas efectivo. Colámo-los usando histoacrilíco, uma supercola usada por cirurgiões. Tudo o que é preciso é apanhar uma cubomedusa sem ser picado (uma arte em si mesma!), colar-lhe um transmissor, libertá-la e segui-la com um microfone subaquático direcional.

Os autores verificaram então que estas alforrecas eram muito activas, mas só durante o dia, das 6 da manhã às 3 da tarde. Durante esse período movimentavam-se em linha recta cobrindo qualquer coisa como 212 metros numa hora. Só que das 3 da tarde às seis da manhã, ou seja durante 15 horas, os animais quase que se imobilizavam, percorrendo em média 10 metros ou menos numa hora. Tratava-se de uma fase de relaxamento em que as cubomedusas permaneciam inactivas em contacto com o fundo do mar. Os cientistas conseguiam mesmo acordá-las, batendo no fundo do mar, ou apontando-lhes luzes, o que as levava a nadar um bocado, mas voltavam pouco depois à inactividade em repouso sobre a areia. Os bichos gostam mesmo de dormir.

Os autores do artigo especulam que o repouso poderá ter a ver com o facto de que a um animal que depende da visão será preferível conservar energia e evitar predadores (tartarugas marinhas), que não consegue ver durante a noite.

Já agora, um aparte sobre estes bichos, e o perigo que representam. Embora teoricamente uma destas cubomedusas possa matar 60 seres humanos, é preciso que a pessoa se enrole nos tentáculos. Nos últimos 100 anos houve cerca de 100 mortes registadas por envenenamento devido a Chironex fleckeri na Austrália. Na maioria das vezes, contudo, o contacto é relativamente diminuto, embora extremamente doloroso. Uma vez "nematocistozados" por uma cubomedusa nunca, mas nunca mesmo, tentem aplicar álcool na zona afectada. Quaisquer nematocistos que não tenham disparado vão fazê-lo de imediato. Não tentem também remover logo os tentáculos, ou bocados de tentáculos, em contacto com a pele, pois nematocistos que não tenham disparado poderão fazê-lo. Há que matar primeiro os nematocistos e a forma de o fazer sem que disparem é regar tudo generosamente com o vulgar vinagre de cozinha, aquele que se coloca nas saladas. Isso mesmo, na Austrália o vinagre faz parte dos estojo de primeiros socorros dos banhistas. Só depois de regar a zona afectada com vinagre, se devem remover os tentáculos, e aplicar antivenenos.

Como tenho vindo a descrever nesta série de contribuições, aquela coisa que parece um cubo de gelatina com tentáculos, é na verdade uma caixinha de surpresas. As cubomedusas veêm, namoram, e dormem. Tudo comportamentos que tendemos a ligar com a presença de um cérebro. Falarei disso em contribuições posteriores.

Ficha técnica
Sinal que adverte para a presença de cubomedusas obtido via Wikimedia Commons.

Referências
(ref1) Jamie E Seymour, Teresa J Carrette, Paul A Sutherland (2004). Do box jellyfish sleep at night? The Medical Journal of Australia, Volume 181, Number 11/12, Page 707. HTML.

terça-feira, fevereiro 19, 2008

O senhor das moscas

Esta criatura com uma boca enorme é a intanha, de seu nome científico Ceratophrys ornata, uma gigantesca rã que existe no Sul do Brasil. Com 14 centímetros de comprimento, esta rã considera comida qualquer coisa que se mova e que caiba na sua bocarra, incluindo outros animais da mesma espécie. A intanha pertence a um grupo de rãs designadas por Ceratophryinae, e que são endémicas da América do Sul, isto é, que actualmente não existem em nenhum outro continente. O cerato no nome vem do facto de parecerem ter um par de pequenos cornos por cima dos olhos, e a intanha é também conhecida por sapo de chifres. Ora esta semana foi notícia a descoberta dos vestígios fósseis de um parente muito próximo da intanha, uma criatura chamada Beelzebufo ampinga. Ba‘al Zebûb, ou "senhor das moscas," era um epíteto pejorativo dado pelos isrealitas dos tempos bíblicos a um deus filisteu designado como Ba'al Zebul, que significaria "Senhor nas Alturas." O sapo (bufo) senhor das moscas, que era na verdade uma rã, era um bicho imponente, tinha cerca de quarenta centímetros de comprimento, e poderia seguramente comer bichos maiores que moscas. O que verdadeiramente intrigou os cientistas não foi o tamanho do belzebufo, mas sim o local onde foi encontrado, muito longe dos seus parentes modernos.[... ler mais]

A descoberta é descrita numa artigo de Susan Evans e colegas na revista PNAS (ref1). Numa tradução livre do resumo:

Madagáscar tem uma fauna de sapos diversificada mas sobretudo endémica, cuja história biogeográfica tem gerado um intenso debate, alimentado por análises filogenéticas moleculares recentes e pela quase ausência de um registo fóssil. Descrevemos aqui a descoberta de um anuro do Cretácico Tardio que difere de forma marcada em tamanho e morfologia dos grupos taxonómicos malgaxes do presente, e que não se encontra relacionado com qualquer deles, nem com os habitantes previstos para a massa de terra formada por Madagáscar Seychelles e Índia quando esta se separou da África 160 milhões de anos atrás. Em vez disso, o anuro anteriormente não descrito é atribuído aos Ceratophryinae, um clado anteriormente considerados endémico à América do Sul. A descoberta oferece um raro vislumbre de uma colecção de anuros que ocuparia Madagáscar antes da radiação no Terciário de mantelídeos e microhilídeos que hoje domina a fauna de anuros.

Ou seja, as rãs com cornos entretanto extinguiram-se em Madagáscar e não são parentes próximos das rãs modernas que se encontram na ilha. Os tempos de divergência evolutiva calculados a partir de análises moleculares dos diversos grupos de rãs indicam que as rãs com cornos teriam surgido após a separação de Madagáscar com a África, pelo que o caminho entre Madagáscar e a América do Sul teria que passar pela Antártida. Isso em si não seria um problema, se as mesmas análises não indicassem também uma data mais recente que a perda de contacto de Madagáscar com a Antártida (cerca de 133 milhões de anos atrás). Os autores defendem por isso a existência de pontes terrestres:
Para além disso, a presença de um ceratophryine apoia um modelo paleobiogeográfico controverso que implica laços físicos e bióticos entre Madagáscar, o subcontinente Indiano, e a América do Sul que persistiram bem adentro do Cretácico Tardio. Sugere também que a radiação inicial de anuros hilóides começou antes do que algumas estimativas recentes propõem.

Há aqui dois tipos de incertezas. Por um lado a possibilidade que os "relógios moleculares" usados para estimar a divergência dos vários grupos de rãs estejam errados e a dar valores demasiado recentes. Por outro lado, existe uma incerteza no intervalo de tempo em que se deu a separação definitiva entre a Antártida e a Índia-Madagáscar-Seychelles. As reconstruções paleogeográficas são um pouco difíceis e há muita coisa a considerar. Por exemplo, existe um mini-continente afundado ao largo da Antártida.

Ficha técnica
Imagem de intanha cortesia de Max Gross via Wikimedia Commons.

Referências
(ref1) Susan E. Evans, Marc E. H. Jones, and David W. Krause (2008). A giant frog with South American affinities from the Late Cretaceous of Madagascar. PNAS. doi: 10.1073/pnas.0707599105.

sexta-feira, fevereiro 15, 2008

O prazer de agredir os outros

Há milhentas publicações científicas, e uma delas é a Psychopharmacology. Trata-se de uma publicação um pouco difícil, cheia de jargão e pouco acessível aos não especialistas. Confesso que tenho dificuldades nas maioria dos artigos. Uma quantidade apreciável dos escritos da Psychopharmacology tem como protagonistas roedores semelhantes aos da figura, os ratinhos da espécie Mus musculus. Nessa revista encontra-se muita coisa relativa a ratos e drogas, desde álcool a cafeína, passando por cocaína, mescalina, anfetaminas, e outras que tais. Tudo o que tenha a ver com o estímulo de centros de prazer é testado com os pobres ratos. Esses estímulos ditos positivos, como comida, drogas, ou sexo, estão ligados com um aumento dos níveis de dopamina em certas áreas do cérebro. Ora, nos artigos aceites para publicação futura na Psychopharmacology, há um que trata do facto de aparentemente muitos ratos encararem o poder dar tareia noutros ratos como uma recompensa. [... ler mais]

O artigo que estuda este aspecto da agressividade dos ratos é da autoria de Maria H. Couppis e Craig H. Kennedy, e como referi foi publicado na revista Psychopharmacology (ref1). Os autores escolheram um conjunto de ratos albinos machos, que designam por "machos residentes," e que foram colocados junto a uma fêmea quando tinham 28 dias. Ao mesmo tempo, um grupo de machos, ditos "machos intrusos," foram colocados em gaiolas, em grupos de cinco indivíduos. Quando os "machos residentes" atingiram uma idade entre 68 e 75 dias, os cientistas fizeram-lhes uma operação, introduzindo-lhes uma cânula para poderem administrar-lhes drogas em regiões específicas do cérebro, no decurso da experiência. Após uma a duas semanas, para os ratos recuperarem da operação, começou a experiência propriamente dita. O primeiro passo era a selecção de comportamento agressivo.

A agressividade foi aferida introduzindo um macho intruso na gaiola de um macho residente, depois de retirar a fêmea. A selecção da agressividade envolveu três encontros de 10 minutos entre o residente e o intruso, separados por três dias. Se um residente mostrava agressividade (mordendo ou batendo) em duas ou mais sessões de teste, era incluído na análise farmacológica subsequente (87% dos ratos eram agressivos).

Os cientistas colocaram então à disposição dos ratos uma espécie de alavanca, que podiam empurrar com o focinho. Depois de um período de treino de 2 a três semanas os ratos aprenderam que empurrando a alavanca era introduzido na gaiola um dos ratos intrusos durante cerca de 6 segundos. Os cientistas registaram então a frequência com que os ratos carregavam nas alavancas, e gravaram o festival de pancadaria que se seguia. Deve notar-se que os ratos não eram obrigados a tocar nas alavancas, faziam-no porque queriam bater nos intrusos.

Depois de terem algumas destas sessões, os cientistas iniciaram então a segunda fase da experiência: lançaram no cérebro dos ratos nos substâncias inibidoras da dopamina, e observaram o que sucedia. Estas substâncias retiravam a sensação de prazer associada ao estímulo, caso existisse.

O fim dos ratos não foi famoso:
Depois de completarem os testes de comportamento os ratos foram anestesiados profundamente com pentorbital a 800 mg/kg, e 4% paraformaldeído enviado transcardialmente. Os cérebros foram removidos e crioprotegidos pela submersão durante a noite num fixativo de 30% e 70% paraformaldeído.

Os tecidos do cérebro foram então cortados em tiras finas, e analisados. Tudo isto era para ver se a cânula que admistrava as drogas inibidoras no cérebro dos ratos estava colocada no sítio correcto. Os cientistas verificaram então que os ratos que tinha a cânula no local conveniente tinham tido uma redução muito significativa no comportamento de carregar na alavanca depois de receberem as substâncias inibidoras de dopamina. Os ratos que tinham a cânula num local fora da região dos receptores de dopamina não mostraram diferença na frequência do empurrar da alavanca antes e depois de receberem os inibidores.

Este estudo é mais complicado do que parece, pois outros estudos julgavam ter demonstrado algo do género, mas depois verificou-se que a redução no comportamento agressivo era devido a redução no capacidade motora dos ratos. Esse não foi o caso neste estudo, pois o uso de cânulas no cérebro permitiu que se usassem doses muito pequenas de inibidores. Parece de facto provado que estes ratos gostavam de bater noutros ratos, e que encaravam isso como uma recompensa. Enfim, mais um ponto em que os ratos se assemelham aos seres humanos.

Ficha técnica
Fotografia cortesia de Seweryn Olkowicz via Wikimedia Commons.

Referências
(ref1) Maria H. Couppis & Craig H. Kennedy (2008). The rewarding effect of aggression is reduced by nucleus accumbens dopamine receptor antagonism in mice. Psychopharmacology. DOI 10.1007/s00213-007-1054-y.

quinta-feira, fevereiro 14, 2008

O namoro das alforrecas

Esta imagem mostra uma fêmea de uma cubomedusa da espécie Carybdea sivickisi, no momento em que ela está a ser mãe. Aquela coisa com um especto larvar, que sai do sino, é um feixe de embriões, futuras cubomedusinhas. Trata-se de uma imagem que tem muito que ver com a data de hoje, o dia dos namorados em Portugal. Em geral, quando pensamos em namoro animal, estamos a pensar naqueles rituais de corte que se observam, por exemplo, nas aves. Na verdade, pouca atenção é devotada a esse tipo de estudos fora dos vertebrados ou alguns invertebrados ditos superiores. Algumas das criaturas injustamente negligenciadas por esse tipo de estudos são as cubomedusas. O interesse por estas criaturas não se esgota apenas nos seus lindos vinte e quatro olhos, de que falei nos últimos dias. Por incrível que possa parecer, estes organismos, aparentemente tão simples, namoram. Não há rosas, nem chocolates, mas sim uma espécie de bailado de "mãos dadas." [... ler mais]

A Carybdea sivickisi é um bichinho particularmente interessante. Possui uma espécie de tiras adesivas no topo do sino que usa para se agarrar a rochas, corais, ou mesmo algas, durante o dia, e é extraordinariamente bonita. A imagem a preto e branco não faz jus ao animal, que pode ser apreciado a cores nesta imagem na UCMP de Berkeley. Após procurar um pouco encontrei mesmo filmes, nesta página da James Cook University. Notem a forma como no final do filme se descola do local onde estava agarrada.

Os animais adultos são claramente dimórficos, isto é, há diferenças óbvias entre os sexos. Eis aqui o aspecto do macho:


Notem os quatro ropálios, as estruturas onde se encontram os olhos, um deles indicado pela letra R. O SS indica estruturas designadas por sacos subgástricos, e o G as gónadas masculinas. A fémea é algo diferente:

As estruturas indicadas pelo GP são os chamados sacos gástricos, que encerram as gónadas femininas. As setas indicam estruturas designadas pontos velares. Apenas as fêmeas sexualmente maduras apresentam esses pontos, e os machos só se interessam por essas fêmeas.

São animais pequenos, quer o macho quer a fêmea das imagens acima tinham um sino com apenas oito milímetros e meio de diâmetro. A vida amorosa das Carybdea sivickisi é descrita num artigo de Cheryl Lewis e Tristan Long na revista Marine Biology (ref1). Numa tradução livre do resumo:

Os acontecimentos do cortejamento e fertilização nos cubozoários têm recebido pouca atenção dos biólogos, e muito do que sabemos desse processos é baseado em conjecturas ou evidência anedotal escassa. Eu empenhei-me em descrever esses processos no cubozoário Carybdea sivickisi observando medusas adultas in vitro. Os adultos maduros envolvem-se em cortejamento durante o qual são transferidos espermatóforos do macho para a fêmea, que então insere os gâmetas no seu manúbrio. As fêmeas aceitaram vários espermatóforos de vários machos, e produziram apenas um feixe de embriões. Este estudo forneceu também evidência de que a presença de pontos velares evidentes na margem do sino das fêmeas era um sinal de maturidade sexual, e de que a maturidade sexual não eram atingida por nenhum dos sexos até que os indivíduos tivessem um diâmetro do sino de pelo menos cinco milímetros.

A promiscuidade da Carybdea sivickisi fêmea é compreensível. Ela tem muito amor para dar e a vida é curta quando se é uma cubomedusa. A fêmea produz um único feixe de embriões, e morre passadas uma a duas semanas.

Para encontrar imagens sugestivas bastou-me ir às páginas do projecto Árvore da vida - Cnidários, que inclui investigadores do Brasil, Japão, Canadá e Estados Unidos. Entre 24 de Julho e 27 de Agosto de 2006, esses cientistas andaram pelo Japão a observar cnidários. Algures na quarta semana, fotografaram o acasalamento de Carybdea sivickisi num aquário. Todas as imagens nesta página valem a pena, mas para o tema desta contribuição desçam até à décima imagem, logo abaixo de um senhor em fato de mergulho, atrapalhado a sair da água. Essa imagem mostra uma Carybdea sivickisi agarrada a um sargaço. Desçam então mais uma dúzia de imagens, ou então procurem por jellyfish sex, a cena rimântica é logo a seguir. Há duas imagens, mostrando um macho e uma fêmea de "mãos dadas", como um verdadeiro casal de namorados.

Voltarei às cubomedusas um destes dias, para falar mais sobre a visão, o sono, e as capacidades cerebrais destes animais.

Referências
(ref1) Cheryl Lewis & Tristan A. F. Long (2005). Courtship and reproduction in Carybdea sivickisi (Cnidaria: Cubozoa). Marine Biology (2005) 147: 477­483. DOI 10.1007/s00227-005-1602-0

quarta-feira, fevereiro 13, 2008

A corrida de obstáculos da cubomedusa

As alforrecas mais comuns pertencem a um grupo de animais chamado cifozoários, ou cifomedusas, que são aparentadas a um outro grupo de animais chamados cubozoários, ou cubomedusas. Embora à primeira vista muito semelhantes, os dois grupos de criaturas apresentam contudo diferenças importantes. O comportamento das cubomedusas faz de certa forma lembrar o dos peixes. Em vez de andarem simplesmente à deriva, as cubomedusas são capazes de nadar rapidamente, seguindo uma dada direcção, embora possam também fazer rápidas e espectaculares inversões de marcha. Muitas espécies de cubomedusas vivem em ambientes, como florestas de algas e manguezais, que são perigosos para os cifozoários. A diferença é que as cubomedusas conseguem manobrar entre os obstáculos que encontram nesses meios, um comportamento que tudo indica ser guiado visualmente. Muitas espécies de cifomedusas possuem olhos, embora se trate de estruturas muito simples. As coisas são diferentes com as cubomedusas, que possuem quatro estruturas chamadas ropálios, cada uma com seis olhos de quatro tipos diferentes. Dois dos olhos em cada ropálio possuem lentes e retinas semelhantes às dos peixes e cefalópodes, e um deles possui mesmo uma pupila móvel. A estrutura desses olhos foi discutida numa contribuição anterior, relativa à espécie Tripedalia cystophora, que se mostra na imagem. Notem dois dos ropálios, aqueles pontinhos pretos no sino da cubomedusa. Estudando animais destes em laboratório, os cientistas foram capazes de mostrar que as manobras das cubomedusas são de facto guiadas visualmente. [... ler mais]

Anders Garm e colegas descrevem a experiência num artigo na revista Journal of Experimental Biology (ref1). Numa tradução livre do resumo:

As cubomedusas possuem um impressionante total de 24 olhos de quatro tipos morfológicos diferentes. Dois desses olhos, chamados os olhos de lente superior e inferior, são olhos de tipo câmara com lentes esféricas semelhantes às dos peixes. Comparados com outros cnidários, as cubomedusas possuem também um reportório comportamental elaborado, que parece ser predominantemente guiado pela visão. Contudo o fototropismo positivo é o único comportamento até agora descrito que parece estar correlacionado com os olhos.

O fototropismo positivo é um comportamento que leva as criaturas a movimentarem-se de acordo com o gradiente luminoso aproximando-se da fonte de luz.
Explorámos a resposta evitatória de obstáculos na espécia das Caraíbas Tripedalia cystophora e na espécie australiana Chiropsella bronzie numa câmara de fluxo. Os nossos resultados mostram que o evitar dos obstáculo é guiado visualmente. O comportamento evitatório é despoletado quando o obstáculo ocupa um certo ângulo no campo visual. Os resultados não permitem conclusões sobre se a visão a cores está envolvida mas a intensidade da resposta tem uma tendência a seguir o contraste na intensidade entre o obstáculo e a vizinhança (paredes da câmara). Na câmara de fluxo a Tripedalia cystophora mostrou uma resposta evitatória mais forte do que a Chiropsella bronzie pois teve menos contacto com os obstáculos. Isto parece seguir a diferença nos seus habitats.

A Tripedalia cystophora vive em zonas de manguezais, onde os obstáculos são muito mais finos do que as pedras e árvores tombadas dos locais onde a Chiropsella bronzie vive. O artigo é acompanhado de dois filmes, ambos muito interessantes. Neste filme, uma cubomedusa da espécie Chiropsella bronzie é colocada num aquário com obstáculos escuros (de cor avermelhada). Notem no final do filme a espectacular inversão de marcha da cubomedusa.

Neste outro filme os obstáculos são transparentes abaixo de água, embora escuros acima de água. Dos tais olhos com lente esférica, o superior serve para ver acima de água e inferior abaixo. Ora a medusa fica sistematicamente presa no obstáculo no canto inferior direito. Isto é evidência de duas coisas: (1) a medusa detecta de facto os obstáculos visualmente através do contraste, e não através de um qualquer outro sentido, e (2) as manobras são controladas pelo olho inferior. Isto significa que o olho superior possui uma qualquer outra tarefa, talvez manter o animal próximo da linha de costa.

Mais medusas amanhã. Para celebrar o dia de São Valentim falarei do namoro das medusas.

Referências
(ref1) A. Garm, M. O'Connor, L. Parkefelt and D.-E. Nilsson (2007). Visually guided obstacle avoidance in the box jellyfish Tripedalia cystophora and Chiropsella bronzie. Journal of Experimental Biology 210, 3616-3623 (2007). doi: 10.1242/jeb.004044.

terça-feira, fevereiro 12, 2008

Proporcionado com precisão, ou o efeito das ondas na genitália das cracas

A 12 de Fevereiro é o dia em que se celebra o nascimento de Charles Darwin (1809-1882). Resolvi por isso falar de um artigo que cita um dos primeiros trabalhos de Darwin. Não, não se trata da famosa teoria da evolução pela selecção natural. Vou falar, isso sim, de pornografia animal. É que existe uma monografia de 1854, escrita por Darwin com o título: A Monograph of the Sub-class Cirripedia, with figures of all the species. Os cirrípedes são o grupo de crustáceos que inclui as cracas e percebes. Ora, sabe-se desde os tempos do senhor Darwin que a humilde craca se destaca entre todos os animais pelas dimensões relativas da genitália que ostenta, capazes de envergonhar mesmo o pato de lago argentino. Estamos a falar de um orgão intromitente oito vezes maior que o corpo da criatura. Embora sejam hermafroditas, e se possam fecundar a si mesmas, as cracas raramente o fazem, preferem investigar as cercanias. Sendo animais sedentários, o alcance amoroso das cracas é limitado pelo tamanho do seu orgão intromitente, pois teoricamente o número de potenciais parceiros cresce com o quadrado do comprimento do apêndice corporal em questão. Só que há limite para o alcance desse processo de investigação, que tem a ver com a natureza turbulenta do ambiente vizinho. Dependendo de onde as cracas vivem, a mesma espécie pode estar sujeita a velocidades da água varrendo três ordens de grandeza. Mas as cracas não se atrapalham, é tudo uma questão de calibrar as dimensões e a forma consoante o ambiente onde se encontram. [... ler mais]

Os cientistas modernos que continuam na senda do trabalho pioneiro desenvolvido por Charles Darwin, há mais de 150 anos, são Christopher Neufeld e Richard Palmer, tendo publicado os novos resultados na revista Proceedings of the Royal Society (ref1). Numa tradução livre do resumo:

Para o seu tamanho, as cracas possuem o pénis mais longo do reino animal (até oito vezes o comprimento do seu corpo). Contudo, como um dos poucos animais sésseis a copular, enfrentam um compromisso entre conseguir atingir mais parceiros ou controlar pénis cada vez maiores num fluxo turbulento. Observámos que os pénis de cracas da zona de marés (Balanus glandula) em zonas expostas à rebentação eram menores, mais encorpados que, e duas vezes mais massivos para o seu comprimento que, os de baías protegidas vizinhas. Para além disso, a variação na forma do pénis estava fortemente correlacionada com a velocidade máxima de rebentamento das ondas e, em todas as costas, cracas maiores tinham pénis mais encorpados de forma desproporcionada.

Eis aqui o aspecto do orgão intromitente da Balanus glandula numa zona de águas calmas. Esta espécie é um pouco mais modesta do que a craca que detém o recorde, mas mesmo assim trata-se de uma estrutura bastante longa, e algo fina.

Notem o aspecto bastante mais robusto, e um pouco mais curto, do orgão num animal da mesma espécie e de tamanho semelhante, mas que vive em águas agitadas:

Já agora, a escala são 2 milímetros. Será que as variações se devem a questões genéticas, ligadas a efeitos de selecção local? Pelos vistos não, o animal pode modificar a estrutura consoante o ambiente:
Finalmente, experiências de campo confirmaram que muita dessa variação era devida a plasticidade fenotípica: cracas transferidas para uma zona exposta a rebentação produziram pénis mais largos e dramaticamente mais curtos do que congéneres transferidos para um local protegido. Devido ao provável compromisso entre o comprimento de pénis e à capacidade de funcionar em correntes, e devido às condições sujeitas a mudanças constantes dos litorais rochosos, as cracas das zonas de maré parecem ter adquirido a capacidade de mudar o tamanho e forma dos seus pénis para melhor servirem as condições hidrodinâmicas locais. Esta dramática plasticidade na forma da genitália é uma valiosa chamada de atenção para o facto de que factores para lá dos que habitualmente guiam a diversificação genital -- escolha das fêmeas, conflito sexual e competição entre machos -- podem influenciar a forma da genitália.

Este trabalho cita Charles Darwin, em particular na tabela onde compara o tamanho relativo dos orgãos intromitentes das várias criaturas. A Balanus glandula é na verdade apenas o terceiro da tabela, com um comprimento relativo de 3.6, e outras duas cracas de géneros diferentes passam-lhe à frente, em particular a Cryptophialus minutus com o tal factor de oito. O pato de lago argentino Oxyura vittata com um factor de um aparece em quinto, logo atrás do escaravelho Aleochara tristis, com um factor de dois. Em décimo primeiro lugar aparece uma outra criatura nossa velha conhecida, os machos das aranhas do género Tidarren, cujo orgão intromitente é bastante mais modesto, apenas metade do comprimento do corpo.


Ficha técnica
Retrato de Darwin pintado por George Richmond. Imagem obtida através da Wikimedia Commons.

Referências
(ref1) Christopher J. Neufeld and A. Richard Palmer (2008). Precisely proportioned: intertidal barnacles alter penis form to suit coastal wave action. Proc. R. Soc. B. doi:10.1098/rspb.2007.1760

segunda-feira, fevereiro 11, 2008

Salmão de aviário? Não, obrigado

Esta é uma fotografia fantástica, tirada por Uwe Kils, e mostra um alevim (larva) do salmão do Atlântico, da espécie Salmo salar. Esta espécie está a sofrer um declínio acentuado na natureza, com o colapso de muitas populações. A causa é muito provavelmente a actividade humana, em particular a aquicultura. É um contrassenso, que tenho dificuldade em perceber, que se promova a criação de peixes alimentados com uma dieta carnívora, numa época em que todas as reservas de peixe estão em colapso. Para cada quilo de salmão produzido nas explorações de aquicultura intensiva são necessários três quilos de outros peixes, peixes esses que são pescados nos oceanos. Mas o efeito nocivo da aquicultura do salmão vai muito para além do fomento da pesca para fazer ração de salmão. Como eu discuti numa contribuição anterior, o piolho de peixe que se escapa das quintas de salmão dizima os juvenis dos salmões selvagens, ou seja, a criação do salmão tem um impacto brutalmente negativo na sobrevivência do salmão na natureza. A verdadeira dimensão de todos os impactos nocivos da aquicultura foi avaliada num estudo recente: em áreas onde há salmões de aviário a taxa de sobrevivência do salmão selvagem cai por mais de 50%. [... ler mais]

O artigo que discute a taxa de sobrevivência dos salmões é da autoria de Jennifer Ford e Ransom Myers e foi publicado na PLoS Biology (ref1). Numa tradução livre do resumo:

O impacto da aquicultura do salmão nos salmão e truta selvagens é um tema de debate aceso em todos os países onde as quintas de salmão e os salmões selvagens coexistem. Estudos mostraram claramente que salmões escapados das explorações se reproduzem com as populações selvagens, para detrimento das populações selvagens, e que as doenças e parasitas passam dos salmões das explorações para os salmões selvagens. Tem faltado, contudo, uma compreensão da importância desses impactos ao nível da população. Neste estudo, utilizámos dados existentes sobre as populações de salmão para comparar a sobrevivência de salmão e truta que nadam através explorações de aquicultura de salmão, no início do seu ciclo de vida, com a taxa de sobrevivência de populações próximas, que não estão expostas a explorações de aquicultura. Detectámos um declínio significativo na sobrevivência de populações que estão expostas a quintas de salmões, correlacionado com o aumento da produção de salmão de aquicultura em cinco regiões. Combinando as estimativas regionais de forma estatística, encontramos uma redução na sobrevivência ou abundância de populações selvagens de mais de 50% por geração em média, associadas com a aquicultura de salmão. Muitas das populações de salmões que investigámos apresentam uma abundância reduzida de forma dramática, e reduzir as ameaças que enfrentam é necessário para assegurar que sobrevivam. Reduzir os impactos da aquicultura de salmão no salmão selvagem devia ter uma prioridade elevada.

Os salmões são criaturas que na natureza sobem facilmente barreiras nos rios, daí que não seja de estranhar que escapem aos milhões das explorações de aquicultura. Estudo prévios, tal como o dos piolhos de que falei anteriormente, analisavam apenas um dos aspectos em que os aviários de salmão interferiam com as populações selvagens. Este estudo representa um levantamento sistemático e é conclusivo, e preocupante. É que o aumento projectado para a densidade das explorações pode facilmente elevar estes 50% a 73% nos próximos anos. Já agora, convém não confundir a aquicultura intensiva com outras formas de aquicultura que fazem parte da paisagem portuguesa, e que têm uma longa história de exploração sustentada. O que está em causa é esta produção de tipo industrial para benefício de um grupo relativamente pequeno. O salmão de aviário tem um impacto em termos de emprego muito menor que o salmão natural. A aquicultura intensiva de salmão é explorada sobretudo pelas multinacionais, e emprega muito pouca mão de obra. Não vale a pena colocar em risco a sobrevivência das espécies selvagens para satisfazer a ganância das multinacionais.

Eu não aprecio salmão, peixe para mim é a sardinha, o sável, ou a lampreia. Se gostam de salmão, comam-no mas, por favor, apenas aquele que é apanhado na natureza.

Nota: Um dos autores do estudo, o doutor Ransom Myers, morreu em Março do ano passado. Era uma das vozes mais importantes nas questões relativas à conservação dos oceanos.

Ficha técnica
Imagem de alevim de salmão cortesia de Uwe Kils, via Wikimedia Commons

Referências
(ref1) Ford JS, Myers RA (2008). A global assessment of salmon aquaculture impacts on wild salmonids. PLoS Biol 6(2): e33. doi:10.1371/journal.pbio.0060033

domingo, fevereiro 10, 2008

A beleza dos cnidários do Brasil

As alforrecas, também conhecidas por águas-vivas e mães-d'água, referem-se sobretudo a um grupo de animais designado por cifozoários. Há outros animais muito semelhantes mas mais raros, os cubozoários, aquelas cubomedusas com 24 olhos de que falei numa contribuição anterior, e que levam uma vida mais activa, semelhante em muitos aspectos à dos peixes. No mundo existem cerca de 200 espécies de cifozoários, e no Brasil, com 22 espécies, encontra-se cerca de 10% dessa diversidade. Dos cubozoários, o número de espécies descritas ronda as 20, das quais 4, ou seja 20% da diversidade, se pode encontrar no Brasil. Enquanto procurava algo em português que me servisse de referência, quanto à tradução dos termos técnicos referentes a estes animais, tive a grata surpresa de encontrar um artigo, não só com um utilíssimo glossário, mas também profusamente ilustrado com belíssimas fotos de cifomedusas e cubomedusas. Não resisti a mostrar aqui uma dessas fotos da autoria de Álvaro Migotto, que mostra uma Tripedalia cystophora. Esta é a mesma espécie de que tinha falado anteriormente. O ropálio onde se encontram os olhos, pequeníssimos, é visível nesta imagem. [... ler mais].

O artigo em questão é da autoria de André Morandini e colegas e saiu na revista Iheringia (ref1). O resumo inclui uma incrível lista de espécies:

As espécies de Cubozoa e Scyphozoa costeiras que ocorrem no Brasil são descritas, com base em espécimes de coleções de museus e exemplares recém-coletados. Chaves de identificação e um glossário também são apresentados. As espécies descritas são: Aurelia sp.; Cassiopea xamachana Bigelow, 1892; Chiropsalmus quadrumanus (Müller, 1859); Chrysaora lactea Eschscholtz, 1829; Drymonema dalmatinum Haeckel, 1880; Linuche unguiculata (Swartz, 1788); Lychnorhiza lucerna Haeckel, 1880; Nausithoe aurea Silveira & Morandini, 1997; Phyllorhiza punctata von Lendenfeld, 1884; Stomolophus meleagris Agassiz, 1862; Tamoya haplonema Müller, 1859 e Tripedalia cystophora Conant, 1897.

Segue-se uma lista das características de cada uma dessas espécies, acompanhada de imagens. Mesmo a fotografia que mostro no início é já um pouco um abuso dos direitos de autor, pelo que me fico por essa. Para verem as restantes, e para terem acesso ao utilíssimo glossário, usem o apontador fornecido com a referência abaixo.

Referências
(ref1) Morandini André C., Ascher Denise, Stampar Sergio N., Ferreira João Fernando V. (2005). Cubozoa and Scyphozoa (Cnidaria: Medusozoa) from Brazilian coastal waters. Iheringia, Sér. Zool. 95(3): 281-294. doi: 10.1590/S0073-47212005000300008.

sábado, fevereiro 09, 2008

As vantagens de casar com a prima

Aparentemente, entre os humanos, parece que uma das formas de aumentar o sucesso reprodutivo é casar com um primo relativamente próximo. Pelo menos é o que acontecia com os islandeses entre 1800 e 1965. Este é o resultado de um trabalho curioso, com um corolário algo estranho: os citadinos, pelo menos antes dos processos de controlo de natalidade modernos, não teriam menos crianças por morarem na cidade, mas sim porque seria menos provável que casassem entre primos. [... ler mais]

O estudo é descrito num artigo de Anna Helgason e colegas na revista Science (ref1). Numa tradução livre do resumo:

Estudos prévios relataram que casais humanos aparentados tendem a produzir mais crianças que casais não aparentados mas foram incapazes de determinar se esta difereça é biológica ou resulta de variáveis socioeconómicas. Os nossos resultados, obtidos a partir de todos os casais conhecidos na população islandesa nascidos entre e 1800 e 1965, mostram uma significativa associação positiva entre parentesco e fertilidade, com o maior sucesso reprodutivo observado em casais relacionados ao nível de primos de terceiro e quarto grau. Devido à relativa homogeneidade socioeconómica dos islandeses, e à observação de diferenças altamente significativas na fertilidade de casais separados por intervalos muito pequenos de parentesco, concluímos que esta associação tem muito provavelmente uma base biológica.

Entre 1800 e 1824 as islandeses que casavam com um primo de terceiro grau tinham em média quatro crianças e nove netos. Por outro lado, no mesmo período, islandesas cujo marido era apenas primo em oitavo grau ou ainda mais afastado, tinham em média três filhos e sete netos. Entre 1900 e 1924 os resultados eram em tudo semelhantes. Para primos em terceiro grau a média era de três crianças e sete netos, enquanto para oitavo grau ou mais afastado era de duas crianças e cinco netos. Os autores encontraram num entanto um custo ao nível de primos em primeiro ou segundo grau. Convém ser aparentado, mas não demasiado.

Há muitas variáveis que podem jogar neste tipo de associação, tais como alguém que provém de uma família com mais crianças vai ter mais terceiros primos, ou a possibilidade de que mulheres que casam com os primos comecem a ter filhos mais cedo, mas os autores rebatem-nos com exemplos relativos a sextos e sétimos primos, onde se nota uma diferença significativa. A origem é assim provavelmente genética. Isto tem uma implicação curiosa, que os autores notam no final do artigo:
A formação de regiões urbanas densamente habitadas, que oferece uma vasta oferta de potenciais esposos com parentesco afastado, é uma situação nova para os humanos, em termos evolucionários. Notamos que se a relação entre parentesco e fertilidade tem uma base na biologia reprodutiva humana, então segue-se que o tipo de transição demográfica experimentado pela população islandesa pode contribuir directamente para o abrandar do crescimento populacional noutros locais, através do aumento relativo de casais com parentesco distante.

Ou seja, as pessoas têm menos filhos nas cidades porque é menos provável que casem com os primos.

Já sabem, se gostam de crianças e querem ter uma família numerosa, procurem a vossa cara-metade entre os vossos primos, ou primas, de terceiro ou quarto grau.

Ficha técnica
A imagem do bebé que uso no início da contribuição (uma menina) foi cedida pelo fotógrafo (o pai) à Wikipedia.

Referências
(ref1) Helgason A, Pálsson S, Guðbjartsson DF, Kristjánsson Þ, Stefánsson K. 2008. An association between the kinship and fertility of human couples. Science 319:813-816. doi:10.1126/science.1150232

sexta-feira, fevereiro 08, 2008

Um cubo com 24 olhos

Isto que estamos a ver aqui são olhos, nada mais nada menos do que seis. A marca preta horizontal representa um décimo de milímetro, logo são olhos minúsculos. Os quatro pontinhos mais pequenos são pequenas fossas com pigmentos e células fotorreceptoras no centro, mas os dois maiorzinhos possuem retinas e lentes. O dono destes olhos tem mais 3 conjuntos iguais a este. Ora que criatura é esta que possui 24 olhos? Não se trata de um peixe, nem de um cefalópode. Pertencem a um animal que tendemos a considerar muito mais primitivo: estes são os olhos de uma cubomedusa, da espécie Tripedalia cystophora, um animal com apenas 10 milímetros que vive nos mares das Caraíbas. As cubomedusas possuem o sino em forma de cubo, e não arredondado, mas fora isso são gelatinosas, quase transparentes, com tentáculos de células urticantes, como a maioria das alforrecas. Só que em vez de uma vida de predador à deriva, os olhos das cubomedusas permitem-lhes ter uma vida de nadadores activos. O mais espantoso é que o fazem com um sistema nervoso muito rudimentar, sem um verdadeiro cérebro. [... ler mais]

O artigo que descreve estes olhos surpreendentes é de Dan Nilsson e colegas e foi publicado na revista Nature (ref1). Numa tradução livre do resumo:

Os cubozoários, ou cubomedusas, diferem de todos os outros cnidários por possuirem um comportamento activo, semelhante ao dos peixes, e um aparelho sensorial elaborado. Cada um dos quatro lados do animal carrega um pedúnculo sensorial (o ropálio), no qual evoluiu um agregado bizarro de diferentes olhos. Sabe-se há muito tempo que dois dos olhos em cada ropálio se assemelham aos olhos de animais superiores, mas a função e desempenho desses olhos permeneceram desconhecidos. Mostramos aqui que as lentes das cubomedusas contêm um gradiente finamente ajustado do indíce de refracção produzindo uma imagem livre de aberração. Isto demonstra que mesmo animais simples foram capazes de evoluir a óptica visual sofisticada previamente conhecida apenas em alguns dos filos bilatérios complexos.

Ou seja em cada face as cubomedusas possuem dois olhos com lentes tão "sofisticadas" como as dos cefalópodes e dos peixes. O olho inferior, mas não o superior, possui mesmo uma pupila móvel:

Na imagem da esquerda o olho foi exposto a níveis correspondented a luz solar directa durante 10 minutos, na da direita a escuridão total durante 10 minutos. A pupila demora cerca de 1 minuto a ajustar-se.

Contudo, há algo de supreendente nestes olhos: as cubomedusas poderiam produzir imagens com um detalhe semelhante às dos peixes, mas não o fazem.
Contudo, a posição da retina não coincide com a da imagem nítida, levando a campos de recepção muito amplos e complexos nos fotorreceptores individuais.

O plano focal da lente nestes animais fica muito atrás da retina, ou seja, a imagem obtida pelo animal é fortemente desfocada.
Argumentamos que isto pode ser útil em olhos que sirvam uma única tarefa visual. Estas descobertas indicam que o conseguir campos de recepção complexos pode ter sido uma das forças originais por detrás da evolução das lentes animais.

Esta frase pode parecer algo obscura, mas não é tanto assim. O que se passa é que as cubomedusas são um pouco limitadas ao nível do processamento neuronal. Nos vertebrados, coisas como reconhecimento de estruturas, e movimentos de grande escala, são interpetados por redes neuronais, mas as cubomedusas não possuem essa opção. O que as cubomedusas poderão estar a fazer com a desfocagem é remover as altas frequências espaciais no seu campo de visão (isto é as estruturas pequenas). Esta espécie de filtro permitiria às cubomedusas verem as estruturas estacionárias no seu ambiente, e ao mesmo tempo tornar invisíveis o plâncton e pequenas partículas suspensas na água. Os olhos com lente seriam assim úteis para que as cubomedusas possam evitar obstáculos nos ambientes costeiros onde vivem. Em vez de obter a melhor imagem possível, e delegar as várias tarefas de processamento dessa imagem ao cérebro, as cubomedusas delegam diferentes tarefas visuais aos seus quatro tipos diferentes de olhos.

Este pode ter sido um passo importante na evolução dos olhos na generalidade dos animais. A curiosidade neste tipo de visão é que uma grande acuidade visual não é necessariamente um requisito: para algumas tarefas uma imagem esborratada funciona melhor. As cubomedusas mostram que lentes, em tudo adequadas a fornecerem grande detalhe e sensibilidade, poderão não ter evoluído exactamente para proporcionar esse detalhe e sensibilidade.

Claro que os cientistas planearam experiências para testar as capacidades visuais das cubomedusas, observando como evitam os obstáculos. Falarei nisso numa próxima contribuição. Já agora, um aviso. Se virem uma cubomedusa não pensem em procurar-lhe os olhos sem terem muito cuidado. O veneno destas criaturas é doloroso e pode mesmo ser mortal.

Referências
(ref1) Dan-E. Nilsson, Lars Gislén, Melissa M. Coates, Charlotta Skogh and Anders Garm (2005). Advanced optics in a jellyfish eye. Nature 435, 201-205. doi: 10.1038/nature03484.


(obrigado pela correcção Rodrigo.)

quarta-feira, fevereiro 06, 2008

Espécies novas é com os insectos

Na imagem podemos ver uma obreira da espécie Lordomyrma azumai, uma pequena formiga, de 3 a 5 milímetros de comprimento, que é relativamente rara no Japão, onde é conhecida como Mizogashira-ari-zoku. O género Lordomyrma incluía, até recentemente, cerca de 20 outras espécies conhecidas, e todas elas se localizavam na Nova Guiné, Austrália, ou ilhas adjacentes. Esta distribuição algo disjunta levantava algumas questões. Ou havia algo de especial na forma como as Lordodmyrma japonesas aí chegaram, ou então havia espécies de Lordodmyrma por descobrir algures no sudoeste asiático. Aliás, descobrir não é a palavra exacta, é mais descrever, existiam relatos de espécies na Península e no arquipélago da Malásia. Ora duas espécies foram recentemente descritas, uma num dos locais habituais, na Melanésia, mas a outra num dos locais antecipados, no Bornéu. [... ler mais]

As duas novas espécies de formiga são descritas por Andrea Lucky e Eli Sarnat na revista Zootaxa (ref1). Numa tradução livre do resumo:

Descrevem-se duas espécies de Lordomyrma, L. reticulata sp. nov. do Bornéu da Malásia, e L. vanua sp. nov. das Fiji. A ocorrência da primeira no Bornéu expande o alcance deste género, levando-o a incluir o sudoeste asiático, e a descrição de uma nova Lordomyrma nas Fiji indica que a amostragem do género permanece ainda por completar, mesmo em regiões onde se considerava ser bem conhecido. Tomadas em conjunto, estas duas descobertas sugerem que as Lordomyrma ocupam uma distribuição menos disjunta e estão mais amplamente distribuídas do que se suspeitava anteriormente. É necessária uma amostragem mais ampla para revelar quer a diversidade quer a distribuição deste género críptico.

Como é referido no artigo, a descoberta de novas espécies neste género não será muito supreendente. Na maioria, trata-se de formigas pequenas, que vivem na folhagem morta de florestas húmidas, em colónias de tamanho modesto (da ordem das centenas de indivíduos). Além disso não são agressivas, são tímidas e fogem quando perturbadas.

A descoberta de uma nova espécie de insectos não é nada de por aí além, julga-se que haja milhões por classificar. Neste caso, no entanto, o que me atraiu foi a beleza da foto da L. vanua, no Myrmecos Blog.

Ficha técnica
Fotografia da Lordomyrma azumai tirada por Hirotami T. Imai, Masao Kubota, via Japonese Ant Image Database.

Referências
(ref1) Andrea Lucky e Eli M. Sarnat (2008). New species of Lordomyrma (Hymenoptera: Formicidae) from Southeast Asia and Fiji. Zootaxa 1681: 37­46. PDF.

segunda-feira, fevereiro 04, 2008

O musaranho-elefante gigante

Esta criatura de focinho comprido é um macroscelídeo das montanhas da Tanzânia, um grupo de animais conhecidos localmente por senguis. São criaturas que se alimentam de insectos, e cujas afinidades filogenéticas permaneceram enigmáticas durante muito tempo. Supôs-se inicialmente que seria parentes próximos dos musaranhos, daí serem conhecidos por musaranhos-elefante. Filogenias modernas colocam-nos, no entanto, num grupo de animais chamados de Afrotheria, que inclui também os elefantes, os hiraxes, os sirénios, e o porco-formigueiro. Até há pouco tempo apenas se conheciam 15 espécies de senguis, cujo peso variava entre 30 e 500 gramas, número que aumentou este mês. O animal da imagem pertence a uma espécie nova, Rhynchocyon udzungwensis, e é um verdadeiro gigante, com um peso por volta dos 700 gramas. Foi pela primeira vez visto em 2005, em imagens tiradas por câmaras-armadilhas, e em Março de 2006 foram capturados os primeiros exemplares. [...ler mais]

O sengui gigante é descrito num artigo de na revista Journal of Zoology (ref1). Numa tradução livre do resumo:

Descreve-se uma nova espécie de sengui ou musaranho-elefante. Foi descoberto nas montanhas Udzungwa na Tanzânia em 2005. Os senguis (ordem Macroscelidea, super-coorte Afrotheria) incluem quatros género e 15 espécies de mamífero que são endémicos da África. Esta descoberta é uma contribuição significativa para a sistemática desta pequena ordem. Com base em 49 imagens de uma câmara, 40 avistamentos, e cinco exemplares capturados, o novo sengui é diurno e distingue-se das outras três espécies de Rhynchocyon por possuir uma face pardo-acinzentada, peito e queixo de cor amarelo pálido ou creme, flancos laranja-avermelhados, dorso cor de vinho, e coxas e partes traseiras negras. O peso corporal da nova espécie é de cerca de 700 gramas, que é 25–50% maior que qualquer outro sengui gigante. O novo Rhynchocyon é conhecido apenas de duas populações que cobrem cerca de 300 km² de floresta de montanha. Tem uma densidade estimada em 50-80 indivíduos por km².

O destaque a negrito implica que existirão apenas uns poucos milhares destes animais. O processo que levou ao reconhecimento formal da espécie eliminou uns quantos. Tal como se descreve no interior do artigo:
Os animais capturados foram fotografados, medidos, pesados, eutanizados se vivos, e preparados como peles e crânios de estudo-padrão de museu.

Esperemos que num futuro mais ou menos próximo estas pelas não sejam tudo o que resta destes "gigantes".

Ficha técnica
(ref1) F. Rovero, G. B. Rathbun, A. Perkin, T. Jones, D. O. Ribble, C. Leonard, R. R. Mwakisoma, N. Doggart (2008). A new species of giant sengi or elephant-shrew (genus Rhynchocyon) highlights the exceptional biodiversity of the Udzungwa Mountains of Tanzania. Journal of Zoology 274 (2), 126-133. doi: 10.1111/j.1469-7998.2007.00363.x.

sábado, fevereiro 02, 2008

A indefesa cherovia neozelandesa

Esta imagem mostra uma planta chamada cherovia, de seu nome científico Pastinaca sativa, que antes da introdução da batata cumpria, de certa forma, esse papel em muitas partes da Europa. Hoje em dia ainda é cultivada em Portugal, na Serra da Estrela. A cherovia tem a cor do nabo, o aspecto da cenoura, e um sabor que é uma mistura de ambos. Eu gosto bastante, mas a maioria das pessoas que conheço não a apreciam. As cherovias têm a sua praga, a lagarta da cherovia, de seu nome científico Depressaria pastinacella. As plantas estão, contudo, protegidas por um tipo de compostos chamados furanocumarinas, que são altamente tóxicos para os insectos. As lagartas da cherovia têm uma tolerância limitada a esse veneno, podendo ingerir até 5% do seu peso dessas toxinas, o que reduz sobremaneira os danos que podem causar na planta. As cherovias acompanharam os humanos na sua expansão pelo mundo, e existem formas bravias em vários locais fora da Europa. Na Nova Zelândia, as cherovias, que aí chegaram há mais de um século, tiveram durante muito tempo uma vida fácil, pois a D. pastinacella ficou para trás. As tais furanocumarinas vêm com custos altos de produção, daí que não seja de espantar que as cherovias neozelandesas apresentem defesas químicas menos eficientes, embora seja também possível que essa fosse uma característica das primeiras cherovias que aí chegaram. Até recentemente isso não era um problema. Só que em 2004 as coisas mudaram, a Depressaria pastinacella invadiu as ilhas. As cherovias da Nova Zelândia já não estão a salvo em nenhum local, em toda a parte há insectos vorazes. [... ler mais]

O artigo que trata das deliciosas cherovias e de lagartas é da autoria de Art Zangerl e colegas e foi publicado na revista Proceedings of the National Academy of Sciences (ref1). Numa tradução livre do resumo:

A interação entre a Depressaria pastinacella (lagarta da cherovia) e a cherovia brava (Pastinaca sativa), na sua Europa natal e no midwest dos Estados Unidos, onde existem há muito tempo como espécies não nativas, caracteriza-se pelo ajuste químico dos fenótipos, mediado de forma ostensiva por respostas selectivas recíprocas.

O termo fenótipo descreve as características físicas que decorrem da expressão dos genes de um indivíduo (o genótipo). A frase destacada a negrito significa apenas que a planta e da lagarta estão envolvidas numa espécie de guerra química, em que a quantidade de veneno produzida pela planta limita os estragos da lagarta.
O aparecimento inical da D. pastinacella na P. sativa na Nova Zelândia em 2004 providenciou uma oportunidade para quantificar o impacto selectivo de um herbívoro que coevoluíu e para calibrar as taxas de resposta fitoquímica na planta hospedeira. Em 2006 as lagartas reduziram em 75% a produção de sementes nas populações da Nova Zelândia, e em 2007 as infestações aumentarem a severidade em todas as populações excepto uma.

O resultado destas infestações dramáticas foi uma alteração nas pressões a que planta está sujeita para se conseguir reproduzir. Embora se tenham passado apenas três a quatro anos, a pressão evolutiva é tremenda: é que entre as partes mais atacadas pela lagarta da cherovia estão as zonas florais. As lagartas comem as flores da planta, e os tais 75% por cento querem dizer simplesmente isso: em três quartos das plantas nem uma flor escapou ao apetite voraz das lagartas. Essas plantas têm uma aptidão reprodutiva igual a zero, não contribuem com genes para as gerações seguintes. É um dos exemplos mais dramáticos de pressão evolutiva observados na natureza. O potencial desta situação para estudos científicos é enorme. Os investigadores vão poder seguir as mudanças na química das plantas à medida que infestação progride. É que todas as outras variáveis, tais como clima, solos, espécies vegetais vizinhas, permanecem mais ou menos constantes. A única mudança é a presença dos insectos como agente de seleção.

A situação não é exactamente nova. As cherovias chegaram à América do Norte no início do século XVII, mas as lagartas demoraram mais dois séculos a chegar. Dois dos autores deste estudo, Berenbaum e Zangerl, tinham estudado a guerra entre cherovias e lagartas nos Estados Unidos, usando exemplares de cherovias com mais de 100 anos guardados em museus, tendo verificado que os índices de furanocumarinas eram muito mais baixos nos exemplares mais antigos. Os autores sugeriram então que a resposta evolutiva das plantas à infestação foi o aumento da produção de furanocumarinas. A Nova Zelândia vai permitir medir a escala temporal em que essa adaptação se desenvolve. É uma oportunidade incrível.

Ficha Técnica
Imagem inicial de cherovias cortesia de Goldlocki via Wikimedia Commons.
Imagem da lagarta dentro da cherovia cortesia de Art Zangerl.

Referências
(ref1) A. R. Zangerl, M. C. Stanley, and M. R. Berenbaum (2008). Selection for chemical trait remixing in an invasive weed after reassociation with a coevolved specialist. Proceeding of the National Academy of Sciences. doi: 0710280105v1-0.

sexta-feira, fevereiro 01, 2008

O hipócrita, dissoluto e avarento crocodilo

Isto é chamado um COCODRILO devido à sua cor de açafrão (crocus). Reproduz-se no Rio Nilo: um animal com quatro patas, anfíbio, geralmente com 30 pés de comprimento, armado com dentes e garras horríveis. Tão grande é a dureza da sua pele que nenhum golpe pode magoar um crocodilo, nem mesmo se pesadas pedras forem lançadas sobre o seu dorso. Permanece na água durante noite, em terra durante o dia. Incuba os seus ovos em terra. O macho e a fêmea fazem turnos.

Esta é a descrição do crocodilo no bestiário de que tenho falado nos últimos dias. A figura que a acompanha, é absolutamente deliciosa. As orelhas (ou serão cornos?), e o focinho não são de estranhar, o animal é colocado no grupo das bestas e não no grupo dos répteis. Não nos devemos esquecer da data deste escritos, século XII, e que autor do texto baseia a sua descrição em relatos de outras pessoas. Não é por isso de espantar que a representação não seja lá muito fiel em relação ao aspecto do animal em questão. Na verdade, no que se refere aos crocodilos, as imprecisões vêm de muito atrás. O bestiário refere, por exemplo, que de entre os animais o crocodilo é o único que move a mandíbula superior, mantendo-se a inferior quieta. O próprio Aristótoles incorreu nesse erro. Mas o que mais aprecio é a descrição que o bestiário faz das propriedades dos excrementos do animal. [... ler mais]
O seu excremento providencia um unguento com o qual as prostitutas velhas e cheias de rugas untam as suas faces e as tornam belas, até que o suor dos seus esforços o lava do rosto.

O tradutor do bestiário, Terence White, faz algumas considerações sobre o tema. Aprendi assim que Galeno considerava que o excremento de crocodilo era bom para as sardas, que Aécio recomendava que fosse queimado e o fumo enviado para dentro de buracos de cobra, e que Quiranides defendia que os dentes eram afrodisíacos, desde que fossem retirados do animal vivo.

Como é hábito, o bestiário faz considerações de índole moral, e é muito severo com as pobres criaturas:
As pessoas hipócritas, dissolutas e avarentas possuem a mesma natureza que este bruto...

Mais sobre crocodilos nas próximas contribuições, mas sob uma perspectiva mais moderna.


Ficha técnica
Imagem retirada da referência abaixo.

Referências
The book of beasts. Editor Terence Hanbury White. New York: Putnam, 1960. Páginas na Universidade de Wisconsin.