quarta-feira, junho 28, 2006

A úlcera do comedor de homens

Esta foto de um ensonado leão, Panthera leo, neste caso asiático, tirada no Jardim Zoológico de Bristol em Inglaterra, não engana ninguém. Trata-se de um animal que provavelmente não diria não a um tenro e suculento humano, se algum se colocasse a jeito. Provas de que os primos africanos deste leão se permitiam tais repastos, de tempos a tempos, é hoje encontrada em criaturas microscópicas que habitam os seus estômagos. [... ler mais]

A bactéria Helicobacter pylori existe nos estômagos dos seres humanos e descobriu-se há não muito tempo que era responsável pelas úlceras gástricas. Uma questão que se colocava sobre esta bactéria era quando na história da nossa espécie se teria acomodado ao nosso estômago. Alguns cientistas sugeriam um passado distante, outros acreditavam que teria acontecido nos últimos milhares de anos. Os cientistas que defendiam uma origem recente para a Helicobacter pylori procuraram parentes próximos desse microorganismos noutras criaturas. Um dos parentes mais próximos que encontraram foi a Helicobacter acinonychis, que infecta tigres leões e chitas (creio que no Brazil se designam por guepardos). Os resultados do estudo de foram publicados na PLoS Genetics (ref1) e são surpreendentes. Numa tradução livre do resumo:

A infecção dos seres humanos pela Helicobacter pylori é tão velha que a estrutura genética da população de Helicobacter pylori reflecte antigas migrações humanas. Uma espécie estreitamente relacionada, Helicobacter acinonychis, é específica dos grandes felinos, incluindo chitas, leões e tigres, enquanto hospedeiros relacionados de mais perto com os humanos acolhem espécies de Helicobacter relacionadas de forma mais distante. Esta observação sugere um salto entre espécies hospedeiras. Mas quem comeu quem e quando é que isso aconteceu?

Claro que o meu comentário acima e o título da contribuição retiram a expectativa quanto a esta interrogação. Continuando:
Para resolver esta questão, determinámos a seguência genómica de estirpe Sheeba da H. acinonychis que comparámos com genomas da H. pylori. Os genes conservados entre os genoamas são tão semelhantes que o salto entre hospedeiros provavelmente ocorreu nos últimos 200,000 anos (intervalo de 50,000 a 400,000 anos). Contudo, o genoma da Sheeba possui também características peculiares que indicam a direcção do salto de hospedeiros, nomeadamente de humanos primitivos para os felinos.

Pois é, em vez de homem comedor de leões foi homem alimento de leões. Nesta história os nossos antepassados eram as presas. Como é que os cientistas determinaram isso?
A Sheeba possui um número invulgarmente elevado de genes fragmentados, muitos deles codificando proteínas do exterior da membrana, que podem ter sido destruídas para contornar respostas indesejáveis do sistema imunitário dos hospedeiros felinos.

É na verdade muitíssimo pouco provável que as bactérias nos estômagos humanos conseguissem evoluir genes funcionais a partir de fragmentos, é bastante mais razoável admitir que genes funcionais no hospedeiro humano fossem por algum motivo indesejáveis no estômago dos grandes gatos e a evolução favorecesse a sua perda. Da próxima vez que virem uma chita a lamber os beiços lembrem-se que, num passado não tão distante como isso, os antepassados dessa chita poderiam estar a limpar os restos de um repasto em que o prato principal teria sido um infeliz humano.


O terrível final da vida de um pobre Homo sapiens ficou assim preservado, não no registo fóssil, mas em bactérias vivas no interior do estômago dos grandes felinos.

Ficha técnica
Foto do leão asiático retirada do wikimedia commons, da autoria de Adrian Pingstone, obtida a partir daqui.
Foto do par de chitas cortesia do U.S. Fish & Wildlife Service, da autoria de Gary M. Stolz obtida a partir daqui.

Referências
(ref1) Eppinger M, Baar C, Linz B, Raddatz G, Lanz C, et al. (2006) Who ate whom? Adaptive Helicobacter genomic changes that accompanied a host jump from early humans to large felines. PLoS Genet. No prelo. Laço DOI.

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