sexta-feira, junho 16, 2006

Castrada pelo parasita

Para celebrar o regresso à actividade nada melhor que regressar aos parasitas. Já falei aqui de vespas parasíticas que eliminam os reflexos de fuga das baratas, de vermes que levam pobres grilos ao suicídio, de microrganismos que tornam os ratos esquizofrénicos e os levam a perder o medo dos predadores. Para os pequenos crustáceos de que vou falar hoje, os efeitos dos parasitas incluem a castração. Os infelizes castrados são da espécie Daphnia magna, e o parasita castrador a bactéria Pasteuria ramosa. [... ler mais]

As dáfnias são pequenos animais, com cinco a seis milímetros de comprimento, que vivem em lagos de água doce no norte e oeste da América do Norte. Reproduzem-se por um processo a que se chama partenogénese cíclica. Durante a maior parte do tempo a população é constituída por fêmeas que produzem clones idênticos a elas e, apenas com o aproximar do Inverno, ou durante uma estação seca, são produzidos machos e ocorre reprodução sexuada. A imagem no topo desta contribuição mostra à esquerda uma fêmea com imensos ovos numa bolsa no interior da carapaça. A dáfnia da direita, bastante maior, está infectada com a Pasteuria ramosa. O gigantismo é uma das consequências da infecção, e faz sentido quando se nota que 25% do peso de uma dáfnia infectada são parasitas. A castração é outra consequência: os recursos que a dáfnia consagraria à sua reprodução são desviados pelo parasita para produzir esporos. As bactérias enfrentam um problema curioso: por um lado mobilizar o máximo de recursos para produzir esporos, por outro lado fazê-lo evitando que o hospedeiro morra antes que consigam explorá-lo da forma mais eficiente. Esse dilema foi estudado por Knut Helge e colegas num artigo na PLoS Biology (ref1). Numa tradução livre do resumo:

A hipótese de compromisso para a evolução da virulência prevê que o período de transmissão do parasita e a exploração do hospedeiro são balançados de forma a que o tempo-de-vida de transmissão com sucesso (TTS) é maximizado. Contudo, a evidência experimental para esta previsão é fraca, sobretudo porque o TTS, que indica a aptidão do parasita, é difícil de determinar. Para parasitas castradores, este modelo simples foi modificado para levar em consideração o facto de os parasitas converterem os recursos reprodutivos do hospedeiro em estádios de transmissão. Parasitas que matam o hospedeiro demasiado cedo pouco irão beneficiar desses recursos, enquanto adiar a morte do hospedeiro resulta num retorno menor. Tal como previsto a partir de modelos de optimização, um parasita que induza a castração deverá portanto castrar cedo, mas mostrar níveis intermédios de virulência, onde a virulência é medida como o tempo até à morte do hospedeiro.

Espera-se que os parasitas desviam os recursos do aparelho reprodutor o mais rapidamente possível. Por outro lado espera-se que em muitas situações o hospedeiro morra. Afinal se o hospedeiro sobreviver nem todos os recursos foram aproveitados convenientemente. Contudo, uma taxa de reprodução maior do parasita dentro do hospedeiro pode aumentar a transmissão, mas os efeitos nocivos para o hospedeiro podem levar à morte precoce do organismo parasitado, o que termina a produção de esporos dentro daquele hospedeiro. Explorar recursos durante muito tempo num organismo debilitado também não é muito eficiente, daí que se espere que o comportamento que optimiza a aptidão dos parasitas adie a morte do organismo parasitado, mas não muito, apenas o suficiente para que os recursos existentes na dáfnia sejam todos convertidos em esporos. Isto leva ao "compromisso" de que os autores falam.

Tal como em muitas questões na ciência, há aqui o problema de quantificar os diversos parâmetros para saber exactamente quando os dados estão ou não de acordo com as hipóteses a testar. Um parâmetros importantes é a aptidão do parasita que consiste no volume de esporos que consegue produzir. Neste caso trata-se de um número assombroso: numa só dáfnia pode chegar a cerca de 4 milhões e meio. Outro parâmetro é a virulência do parasita, o tempo que medeia entre a infecção e a morte do hospedeiro. Finalmente temos o tempo entre o "agarrar" o aparelho reprodutor e o abandono do hospedeiro para infectar outros indivíduos, o TTS, que embora em muitas situações seja difícil de determinar, no caso da castração das dáfnias é relativamente simples.
Estudámos a virulência num sistema experimental onde um parasita bacteriano castra o seu hospedeiro e produz esporos que não são libertados até à morte do hospedeiro. Isto permite estimar o TTS do parasita, que pode então ser relacionado com a sua virulência.
Ou seja no caso da castração das dáfnias, a aptidão, virulência e TTS do parasita podem ser quantificados com grande precisão.
Expusemos réplicas individuais clones um determinado hospedeiro de Daphnia magna (Crustacea) à mesma quantidade de esporos bacterianos e seguimos os indivíduos até à sua morte. Verificámos que o parasita mostra uma grande variação no tempo que leva a matar o hospedeiro e que o estágio de transmissão produz picos a níveis intermédios de virulência.
Basicamente os autores obtiveram o resultado esperado: os parasitas que matam os hospedeiros demasiado cedo produzem menos esporos, aqueles que o fazem demasiado tarde não beneficiam muito com isso. Os autores testaram em seguida se os diferentes comportamentos dos parasitas tinham uma base genética. As dáfnias são também deste ponto de vista um objecto de estudo ideal devido à possibilidade de reprodução assexuada, que produz populações de indivíduos idênticos.
Uma experiência adicional testou a base genética da variação na virulência comparando as curvas de sobrevivência de dáfnias infectadas com esporos de parasitas obtidas de infecções que matam depressa versus infecções que demoram a matar. hospedeiros infectados com "esporos que matam depressa" tinham uma taxa de mortalidade significativamente superior aos hospedeiros infectados com "esporos que demoram a matar", indicando que a variação no tempo até à morte era pelo menos em parte devida a diferenças genéticas entre os parasitas. Especulamos que o claro pico no TTS a tempos de mortalidade intermédios pode ser causado pela excepcionalmente forte compromisso entre reprodução de hospedeiro e parasita.

Este é um exemplo claro da forma como a selecção natural leva os organismos a optimizar as suas estratégias reprodutivas. A variabilidade nos parasitas deverá ser consequência das diferenças entre diferentes estirpes de dáfnias. Afinal ambos os lados nesta batalha pela vida continuam a evoluir. Este é um trabalho interessante que conseguiu quantificar o tal "compromisso" que era em geral assumido nos estudos sobre este tema de forma implícita mas não testada.

Ficha técnica
Imagem de Daphnia magna, retirada da sinopse de Liza Gros no PloS Biology. Ver referência (2) abaixo.

Referências
(ref1) Jensen KH, Little T, Skorping A, Ebert D (2006). Empirical Support for Optimal Virulence in a Castrating Parasite. PLoS Biol 4(7): e197. Laço DOI.
(ref2) Gross L (2006). The Results Are In: Bacterial Parasite Strives for Balance in Host Infection. PLoS Biol 4(7): e223. Laço DOI.

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