terça-feira, junho 20, 2006

O Gansus com pés de pato

A imagem mostra parte do esqueleto de um fóssil descoberto recentemente na China. Baptizado de Gansus yumenensis, trata-se dos restos de uma ave. Na imagem notam-se mesmo os vestígios da plumagem, sob a forma de manchas acastanhadas próximas dos ossos das asas. O nome genérico Gansus não tem a ver com nenhum tipo de parentesco próximo com os gansos: trata-se do nome da província chinesa onde os fósseis foram encontrados. As criaturas que deixaram os ossos nestes sedimentos viveram muito antes dos gansos actuais, entre 110 e 115 milhões de anos atrás. Numa outra região da China, Liaoning, foram descobertos inúmeros fósseis de aves primitivas, correspondentes à altura em que as aves se começavam a diversificar, cerca de 120 milhões de anos atrás. Os fósseis descobertos em Gansu mostram o que sucedeu "logo" a seguir. [... ler mais]

A descoberta destes exemplares ocorreu em 2004, embora os primeiros vestígios, muito incompletos de Gansus tenham sido recolhidos em 1981. Não resisto a incluir aqui uma das frases de um dos cientistas que estudaram estes fósseis, Matthew C. Lamanna, retirada do comunicado de imprensa do CMNH:

Fomos a Chamgma na esperança de descobrir um, talvez dois, fragmentos de aves fósseis. Em vez disso, encontrámos dezenas, incluindo alguns esqueletos completos, com tecidos moles. Fomos bem sucedidos, para lá dos nossos sonhos mais loucos.

As condições de preservação de alguns dos esqueletos são excelentes, com vestígios de pele e penas em alguns deles. Infelizmente não foram recuperados vestígios do crânio nem da maioria das vértebras cervicais. Na reconstrução à direita mostra-se a cinzento uma reconstrução do esqueleto da ave, em que os ossos a cinzento são hipotéticos, apenas os ossos a branco são de elementos preservados.

O animal seria mais ou menos do tamanho de um pombo, e viveu numa área que seria então um lago cheio de peixes e crocodilos, rodeado de um ambiente com vida vegetal luxuriante, onde deambulariam dinossauros e mamíferos primitivos. Os cientistas que escavaram os sedimentos não encontraram dinossauros não avianos, mas descobriram insectos, crustáceos, penas isoladas, e muitas aves. Muito deste material ainda está a ser preparado pelo que se deve esperar mais informação sobre essas outras aves.

A maioria dos fósseis de aves detectados nesta formação são de Gansus, que seria assim possivelmente a ave mais comum neste ambiente, e o estudo desta ave fornece elementos importantes para a compreensão da evolução e diversificação das aves a partir de pequenos dinossauros carnívoros. Numa tradução livre do resumo do artigo de Hai-lu You e colegas que descrevem a descoberta na Science (ref1):
Exemplares tridimensionais da ave voadora Gansus yumenensis do Cretácico Inicial da formação de Xiagou no noroeste da China mostram que este grupo possuía características anatómicas avançadas previamente conhecidas apenas em aves orniturinas do Cretácico Tardio e do Cenozóico. A análise filogenética coloca o Gansus dentro da Ornithurae, tornando-o o membro mais antigo deste clã.

Aqui convém abrir um parêntesis para referir que antes da extinção que ocorreu no final do Cretácico, 65 milhões de anos atrás, a maioria das aves conhecidas pertenciam a um grupo conhecido por "aves-inversas" as Enantiornithiurine. Esse grupo de aves não sobreviveu para lá do Cretácico e distinguia-se das aves modernas, que pertencem a um grupo designado por Ornithiurine, por os ossos nos seus ombros e pés articularem de forma oposta às das aves modernas. Ora o Gansus pertence claramente às Ornithiurine. Antes desta descoberta, as mais antigas aves orniturinas conhecidas eram de 99 milhões de anos atrás, e o Gansus permitiu juntar mais de uma dezena de milhões de anos ao registo dessas criaturas. Os autores concluem então com:
A Formação de Xiagou preserva a mais antiga amostra dominada por aves ornituromorfas. A anatomia do Gansus, tal como a de outras aves ornituranas não-neorniteanas (isto é não modernas), indica especialização para um estilo de vida anfíbio, apoiando a hipótese de que as aves modernas têm a sua origem em nicho aquáticos ou de litoral.

O Gansus possuía pés com membranas interdigitais. Estes pés-de-pato são a prova de que se trataria de um animal aquático, capaz de nadar e possivelmente mergulhar. Destaquei a negrito uma afirmação que parece um pouco forte mas que é apoiada por uma série de estudos que mostram que os antepassados das aves modernas se encontram em grupos de aves ornituranas de características aquáticas.

Animais semelhantes a patos no meio dos dinossauros? Parece estranho mas é verdade, embora devessem ser algo diferentes, pelo menos num aspecto importante. O cladograma resultante da análise filogenética no artigo da Science mostra que o Gansus ficaria algures entre o Hesperornornis e o Ichthyornis. Isso significa que, embora não se tenha encontrado o crânio do animal, é de suspeitar que teria dentes. Fica embaixo uma reconstituição do artista do artista Mark Klinger do aspecto que o Gansus teria em vida.


Ficha Técnica
Imagens retiradas das páginas do comunicado de imprensa do Carnegie Museum of Natural History, na página apontada por este laço.

Referências
(ref1) Hai-lu You, Matthew C. Lamanna, Jerald D. Harris, Luis M. Chiappe, Jingmai O' Connor, Shu-an Ji, Jun-chang L., Chong-xi Yuan, Da-qing Li, Xing Zhang, Kenneth J. Lacovara, Peter Dodson, Qiang Ji (2006). A Nearly Modern Amphibious Bird from the Early Cretaceous of Northwestern China. Science, Vol. 312. no. 5780, pp. 1640 - 1643. Laço DOI.

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