Hoje vou falar de ovelhas, cientificamente designadas por Ovis aries. Tendemos a falar das ovelhas com expressões depreciativas acerca da sua inteligência e mentalidade de rebanho, ou, na sua versão cordeiro, como paradigma da inocência. Pois bem, essa é uma avaliação redutora e injusta. As ovelhas são criaturas sensíveis, que conseguem reconhecer as caras de outras ovelhas, e mesmo de seres humanos, e são capazes de guardar esses rostos durante muito tempo em memória. [... ler mais]
A razão porque resolvi falar da memória dos ovinos tem a ver com o artigo sobre as cobras e da evolução dos primatas de que falei aqui anteriormente. Posso ter parecido demasiado crítico na minha apreciação, mas isso não quer dizer que eu não tenha encontrado muita coisa de que gostei no artigo. Na verdade recomendo-o vivamente. Embora o nexo causal com as cobras não me pareça particularmente forte, a autora faz um bom apanhado das outras hipóteses, em particular das suas fraquezas. Um dos pontos que a autora discute tem a ver com as elevadas capacidades cognitivas supostamente necessárias para reconhecer e interagir com indivíduos num grupo alargado. A frase que utiliza para rebater esta "inteligência social" é particularmente deliciosa. Numa tradução livre:Primeiro, deve explicar porque razão as ovelhas (Ovis aries), que não são conhecidas por possuirem cérebros grandes, são apesar disso capazes de reconhecer visualmente e recordar tantos indivíduos quantos aqueles presentes num bando típico de babuínos, mesmo após um ano de separação.
E aqui a autora cita dois artigos, que vou discutir no que segue. Um deles é um artigo de Kendrick e Baldwin na Science (ref1) que mostra que as ovelhas possuem alguns processos mentais em comum com os humanos. Numa tradução livre do resumo:Para investigar se o córtex temporal de uma espécie de não primatas contém células que respondam à visão de rostos, efectuou-se um estudo, em ovelhas conscientes, das respostas de neurónios nesta região do cérebro à visão de rostos. Das 561 células em que as respostas foram registadas, 40 responderam preferencialmente a rostos. Diferentes categorias dessas células foram influenciadas pela dominância (provavelmente indicada pela presença e tamanho dos chifres), raça e familiaridade, e rostos ameaçadores como as de humanos e cães. Estes resultados mostram que as células que respondem preferencialmente a rostos estão presentes no córtex temporal de uma espécie de não primatas, e que as respostas destas células são influenciadas por factores relevantes para a interação social.
Este é um resultado de certa forma surpreendente. Os nossos cérebros tratam os rostos de forma diferente de outros objectos. Temos porções do cérebro destinadas a reconhecer rostos de outros seres humanos de forma rápida e eficiente. As ovelhas também o fazem, e de forma bastante eficiente também. Há estudos que mostram que as ovelhas conseguem mesmo avaliar emoções e preferem seres humanos sorridentes a seres humanos carrancudos. O que é ainda mais interessante é que as ovelhas são capazes de recordar estes rostos mesmo quando os indivíduos a que pertencem se ausentam durante longos períodos de tempo. Isso é discutido num outro artigo, de Kendrick e colegas na Nature (ref2). Este artigo tem como segundo título a frase:A descoberta de uma memória notável mostra que afinal as ovelhas não são assim tão estúpidas.
O resumo explica melhor as coisas:O cérebro humano desenvolveu mecanismos neuronais especializados para o reconhecimento visual de rostos, que nos fornecem uma habilidade notável para discriminar, recordar e pensar acerca de muitas centenas de indivíduos diferentes. As ovelhas também reconhecem e são atraídas por ovelhas e humanos individuais pelos seus rostos, pois possuem sistemas neuronais espacializados semelhantes nos seus lobos temporais e frontais para auxiliarem nesta importante tarefa social, incluindo um maior envolvimento do hemisfério direito do cérebro. Mostramos aqui que uma ovelha pode recordar 50 rostos diferentes de outras ovelhas durante dois anos, e que circuitos neuronais especializados mantêm o registo selectivo de rostos individuais de ovelhas e humanos mesmo após longos períodos de separação.
O que os autores fizeram foi, usando recompensas de comida, treinar 20 ovelhas a recordarem rostos de 25 pares de ovelhas, que inicialmente desconheciam, em fotografias. As ovelhas são particularmente boas a identificarem os rostos. O processo de treino envolvia vistas de frente de diferentes ovelhas. Após o treino as ovelhas identificavam os rostos familiares mesmo quando eram mostrados de perfil, algo para o qual não tinham sido treinadas. Os autores em seguida verificaram se as ovelhas eram capazes de reconhecer esses rostos após intervalos de tempo que podiam chegar a 800 dias sem olhar para as fotografias. Só após 601 dias os investigadores notaram que o desempenho das ovelhas começava a piorar. Este é um resultado notável. Mas Kendrick e colegas não se ficaram por aí.
Os autores verificaram que quando mostravam às ovelhas imagens de ovelhas ou humanos que faziam parte dos seus grupos sociais o cérebro das ovelhas mostrava actividade no mesmo grupo de células que armazena as memórias de rostos em humanos e macacos. Além disso, mostrando às ovelhas imagens de ovelhas do seu rebanho que se encontravam ausentes há algum tempo, as ovelhas mostraram reconhecê-las balindo para essas imagens da mesma forma que faziam para as ovelhas que se encontravam no rebanho, mas a actividade cerebral era menos intensa do que a verificada quando olhavam para rostos de ovelhas que continuavam no rebanho. Há diferentes níveis de organização entre as células cerebrais envolvidas no processo. Um grande número de células identifica rostos em geral, um conjunto menor identifica rostos familiares, e um grupo ainda menor responde a indivíduos específicos muito familiares, Os autores interpretam os resultados das várias experiências admitindo que o processo de memorização enfraquece lenta mas progressivamente ao longo do tempo, e que as ovelhas ausentes passarão eventualmente de uma categoria em que um indivíduo origina a resposta neuronal mais elevada até a uma categoria em que o indivíduo é classificado apenas como um "rosto conhecido".
A forma como as ovelhas reconhecem outras ovelhas e guardam as memórias dos rostos dessas ovelhas é muito semelhante à utilizada pelos seres humanos. Isto levanta questões acerca de "pensamento consciente" nas ovelhas, pois se elas são capazes de recordar, então também poderão responder emocionalmente a indivíduos ausentes. Será que quando estão paradas a ruminar com um ar que interpretamos como vazio e estúpido, elas não estarão pelo contrário embrenhadas em pensamentos a recordar outras ovelhas ausentes? Já agora, será que é assim tão mau ser a ovelha negra do rebanho?
Ficha técnica
Imagem do rebanho cortesia de Jaime Vásquez Sapunar, retirada de Wikimedia Commons, desta página.
Imagem do cordeiro preto sobre a ovelha branca cortesia do utilizador Fasten de Wikimedia Commons, retirada desta página.
Referências
(ref1)KM Kendrick and BA Baldwin (1987). Cells in temporal cortex of conscious sheep can respond preferentially to the sight of faces. Science, Vol. 236. no. 4800, pp. 448 - 450.Laço DOI.
(ref2)Keith M. Kendrick, Ana P. da Costa, Andrea E. Leigh, Michael R. Hinton and Jon W. Peirce (2001). Sheep don't forget a face. Nature 414, 165-166.Laço DOI.
quarta-feira, julho 26, 2006
As ovelhas sonham com ovelhas ausentes?
Por CDG laço permanente
Etiquetas: Biologia
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