sexta-feira, junho 30, 2006

Algo gigante na pequena mosca do vinagre

As pequenas moscas do vinagre, como o exemplar de Drosophila melanogaster desta imagem, que medem pouco mais de dois milímetros e meio nas fêmeas e um pouco menos nos machos, detêm um característica sexual impressionante. Todos nós estamos habituados a pensar nos gâmetas femininos, os óvulos, como células gigantescas, ricas em nutrientes e imóveis, e nos gâmetas masculinos como pouco mais que um bocado de ADN que se move. Esta diferença em geral traduz-se naquilo que se designa por anisogamia, em que um número muito elevado de gâmetas masculinos compete para fertilizar os gâmetas femininos, muito mais raros. [... ler mais]

A Drosophila melanogaster encontra-se numa situação em que, embora ainda se possa falar em anisogamia, ela não é tão vincada como noutras espécies animais. As D. melanogaster machos possuem espermatozóides com cerca de 1.75 milímetros de comprimento, quase tão longos como eles, e cerca de 300 vezes maiores que os espermatozóides humanos. Deve notar-se que as drosófilas fêmeas acasalam várias vezes e armazenam o esperma dos diferentes machos em pequenas "bolsas", e há vários trabalhos que sugerem que algum tipo de competição pós-acasalamento entre os espermas das várias proveniências poderá explicar esta tendência para o gigantismo.

Os 1.75 milímetros da D. melanogaster parecem impressionantes, mas algumas espécies do género Drosophila vão muito para além disso. Este minúsculo novelo, com umas poucas dezenas de milésimo de milímetro, não parece nada por aí além, mas quando "desenrolado" tem cerca de 6 centímetros de comprimento. Pela conversa acima devem estar a ver a que corresponde. Pois é, trata-se de um espermatozóide de uma outra espécie de Drosophila, a D. bifurca. Os gâmetas masculinos nesta espécie são mais de 20 vezes maiores que o animal que os produz, e cerca de 1,000 vezes maiores que aqueles produzidos pelos seres humanos. Trata-se de um recorde no reino animal, e levanta algumas questões interessantes. Para nos situarmos um pouco nestes temas convém recuar até 1948. Nesse ano, A. J. Bateman iniciou a teoria moderna da seleção sexual com base num trabalho sobre a Drosophila melanogaster. Bateman mostrou que na mosca da fruta havia uma diferença marcante entre as fêmeas e os machos no que se refere à curva que relaciona o sucesso reprodutivo com o sucesso de acasalamento. Este gradiente de selecção sexual era quase nulo para as fêmeas e bastante acentuado para os machos. Apesar das dimensões algo elevadas dos seus gâmetas masculinos, a Drosophila melanogaster corresponde ainda à situação de anisogamia e a teoria previa que os gradientes de seleção natural de ambos os sexos se deveriam aproximar à medida que se convergia para a isogamia, pois ao produzirem espermatozóides maiores os machos produziriam também menos, e os gâmetas femininos tornavam -se assim menos raros. Este efeito era designado por paradoxo do esperma gigante. Contudo as coisas não são assim tão simples e nestes casos nada melhor que testar as previsões da teoria com as observações.

As espécies no género Drosophila possuem uma variação nas dimensões dos seus gâmetas masculinos superior ao que se encontra no resto do reino animal, pelo que são particularmente adequadas a este tipo de estudos. Adam Bjork e Scott Pitnick escolheram por isso várias espécies dentro do género Drosophila para um estudo apresentado na revista Nature (ref1). As espécies por eles escolhidas foram a D. melanogaster cujos espermatozóides medem um "míseros" 1.87 milímetros, D. virilis com 5.70 milímetros, D. lummei com 8.04 milímetros, e claro a D. bifurca com uns fabulosos 58.29 milímetros.

A Drosofila bifurca está já muito próxima daquilo que se designa por isogamia, com uma diferença relativamente pequena no tamanho relativo entre os gâmetas masculinos e femininos. A imagem abaixo mostra o pequeno "rolinho" copiado 6 vezes e colocado junto a uma imagem de um óvulo de Drosophila bifurca:

Numa tradução livre de parte do primeiro parágrafo do artigo de Adam Bjork e Scott Pitnick:

Os nossos resultados confirmam o paradoxo do esperma-gigante mostrando que a diferença entre sexos nos gradientes de seleção natural diminui quando o tamanho do esperma aumenta. Contudo, uma solução para o paradoxo é providenciada quando esta descoberta é interpretada em conjunto com a "oportunidade para selecção" e "oportunidade para selecção sexual". Para além disso, mostramos que a maior parte da variação nas medidas de intensidade da seleção se explica pelas dimensões do esperma e investimento relativo na produção de esperma.

Os conceitos de oportunidade para a selecção são parâmetros que medem a variação do sucesso reprodutivo relativo entre machos e fêmeas. Curiosamente o aproximar dos gradientes era devido essencialmente à variação entre as fêmeas, e não nos machos como se esperava da teoria. O que os autores verificaram era que, enquanto em animais que se podiam considerar anisogâmicos, como a D. melanogaster, havia pouca variação no sucesso reprodutivo entre fêmeas, em criaturas quase-isogâmicas como a D. bifurca aumentava significativamente a variação no sucesso reprodutivo das fêmeas. As razões para isso são discutidas brevemente pelos autores no artigo. Há muitos aspectos diferentes a considerar.

Não há apenas variação nas dimensões dos gâmetas, há também variação acentuada no número. A D. bifurca apresenta um quociente entre produção de esperma e ovos de 5.8 para 1 contra os 29.3 para um da D. melanogaster. A redução na quantidade acontece porque o esperma gigante exige um razoável investimento energético, sobretudo para um animal tão pequeno. Para além da própria massa dos gâmetas, é preciso investir também numa grande massa testicular: nos machos de D. bifurca os testículos representam cerca de 11% do peso do corpo (desidratado). Há ainda o factor do elevado tempo de maturação: os machos da D. bifurca só estão férteis 17 dias após a eclosão enquanto as fêmeas apenas necessitam de apenas 7 dias para produzir gâmetas fertéis. Isto limita e muito o número de acasalamentos que uma D. bifurca macho pode efectuar. Ao trocarem um maior número de espermatozóides pequenos por um menor número de espermatozóides gigantes, os machos levam as fêmeas a terem que investir em mais acasalamentos para assegurarem a fertilização, daí a maior variação no sucesso reprodutivo das fêmeas. Deve notar-se que a cauda do espermatozóide é pura e simplesmente eliminada, não contribui para o futuro embrião. As vantagens terão a ver com a escolha do espermatozóide, e os autores do artigo sugerem que os flagelos longos da D. bifurca se devem à selecção pós-copulatória, mas não entram em detalhes.

Embora as questões ligadas ao acasalamento dos animais e ao sucesso reprodutivo sejam fulcrais para a compreensão dos processos evolutivos, confesso que ao percorrer a lista de artigos deste número da Nature e ao ler apenas o título deste artigo não o tinha selecionado para uma contribuição. Só umas semanas depois, ao folhear a revista, e ao ver a figura (e a referência aos 6 centímetros), é que não resisti a falar dele aqui.

Ficha Técnica
Imagem da Drosophila melanogaster da autoria de André Karwath, obtida da Wikimedia Commons, a partir desta página.
Fotos dos gâmetas de Drosophila bifurca da autoria de R. Dallai, disponíveis em vários locais na internet, incluindo na ref1 abaixo.

Referências
(ref1) Adam Bjork and Scott Pitnick (2006). Intensity of sexual selection along the anisogamy-isogamy continuum. Nature 441, 742-745. Laço DOI.

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