domingo, julho 02, 2006

A hemipenectomia da aranha

Um dos leitores deste blog, após o meu relato das dimensões dos gâmetas masculinos das Drosophilas, enviou-me uma referência, não muito antiga, sobre os orgãos sexuais das aranhas macho da espécie Tidarren sisyphoides. Como eu referi na contribuição anterior, os aspectos reprodutivos são fundamentais para compreender a evolução. Se eu insisto nestes temas isso não se deve necessariamente a alguma tara minha, mais ou menos doentia, ou a algum tipo de obsessão com pornografia animal. [... ler mais]

Os predadores invertebrados são a este respeito fascinantes, pois os machos têm muitas vezes que evitar serem uma refeição. As aranhas são particularmente interessantes. Para fecundar as fêmeas as aranhas macho utilizam pedipalpos, que são estruturas modificadas do seu dispositivo bucal. Esses pedipalpos são "carregados" com esperma que o macho procura introduzir na abertura ventral da fêmea. Para os machos da Tidarren sisyphoides trata-se de uma manobra particularmente arriscada, pois como se pode ver na imagem o macho (indicado pela seta) é muito menor que a fêmea. A barra corresponde a 1 milímetro.


Os pedipalpos destas aranhas macho são gigantescos quando comparados com as dimensões do animal: em conjunto correspondem a cerca de um quinto da massa do animal. A imagem abaixo mostra esses palpos do macho, indicados pelas setas. A barra representa 1 milímetro. Estas coisas realmente impressionam quer pelo peso, quer pela dimensão.


Mas o realmente assombroso não são as dimensões dos pedipalpos, mas sim o que a Tidarren sisyphoides faz a um deles. Isso é descrito num artigo de Margarita Ramos, Duncan Irschick e Terry Christenson nos Proceedings of the National Academy of Sciences (ref1). Numa tradução livre do resumo:

Uma consequência potencial do dimorfismo no tamanho dos sexos é o conflito entre características. Por exemplo, uma estrutura que evolui para a reprodução pode prejudicar o desempenho de outras actividades (por exemplo a locomoção). Fornecemos aqui evidência, quantitativa, de um animal que ultrapassa um compromisso evolucionário, gerado por uma variação de escalas diferencial e dimorfismo de tamanho entre sexos, através da remoção obrigatória de um orgão reprodutivo não danificado, aumentando assim dramaticamente o seu desempenho locomotor.

O ênfase é meu, e já estão a ver de onde vem o título da contribuição.
O género de aranhas Tidarren (Araneae, Theridiidae) é interessante porque, nalgumas espécies que apresentam dimorfismo extremo entre os tamanhos dos sexos (com os machos representando cerca de 1% da massa total da fêmea), os machos, antes de atingirem a maturidade sexual, removem voluntariamente um dos seus dois pedipalpos (orgãos copulatórios modificados) que são grandes de umas forma desproporcionada (cada um representa cerca de 10% da massa corporal num adulto). A remoção ou do pedipalpo esquerdo ou do direito parece ser ao acaso.

Os autores não descrevem no resumo o processo, mas os detalhes são interessantes. O pedipalpo não cai por si mesmo, é arrancado. A aranha prende-o num fio de seda e torce-o até o arrancar. O resultado é o que se mostra abaixo, um único pedipalpo numa posição mais central.


A questão é: o que leva os machos a fazerem um coisa dessas, que pelo menos de um ponto de vista humano (masculino) parece tão arrepiante? Foi isso que os autores investigaram e a resposta é simples: um melhor desempenho atlético!
Investigadores anteriores tinham feito a hipótese que a remoção do pedipalpo poderia aumentar o desempenho locomotor, uma previsão que tinha permanecido por testar. Verificámos que, para machos Tidarren sisyphoides, a velocidade máxima aumentava (44%) de forma significativa e a resistência aumentava (63%) de forma significativa após a remoção do pedipalpo. Para além disso, as aranhas com um só pedipalpo percorriam distâncias superiores em cerca de 300% antes de cairem de exaustão e tinham uma maior taxa de sobrevivência após o esforço que as que tinham dois pedipalpos.

Não resisto a referir alguns dos detalhes. Os autores investigaram o aspecto da exaustão perseguindo os machos com um pincel até eles "caírem para o lado" e não se moverem mais. Com dois pedipalpos isso acontecia em média após 17 minutos e 30 segundos (±55 segundos). Com apenas um pedipalpo após 28 minutos e 30 segundos (±45 segundos). Das aranhas que caíam com exaustão, morria uma em cada duas no caso dos dois pedipalpos, e apenas uma em cada oito para o caso de um pedipalpo.

Aqueles que pensam que os cientistas em geral têm uma vida social mais rica desenganem-se. Imaginem estes cientistas que, ao descreverem o seu trabalho, dizem: "passo o dia a perseguir aranhas com um pincel para ver as vantagens da remoção dos orgãos sexuais". Os autores concluem com:
A remoção do pedipalpo pode ter evoluído no macho Tidarren devido a um aumentar da capacidade de procurar por fêmeas (maior resistência e sobrevivência após a retirada), e para ultrapassar outros machos na teia da fêmea (maior velocidade máxima). Os nossos dados também ilustram como a evolução de conflitos pode resultar na evolução de um novo comportamento.

Alguns leitores do outro lado do Atlântico estarão possivelmente a interrogar-se se os futebolistas brasileiros, antes do jogo com a França, não poderiam ter feito um sacrifício deste tipo pelo seu país. Mesmo que os jogadores estivessem de tal forma empenhados, isso não mudaria muito as coisas. Embora os brasileiros que eu conheço aqui em Gaia me digam que no Brasil é tudo grande, pondo as aranhas à escala humana, seria preciso remover algo com cerca de nove quilos.

Nota: após investigar um pouco descobri que o leitor que me enviou a referência possivelmente encontrou-a a partir da Pharyngula de PZ Myers, mais exactamente aqui (em inglês). PZ Myers fala aí também de um outro artigo, desta vez sobre o uso de pornografia em estudos de peixes, do qual falarei amanhã (afinal sempre sou capaz de ter uma pequena tara).

Referências
(ref1) Ramos M., Irschick D.J., Christenson T.E. (2004) Overcoming an evolutionary conflict: Removal of a reproductive organ greatly increases locomotor performance. PNAS 101(14):4883-4887.Laço DOI.

2 comentários:

JulianaSphynx disse...

Não sei de que maneira procurei pelo meu blog e vim parar aqui

Anónimo disse...

Caraca! Amei esse site!!!!