terça-feira, fevereiro 19, 2008

O senhor das moscas

Esta criatura com uma boca enorme é a intanha, de seu nome científico Ceratophrys ornata, uma gigantesca rã que existe no Sul do Brasil. Com 14 centímetros de comprimento, esta rã considera comida qualquer coisa que se mova e que caiba na sua bocarra, incluindo outros animais da mesma espécie. A intanha pertence a um grupo de rãs designadas por Ceratophryinae, e que são endémicas da América do Sul, isto é, que actualmente não existem em nenhum outro continente. O cerato no nome vem do facto de parecerem ter um par de pequenos cornos por cima dos olhos, e a intanha é também conhecida por sapo de chifres. Ora esta semana foi notícia a descoberta dos vestígios fósseis de um parente muito próximo da intanha, uma criatura chamada Beelzebufo ampinga. Ba‘al Zebûb, ou "senhor das moscas," era um epíteto pejorativo dado pelos isrealitas dos tempos bíblicos a um deus filisteu designado como Ba'al Zebul, que significaria "Senhor nas Alturas." O sapo (bufo) senhor das moscas, que era na verdade uma rã, era um bicho imponente, tinha cerca de quarenta centímetros de comprimento, e poderia seguramente comer bichos maiores que moscas. O que verdadeiramente intrigou os cientistas não foi o tamanho do belzebufo, mas sim o local onde foi encontrado, muito longe dos seus parentes modernos.[... ler mais]

A descoberta é descrita numa artigo de Susan Evans e colegas na revista PNAS (ref1). Numa tradução livre do resumo:

Madagáscar tem uma fauna de sapos diversificada mas sobretudo endémica, cuja história biogeográfica tem gerado um intenso debate, alimentado por análises filogenéticas moleculares recentes e pela quase ausência de um registo fóssil. Descrevemos aqui a descoberta de um anuro do Cretácico Tardio que difere de forma marcada em tamanho e morfologia dos grupos taxonómicos malgaxes do presente, e que não se encontra relacionado com qualquer deles, nem com os habitantes previstos para a massa de terra formada por Madagáscar Seychelles e Índia quando esta se separou da África 160 milhões de anos atrás. Em vez disso, o anuro anteriormente não descrito é atribuído aos Ceratophryinae, um clado anteriormente considerados endémico à América do Sul. A descoberta oferece um raro vislumbre de uma colecção de anuros que ocuparia Madagáscar antes da radiação no Terciário de mantelídeos e microhilídeos que hoje domina a fauna de anuros.

Ou seja, as rãs com cornos entretanto extinguiram-se em Madagáscar e não são parentes próximos das rãs modernas que se encontram na ilha. Os tempos de divergência evolutiva calculados a partir de análises moleculares dos diversos grupos de rãs indicam que as rãs com cornos teriam surgido após a separação de Madagáscar com a África, pelo que o caminho entre Madagáscar e a América do Sul teria que passar pela Antártida. Isso em si não seria um problema, se as mesmas análises não indicassem também uma data mais recente que a perda de contacto de Madagáscar com a Antártida (cerca de 133 milhões de anos atrás). Os autores defendem por isso a existência de pontes terrestres:
Para além disso, a presença de um ceratophryine apoia um modelo paleobiogeográfico controverso que implica laços físicos e bióticos entre Madagáscar, o subcontinente Indiano, e a América do Sul que persistiram bem adentro do Cretácico Tardio. Sugere também que a radiação inicial de anuros hilóides começou antes do que algumas estimativas recentes propõem.

Há aqui dois tipos de incertezas. Por um lado a possibilidade que os "relógios moleculares" usados para estimar a divergência dos vários grupos de rãs estejam errados e a dar valores demasiado recentes. Por outro lado, existe uma incerteza no intervalo de tempo em que se deu a separação definitiva entre a Antártida e a Índia-Madagáscar-Seychelles. As reconstruções paleogeográficas são um pouco difíceis e há muita coisa a considerar. Por exemplo, existe um mini-continente afundado ao largo da Antártida.

Ficha técnica
Imagem de intanha cortesia de Max Gross via Wikimedia Commons.

Referências
(ref1) Susan E. Evans, Marc E. H. Jones, and David W. Krause (2008). A giant frog with South American affinities from the Late Cretaceous of Madagascar. PNAS. doi: 10.1073/pnas.0707599105.

1 comentários:

João Carlos disse...

Caio, eu me recordo de uma recente (bem... não tão recente assim...) notícia no EurekAlert sobre uns fósseis de uma espécie de caju, encontrados na Europa, também mais semelhantes à espécie sul-americana do que à variedade africana. O artigo deduzia que teria havido uma migração dessa espécie através da Europa, daí à América do Norte e, posteriormente, para a América do Sul.

Isso tudo me pareceu bastante duvidoso, uma vez que seria muito mais provável que os cajueiros africanos evoluíssem em uma direção e os sul-americanos noutra, a partir da separação da América do Sul da África, e não por meio de uma complexa migração (que, de resto, não explica o fato dos cajueiros sul-americanos não serem de duas espécies distintas: as de tipo africano e as mutantes, supostamente vindas da Europa).

Agora, aparece essa rã chifruda em Madagascar... A flora e a fauna malgaxes são sempre surpreendentes, mas até os fósseis?... Os alemães costumam dizer que "Belzebu se esconde nos detalhes" e me parece que algumas das mais queridas teorias sobre a deriva das placas tectônicas anda a merecer uma re-avaliação...