quinta-feira, abril 26, 2007

As proteínas das galinhas tirânicas

Abril de 2007 é o mês em que a paleoproteómica, ou seja o estudo das proteínas de organismos extintos, algo que se julgava possível apenas até um milhão de anos atrás, se estendeu ao Cretácico. Trata-se de uma novidade excitante no mundo da Paleontologia. Tem tudo a ver com tecidos recuperados num Tyrannosaurus rex, que teria morrido há cerca de 68 de milhões de anos. Não é a primeira vez que surge uma notícia deste tipo, mas se nos outros casos havia sempre mais ou menos escondida a possibilidade de contaminação (que se veio a comprovar), desta vez tudo indica que é mesmo a sério. O tecido recuperado é colagénio, cujas sequências de aminoácidos puderam ser determinadas e comparadas com animais modernos. Da comparação não vieram grandes surpresas, os tiranossauros mostraram-se mais próximos das aves; tratou-se para já apenas da validação da técnica. O grande passo será quando se puder comparar entre grupos de dinossauros, e entre dinossauros e outros arcossauros, ou ainda entre toda uma míriade de vertebrados extintos.[... ler mais]

A Science tem na dois artigos sobre o assunto, o primeiro de Mary Higby Schweitzer e colegas (ref1) é sobre a descoberta do tecido. Numa tradução livre do resumo:

Efectuámos várias análises de tecidos fibrosos corticais e medulares de Tyrannosaurus rex (exemplar MOR 1125) que restaram após desmineralização. Os resultados indicam que colagénio de tipo I, o principal constituinte orgânico do tecido ósseo, se encontra preservado em baixas concentrações nestes tecidos. A descoberta foi confirmada de forma independente por espectroscopia de massa. Propomos um possível cadeia de processos químicos que possam contribuir para esta preservação. A presença de uma proteína endógena em osso de dinossauro pode validar hipóteses sobre relações evolutivas, taxas e padrões de mudança molecular e degradação, bem como sobre a estabilidade química das moléculas ao longo do tempo.

Este é um resultado surpreendente. O processo de fossilização acarreta em geral a destruição ou alteração do material orgânico de origem, num processo que se supunha terminado ao fim de cerca de um milhão de anos. Só que neste tiranossauro, descoberto debaixo de uma camada de sedimentos de um antigo leito fluvial, houve uma série de coisas que chamaram a atenção dos investigadores. Após usarem procedimentos químicos para removerem os minerais de fragmentos do fémur e da tíbia, notaram a presença de material fibroso e flexível, e ainda o que pareciam ser células e vasos sanguíneos. Os autores identificaram o material fibroso como sendo colagénio de tipo I com base, entre outras coisas, na sua aparência (estrutura ordenada em tripla hélice), um conteúdo de 33% num aminoácido chamada glicina, e um tipo de reacção que permite distinguir entre os vários tipos de colagénio. A identificação parece absolutamente fiável, e permitiu um segundo artigo (ref2), de John Asara e colegas, que comparam este colagénio com o de um outro animal extinto, e com organismos ainda existentes. Numa tradução livre do resumo:
Os ossos fossilizados de organismos extintos guardam em si o potencial para a obtenção de sequências de ADN ou proteínas que poderiam revelar os laços evolucionários a espécies existentes. Utilizámos espectroscopia de massa para obter sequências de proteínas de ossos com 160,000 a 600,000 anos de um mastodonte extinto (Mammut americanum) e de um dinossauro com 68 milhões de anos (Tyrannosaurus rex). A presença das sequências de T. rex mostram que as ligações dos seus peptídeos eram notavelmente estáveis. A espectroscopia de massa pode assim ser utilizada para determinar sequências de carácter único de organismos antigos a partir dos padrões de fragmentação dos peptídeos, uma ferramenta útil para estudar a evolução e adaptação de grupos taxonómicos antigos a partir dos quais é pouco provável que se obtenham sequências genómicas.

O ênfase a negrito é meu e é para clarificar alguma confusão que possa resultar deste estudo. O que os cientistas fizeram no tiranossauro foi identificar sequências de aminoácidos (peptídeos são cadeias de aminoácidos constituintes das proteínas) existentes numa substância que identificaram com colagénio. Isto não nos vai permitir reconstruir um um tiranossauro, não se recuperou material genético. O ADN, que forma o material genético, é uma molécula muito longa e bastante frágil que tem que ser reparada constantemente nos organismos vivos. Quando um organismo morre a maquinaria celular que repara o ADN deixa de funcionar e as moléculas começam a fragmentar-se. O importante a reter é que mesmo em condições favoráveis é pouco provável que se consigam recuperar fragmentos de ADN com mais de cem mil anos. As coisas são muito diferentes com o colagénio, que serve de apoio estrutural nos vertebrados. Essa proteína sofreu pressões evolutivas para ser estável, robusta e relativamente inerte.

O colagénio é uma proteína muito "conservadora". As sequências de colagénio mostram muito pouca variação mesmo quando se consideram animais com parentesco bastante distanciado, há muito poucas regiões que não alinham, e mesmo nesses casos estamos a falar de diferenças de apenas um a dois aminoácidos. Assim por exemplo, no artigo Asara e colegas, é referido que se compararmos as sequências humanas (Homo sapiens) com as de uma rã (Xenopus laevis) a semelhança é de 81%, enquanto entre humanos e bovinos (Bos taurus) se obtém 97%, que é uma semelhança notável. Infelizmente as bases de dados dos organismos existentes são ainda muito incompletas, e muitos organismos não possuem sequências catalogadas. Para já, as poucas sequências obtidas a partir do T. rex foram comparados com a galinha e com a rã, mostrando-se mais próximas da galinha. Isto era esperado, afinal a maioria dos autores admite que as aves são dinossauros, mas aqui não se procuravam surpresas, apenas testar a fiabilidade. Uma das coisas que me surpreendeu é que não foi possível comparar com outros animais filogeneticamente próximos dos dinossauros, os crocodilos e jacarés, porque não existiam sequências deste animais na base de dados. Há muito trabalho a fazer neste domínio.

Os resultados destes dois estudos são notáveis. Se a paleogenómica, ou seja o estudo do genoma de organismos extintos, está limitada a uma dezenas de milhares de anos, a paleoproteómica poderá levar-nos a centenas de milhões de anos atrás. Claro que há aspectos deste estudo que apareceram de forma pouco rigorosa na imprensa, com frases do tipo: "as galinhas são os parentes mais próximos do tiranossauro". Entre os animais estudados, isso é de facto verdade, mas qualquer outra ave daria o mesmo resultado. Por outro lado, quaisquer duas aves modernas deveriam aparecer mais próximas uma da outra que qualquer uma delas do tiranossauro. Eu era para escrever a propósito disto, mas o Luís Azevedo Rodrigues, que é um paleontólogo de profissão, já tratou disso no seu blogue, o Ciência ao Natural.

Ficha técnica
Foto de esqueleto de T. rex no Smithsonian museum of Natural History cortesia de Quadell/Wikimedia Commons.

Referências
(ref1) M. H. Schweitzer, Z. Suo, R. Avci, J. M. Asara, M. A. Allen, F. T. Arce, and J. R. Horner (2007). Analyses of Soft Tissue from Tyrannosaurus rex Suggest the Presence of Protein. Science 316, 277-280. Laço DOI.
(ref2) J. M. Asara, M. H. Schweitzer, L. M. Freimark, M. Phillips, and L. C. Cantley (2007). Protein Sequences from Mastodon and Tyrannosaurus Rex Revealed by Mass Spectrometry. Science 316, 280-285. Laço DOI.

quarta-feira, abril 25, 2007

Em Abrolhos com os olhos bem abertos

Se Helena apartar
Do campo seus olhos,
Nascerão abrolhos...

Este é o mote de um conhecido poema da lírica camoniana, em que é referida a planta que se mostra na imagem, os tais abrolhos. Designada cientificamente por Tribulus terrestris, esta planta, comum na Península Ibérica, é um dos vegetais mais caluniados na poesia de língua portuguesa. O facto de o nome rimar com olhos não é apenas uma feliz coincidência poética, a designação vem de «abre os olhos», um aviso adequado a uma planta com um fruto espinhoso, sobretudo para quem andasse descalço pelos campos. Esta história de plantas e poesia é na verdade apenas uma introdução para um outro arregalar de olhos, motivado pela descoberta de uma "nova" espécie animal. É que o animal em questão era, e continua a ser, uma presença assídua nas mesas de muitos brasileiros. Os cientistas andavam distraídos, e não deixa de ser estranhamente adequado que a criatura tenha sido estudada no Arquipélago de Abrolhos, no litoral brasileiro, no sudoeste da Bahia. [... ler mais]

A origem da expressão no mar é a mesma que em terra firme, a advertência «abre os olhos». Este nome entrou para a nomenclatura náutica como designação para acidentes no relevo submarino, que podem aflorar como rochedos ou pequenas ilhas em zonas de recifes ou baixios. O "novo" animal estudado em Abrolhos é um peixe com o nome científico Lutjanus alexandrei, uma criatura comum nos recifes das costas do Maranhão até ao sul da Bahia. Trata-se de um peixe pertencente à família dos Lucianídeos (Lutjanidae) do qual se mostra aqui ao lado uma imagem de um juvenil. A descoberta é descrita na revista Zootaxa (ref1), num artigo de Rodrigo Moura e Kenyon Lindeman. Numa tradução livre do resumo
Os lucianos da família Lutjanidae incluem algumas das espécies mais importantes das zonas pesqueiras de recifes no Atlântico oeste tropical. Apesar da sua importância, existem lacunas consideráveis quer para a sistemática, quer para a informação ecológica, em particular para o sudoeste do Atlântico. Esforços recentes de recolha ao longo da costa do Brasil resultaram na descoberta de muitas novas espécies de peixes de recife, incluindo espécies com importância comercial de peixes-papagaio (Scaridae) e roncadores (Haemulidae). Com base em recolha no local, exemplares em museus, e referências na literatura, descrevemos uma nova espécie de luciano, Lutjanus alexandrei, que é aparentemente endémico da costa brasileira.

Endémico significa que esta criatura só existe no Brasil.
Os estádios iniciais de maturidade e do início da vida juvenil são também descritos. Esta espécie é comum em muitos sistemas costeiros estuarinos e de recifes brasileiros onde foi muitas vezes descrito erradamente como sendo a castanhola-cinzenta Lutjanus griseus, ou o luciano L. apodus.

Os nomes comuns dos peixes variam muitas vezes de pescador para pescador e não me admiraria se a designação destas criaturas fosse diferente no Brasil. O que mais facilmente distingue a espécie brasileira das outras duas é a presença de seis barras brancas, estreitas e verticais, no Lutjanus alexandrei, claramente visíveis na imagem abaixo:

A identificação da nova espécie lançou dúvidas acerca do que se assumia previamente para os limites na distribuição a sul dos L. griseus e L. apodus, e trabalho subsequente no campo e em museus confirmou que essas espécies não eram registadas de forma fiável no Brasil.

Esta é uma daquelas coisas verdadeiramente surpreendentes, e tenho que agradecer à Malla que viaja pelo mundo a chamada de atenção para esta história. Quem diria, alguns dos leitores deste blogue poderão ter degustado durante anos nos seus pratos uma espécie desconhecida da ciência. A Conservation International do Brasil tem um comunicado (em português) sobre esta espécie "desconhecida".

Não podia terminar sem mais uma imagem de abrolhos, na sua versão vegetal,


e sem recitar (de memória) o tal poema de Camões, dedicado a todas as Helenas de olhos verdes:
A verdura amena,
gados, que pasceis,
sabei que a deveis
aos olhos de Helena.
Os ventos serena,
faz flores de abrolhos,
o ar de seus olhos.

Faz serras floridas,
faz claras as fontes:
se isso faz nos montes,
que fará nas vidas?
Trá-las suspendidas
como ervas em molhos,
na luz de seus olhos.

Os corações prende
com graça inumana
de cada pestana
üa alma lhe pende.
Amor se lhe rende,
e, posto em giolhos,
pasma nos seus olhos.


Ficha técnica
Imagem de abrolhos cortesia de Forest & Kim Starr/USGS.

Referências
(ref1) RODRIGO L. MOURA & KENYON C. LINDEMAN (2007). A new species of snapper (Perciformes: Lutjanidae) from Brazil, with comments on the distribution of Lutjanus griseus and L. apodus. Zootaxa 1422: 31-­43. PDF.

terça-feira, abril 24, 2007

Quando o refúgio não chega para todos

A Malla que viaja pelo Mundo referiu, nas suas contribuições sobre o aquecimento global, o interesse que o animal maior nesta fotografia, o urso polar, desperta junto de pelo menos uma estrela do cinema norte-americano. A mim parece-me estranho que se dedique tanta atenção ao urso quando existe no ártico um animal muito mais fotogénico e igualmente interessante, a raposa do ártico, de seu nome científico Alopex lagopus, a coisinha felpuda junto do carnívoro maior e mais ameaçador. As raposinhas não são propriamente novatas nestas coisas de alterações do clima. Há uns poucos milhares de anos, durante a última época glacial, o seu habitat estendia-se bastante mais a sul, incluindo partes do que é agora a França, Alemanha e Rússia. Ora qual a relação das zorrinhas do pleistoceno com as zorrinhas árticas que subsistem na Escandinávia? Para onde foram essas raposas quando o gelo recuou? [... ler mais]

Como já referi aqui por diversas vezes tenho uma certa má vontade em relação aos pandas e bebés focas, e outros animais fofinhos e abracáveis. Devo no entanto confessar que não resisto às zorrinhas com a sua pelagem de um branco imaculado. Daí que tenha forçosamente que mostrar mais uma imagem destes adoráveis animais.


O artigo que descreve o destino das zorrinhas árticas europeias é da autoria de Love Dalén e colegas e foi publicado na revista Proceedings of the National Academy of Sciences (ref1). Numa tradução livre do resumo:

A forma como as espécies respondem a uma maior disponibilidade de habitat, por exemplo no final da última glaciação, encontra-se bem estabelecida. Contrastando com isso, pouco se sabe sobre o processo oposto, quando a quantidade de habitat diminui. A hipótese de seguimento do habitat prevê que as espécies devem ser capazes de seguir quer o aumentar quer o diminuir na disponibilidade de habitat. A hipótese alternativa é que as populações fora dos refúgios se extinguem durante os períodos de clima não adequado.

Este estudo não poderia ter sido feito poucos anos atrás. Agora estas coisas parecem corriqueiras, uns ossos antigos, um pouco de ADN mitocondrial, umas técnicas de sequenciação sofisticadas e já está.

Antes de passar ao resto do resumo, é tempo para mais uma imagem. As raposinhas árticas não são sempre brancas e felpudas, possuem também uma pelagem de verão, bastante mais curta, mas que não tira encanto ao animal. Eis aqui mais uma pose sonolenta:

Retomando então o texto:

Para testar essas hipóteses, usámos técnicas de ADN antigo para examinar a variação genética na raposa ártica (Alopex lagopus) durante um ciclo de expansão/contracção. Os resultados mostram que a raposa ártica das latitudes médias da Europa se extinguiu no fim do Pleistoceno e não seguiu o seu habitat quando ele se deslocou para norte. Em vez disso, a grande semelhança genética entre as populações actuais na Escandinávia e na Sibéria sugere uma origem oriental para a população escandinava no final da última glaciação. Este resultados fornecem novas perspectiva sobre a forma como as espécies respondem às mudanças climáticas, pois sugerem que as populações não são capazes de seguir as diminuições na disponibilidade do habitat. Isto implica que as espécies árticas podem ser particularmente vulneráveis a aumentos na temperatura global.

As raposas árticas da Escandinávia vivem naquilo que se chama um refúgio, um resto bastante pequeno de um habitat que se estendia mais além. O que os autores mostram é que as raposas que existiam no resto da Europa ficaram fora desse refúgio. O material genético nas mitocôndrias conta esta história de certa forma surpreendente.

Esta coisa de uma população de criaturas europeias da era glacial que não deixaram vestígios no ADN mitocondrial de populações modernas tem um certo paralelismo com os seres humanos. O ADN mitocondrial que se recuperou a partir de ossadas do homem de neandertal apresenta sequências que não se encontram nos humanos anatomicamente modernos. Claro que os padrões populacionais e de mobilidade dos humanos serão bem diferentes dos das raposas, mas poderia ter acontecido algo semelhante: a cada recuo dos glaciares, as populações do sul "invadiam" as áreas do norte então disponíveis, mas a cada avanço dos glaciares, o habitat das populações de neandertais contraía-se, levando à extinção das populações a norte. John Hawks no seu Anthropology Weblog, discute esse ponto com um pouco mais de detalhe.

Para terminar, não resisto a colocar mais uma foto de raposa ártica na sua pelagem de verão. Gosto particularmente desta fotografia, com a raposinha com um ar compenetrado e de desafio, numa postura defensiva:


Ficha técnica
Foto da raposa e urso no Wapusk National Park, em Manitoba, no Canadá, cortesia de Ansgar Walk, obtida desta página da Wikimedia Commons.
Foto da sonolenta raposa de pelagem branca cortesia de Marcel Burkhard, obtida desta página da Wikimedia Commons.
Foto da raposinha a dormir em cima do poste, no parque natural de Silz na Alemanha, cortesia de Traroth, obtida desta página da Wikimedia Commons.
Foto da zorrinha ártica numa postura defensiva na ilha de Nizke cortesia de John Sarvis e do U.S. Fish & Wildlife Service, obtida desta página da Wikimedia Commons.

Referências
(ref1) Love Dalén, Veronica Nyström, Cristina Valdiosera, Mietje Germonpré, Mikhail Sablin, Elaine Turner, Anders Angerbjörn, Juan Luis Arsuaga, and Anders Götherström (2007). Ancient DNA reveals lack of postglacial habitat tracking in the arctic fox. PNAS 2007 104: 6726-6729. Laço DOI.

segunda-feira, abril 23, 2007

A vastidão imensa de uma escama

A história da de que falei na contribuição anterior começa na verdade com esta imagem aqui. Trata-se de outra microfotografia de electrões, obtida com o microscópio de electrões no modo de ampliação de apenas 96 vezes. A escala são dois décimos de milímetro, o que significa que as placas que se sobrepõem quais escamas, poderiam ser distinguidas a olho nu. Os minúsculos Nanorchestes foram encontrados sobre os restos ressequidos desta criatura. De que animal se trata? Mais uma vez temos que nos afastar um pouco para perceber. [... ler mais]

Eis então uma fotografia obtida no modo de ampliação de 26 vezes.
A estrutura é agora clara, é uma pata de um vertebrado. As placas escamosas são de facto escamas, e pela forma o dono é de certa forma óbvio. Trata-se da pata de um pequeno lagarto. Foi a deambular nesta vastidão imensa que foram encontrados os belíssimos ácaros do género Nanorchestes. Trata-se no entanto de um acaso, os Nanorchestes não são parasitas, vivem no solo alimentando-se de fungos e restos de folhas. Claro que não podia terminar sem mostrar mais um desses fantasticamente ornamentados minúsculos seres.

A beleza nas patas de um lagarto ressequido. Quem diria.

Ficha técnica
Fotografias da autoria de Janice Carr, cedidas por William L. Nicholson, Cal Welbourn, e Gary R. Mullen ao Centers for Disease Control and Prevention (CDC), obtidas através da Public Health Image Library (PHIL).

domingo, abril 22, 2007

A beleza feérica das criaturas humildes

Enquanto procurava nas páginas do PHIL imagens para ilustrar a minha última contribuição sobre o vírus do Ébola, dei de caras com esta fabulosa paisagem. Parece um local de sonho, assim à primeira vista fez-me pensar em corais e algas. Só que esta paisagem não tem nada que ver com recifes submarinos, e a primeira pista está no traço que serve de escala, são dez micrómetros, que é como quem diz um centésimo de milímetro. Esta é uma microfotografia, com uma ampliação de 2689 vezes, obtida por um microscópio de electrões. O que são então estas delicadas estruturas de uma beleza inegável? Posso desde já avançar que são de origem animal. Para perceber bem de que se criatura se trata é preciso reduzir um bocadinho a ampliação da imagem. [... ler mais]

Eis então uma fotografia com uma ampliação de "apenas" 1094 vezes, que nos permite um maior distanciamento.

O que estamos a ver é um ácaro minúsculo do género Nanorchestes. A escala são 20 micrómetros ou seja 2 centésimos de milímetro. As estruturas que se assemelham a corais são ornamentações que estes ácaros possuem no dorso do seu exosqueleto quitinoso. Estas criaturas são inofensivas, e vivem no solo, alimentando-se de fungos e detritos vegetais. A cabeça do animal está à esquerda nesta fotografia, e a riqueza de detalhes, os padrões morfológicos intrincados, são das coisas mais bonitas que já vi.

Eis aqui uma visão um pouco mais longíqua deste Nanorchestes, no seu mundo onde um grão de poeira ou de pólen são coisas gigantes:

A ampliação aqui é de apenas 547 vezes, e a escala são cinco centésimos de milímetro. O lado da cabeça do bicharoco é o que está mais próximo de nós em baixo.

Ora para quê uma tal ornamentação? Bem, não tive tempo de ir à biblioteca pesquisar este assunto, mas encontrei na internet algo referente ao tema. Trata-se de uma artigo de D. E. Rounsevell e Penelope Greenslade na revista Hydrobiologia (ref1). Numa tradução livre do resumo:

Ácaros da família cosmopolita Nanorchestidae podem dominar numeriamente as faunas de solos quer dos desertos quentes quer dos desertos frios. Os géneros Nanorchestes e Speleorchestes diferem nas suas distribuições, com o primeiro mais abundante no frio e o último mais abundante em regiões quentes. Sugerimos que isto está relacionado com as diferenças na estrutura cuticular dos dois géneros. A cutícula do Nanorchestes spp. é elaborada, com granulações regularmente espaçadas que estão ausentes no Speleorchestes spp. Estas granulações retêm uma camada de ar sobre o corpo que pode facilitar a respiração cuticular nos solos polares que são alagados sasonalmente e aumentar as probabilidades de sobrevivência ao reduzir o congelamento por contacto directo com o gelo. Discutimos a biologia dos dois géneros em função das estratégias ecológicas que são selecionadas em desertos quentes e frios.

Deve notar-se no entanto, que os Nanorchestes ocorrem também em climas quentes, as fotografias que mostrei aqui são de animais encontrados na Geórgia nos Estados Unidos da América. Na verdade ocorrem quase em toda a parte.

Ficha técnica
Fotografias da autoria de Janice Carr, cedidas por William L. Nicholson, Cal Welbourn, e Gary R. Mullen ao Centers for Disease Control and Prevention (CDC), obtidas através da Public Health Image Library (PHIL).

Referências
(ref1)
D. E. Rounsevell & Penelope Greenslade (1988). Cuticle structure and habitat in the Nanorchestidae (Acari: Prostigllnata). Hydrobiologia, Volume 165, Pages 209-212. Laço DOI.

sábado, abril 21, 2007

A morte de uma Ordem

Estas imponentes estruturas, algures no Território Norte da Austrália, são fruto do trabalho de milhões de pequenas baratas. Alguns leitores estarão seguramente a perguntar-se, baratas, mas então essas coisas não são termiteiras? Sim, trata-se de facto de termiteiras mas isso não invalida a primeira frase. Sabia-se desde há algum tempo que as térmitas, ou cupins como são conhecidas no Brasil, tinham uma certa afinidade filogenética com as baratas e com os louva-a-deus. Até que ponto ia essa afinidade era no entanto uma questão de acesa discussão. Um trabalho recente parece ter clarificado as coisas: as térmitas não são simplesmente parentes das baratas, as térmitas são baratas. Como se passa então de barata a cupim? Bem, segundo os autores o hábito das baratas de comerem os excrementos umas das outras pode ter facilitado a coisa. [... ler mais]

O estudo é da autoria de Daegan Inward e colegas e foi publicado no Biology Letters (ref1). Numa tradução livre do resumo:

As térmitas, construtoras de montículos e comedoras de casas, são fáceis de reconhecer: os seus modos de vida extraordinariamente complexos tornaram-nas extraordinariamente bem sucedidas ao longo dos trópicos. Embora conhecidas como "formigas brancas", não são formigas e as relações com outros insectos permanecem pouco claras. A nossa análise filogenética e molecular, a mais extensa tentada até hoje, mostra que as térmitas são baratas sociais, não merecendo por isso continuarem a ser classificadas como uma ordem separada (Isoptera) das baratas (Blattodea). Em vez disso, propomos que devem ser tratadas como uma família (Termitidae) entre as baratas. É surpreendente descobrir que um grupo de baratas comedoras de madeira desenvolveram eussocialidade plena, pois outros insectos plenamente sociais ecologicamente dominantes (por exemplo, formigas, abelhas e vespas sociais) evoluiram a partir de vespas predadoras solitárias.

Ora o que significa ser barata em termos filogenéticos? O que sucede é que se procurarmos relações de parentesco entre um grande conjunto de espécies de baratas, ou seja, se indagarmos quando é que pela última vez partilharam um antepassado comum, e traçarmos linhas entre nomes num papel, obtemos uma espécie de arbusto com muitos raminhos. Esse arbusto é oque se chama árvore filogenética ou cladograma. Os autores fizeram isso com 107 espécies de baratas, térmitas, e louva-a-deus. Ora, em vez de formarem o seu próprio arbusto ao lado do das baratas, os cupins faziam parte de um dos ramos das baratas. As térmitas estão mais próximas de um grupo de baratas, comedoras de madeira, do que esse grupo de baratas está de outros grupos classificados como baratas.

Os cupins são assim, pelo menos filogeneticamente, baratas, e os autores especulam que para comedores de madeira, que dependem de microorganismos para digerirem a celulose, a evolução poderá ter sido facilitada pelos seus hábitos coprofágicos. Comer os excrementos dos vizinhos permite a fácil disseminação dos micróbios. A dominância ecológica dos cupins teve contudo um preço. Eu referi numa contribuição anterior os hábitos democráticos das baratas. As térmitas vivem num sistema de monarquia absoluta, um regime de tipo totalitário.

Ficha técnica
Imagem de imponente construção das térmitas cortesia de Ray Norris, retirada da Wikimedia Commons.
Imagem

Referências
(ref1) Daegan Inward, George Beccaloni, Paul Eggleton (2007). Death of an order: a comprehensive molecular phylogenetic study confirms that termites are eusocial cockroaches. Biology Letters. Laço DOI.

quinta-feira, abril 19, 2007

O crocodilo nanico que caçava de noite

Terça-feira passada foi apresentada no Rio de Janeiro, com pompa e circunstância, a descoberta de uma nova espécie fóssil, o Adamantinasuchus navae, com base em vestígios de uma criatura que teria vivido há cerca de 90 milhões de anos atrás. Foi descoberta por William Nava, coordenador do Museu de Paleontologia de Marília, no interior do estado de São Paulo, nas imediações de uma barragem de construção recente, que se encontrava em processo de enchimento. A idade dos vestígios faz-nos pensar de imediato em dinossauros, e existiam nessa altura no Brasil alguns bem grandinhos. Mas este animal não era um dinossauro mas sim um parente mais próximo dos actuais crocodilos. Era no entanto muito diferente em vários aspectos, a começar pelo tamanho. É que o Adamantinasuchus navae seria aquilo que no Brasil se chama um nanico e em Portugal um meia-leca. Do focinho à ponta da cauda teria apenas 50 centímetros, e em altura faria lembrar um cachorro chihuahua. [... ler mais]

A descoberta é descrita por Pedro Henrique Nobre e Ismar de Souza Carvalho da Universidade Federal do Rio de Janeiro na revista Gondwana Research (ref1). A introdução deste artigo descreve a descoberta de uma forma acessível, mas primeiro um pouco de notação taxonómica, para os mais entendidos nestas coisas da paleontologia:

O estudo presente analisa um novo taxón de Crocodylomorpha relacionado aos Notosuchimorpha, um clado dos Mesoeucrocodylia. Este clado encontra-se amplamente distribuido no Cretácico de Gondwana, com muitas espécies na América do Sul, África e Ásia.

Depois de ter indicado os nomes que se usam para catalogar este animal, vamos então ao que interessa. A que se assemelhava o Adamantinasuchus? Os restos do corpo do animal são algo fragmentários, uns quantos bocados dos fémures direito e esquerdo, algumas vértebras, fragmentos de rádio e de ulna (cúbito), uns poucos metatarsos e falanges. Recuperou-se contudo muito do crânio, incluindo dentes, narinas e a região das órbitas. O animal é bastante peculiar para crocodilomorfo, e os restos permitem mesmo inferir algo sobre o seu modo de vida:
A nova espécie caracteriza-se por uma dentição especializada e complexa, cuja morfologia é única entre os crocodilomorfos. Exibe também adaptações claras para uma vida de hábitos terrestres, isto é, as narinas externas estão colocadas numa posição anterior e vertical e as grandes órbitas numa posição lateral.

Como referi no início, o animal era muito pequeno, o crânio mede apenas 6 centímetros de comprimento e 3 centímetros de altura. Eis aqui uma figura retirada do artigo que mostra o crânio. Há uma profusão de letras na figura que marcam a posição de várias características importantes.

Para além das narinas exteriores (indicadas pelo ou na figura) e das órbitas, que indiciam hábitos terrestres, os dentes também dão pistas sobre o modo de vida . Notem a caixa marcada por it, onde se vê um dente incisiforme (semelhante a incisivo) claramente inclinado para fora. Notem também a presença de dentes molariformes, isto é semelhantes a molares, dentro da caixa indicada com o mt.

Eis aqui uma vista do outro lado, onde se pode ver um dente caniniforme (ct na figura) de dimensões apreciáveis.

Os dentes molariformes possuem uma ornamentação notável (quer dizer com cristas e dentículos) e merecem ser apreciados de mais perto, eis aqui duas perspectivas.

Ora o que é que o Adamantinasuchus navae fazia com estes dentes?
A notável morfologia dentária do A. navae, o grande tamanho das órbitas, a jugal em forma de lâmina, e o grande arquear da mandíbula, constituem uma combinação morfológica única entre os crocodilomorfos conhecidos. Contrastando com outras espécies conhecidas no Cretácico, o A. navae não apresenta abrasão nos seus dentes devida a mastigação ou relacionado com movimentos anteroposteriores da mandíbula tais como observados em Sphagesaurus huenei e Mariliasuchus amarali.

A última frase tem a ver com outros crocodilomorfos que modiam movimentar a mandíbula para os lados e que mastigavam a comida, um indicador de que poderiam ter hábitos parcialmente herbívoros. Não se podendo excluir o consumo de matéria vegetal, o
A. navae seria contudo sobretudo um consumidor de carne.
A sua dieta seria provavelmente carnívora-necrófaga ou omnívora, baseada na captura de pequenas presas vertebradas e talvez incluindo também o consumo de carcaças a apodrecerem. É provável que os dentes anteriores, quer os incisiformes quer os caniniformes hipertrofiados, fossem usados para prender a comida, enquanto os molariformes posteriores teriam servido para a esmagar e cortar.

Em vários comunicados de imprensa os autores, baseando-se no grande tamanho dos olhos, sugerem hábitos nocturnos para o animal, embora nesta ilustração, que acompanha a maioria desses comunicados, apareça em pleno dia a caçar um insecto com os seus dentes peculiares.

Referências
(ref1) Pedro Henrique Nobre e Ismar de Souza Carvalho (2006). Adamantinasuchus navae: A new Gondwanan Crocodylomorpha (Mesoeucrocodylia) from the Late Cretaceous of Brazil. Gondwana Research 10(3-4): 370-8. Laço DOI.

quarta-feira, abril 18, 2007

A produção primária da biosfera

As discussões sobre o aquecimento global e sobre o que se pode fazer para o mitigar, envolvem sempre aquilo que se chama recurso a energia limpa, muitas vezes com a estampa ecológica lá gravada. O que me incomoda nessas coisas é que em geral não se avança números, referem-se sempre uns estudos quaisquer mas sem muita substância. Encontrei no entanto um artigo recente que fornece alguns números interessantes que merecem alguma reflexão. Tem tudo a ver com um modelo de utilização de etanol tal como existe neste momento no Brasil. No fundo é uma pequena provocação da minha parte aos participantes brasileiros da Roda de Ciência. Vamos então aos números. [... ler mais]

Trata-se de um artigo de F.I. Woodward na revista Current Biology. O autor introduz o aspecto do etanol numa parte já avançada do artigo. Depois de referir que o etanol é usado apenas como 20 a 25% da fracção do combustível e que há custos escondidos no uso de combustíveis para o plantio, recolha e processamento da cana do açucar, o autor dá um número que me parece assombroso. Numa tradução livre desse excerto:

Cultivar plantas para bio-combustíveis faz uma utilização intensiva do terreno enquanto a recolha de combustíveis fósseis bastante menos. Quase 4% do Brasil é utilizado para cultivar cana do açucar para produzir etanol.

Isto é 3.7 vezes a área de Portugal. O autor faz uma extrapolação para o Reino Unido:
No Reino Unido, o trigo seria a fonte provável de etanol, mas com metade da produtividade da cana do açucar. Há 26 milhões de proprietários de carros registados no Reino Unido, que em média, conduzem 15,000 km por ano. Petróleo com 22% de etanol tem uma economia média de combustível de 9 km por litro. O trigo produz 0.43 toneladas de etanol por hectare. Este dados implicam que um condutor conduzindo a distância média anual necessitaria por ano todo o etanol produzido por 0.67 hectares de uma cultura de trigo. Adicionando todos os condutores no Reino Unido isto significa dedicar cerca de 75% da área de terreno para cultivo de trigo para produzir etanol.

Em Portugal, entre veículos ligeiros pessoais e comerciais há cerca de 5 milhões de automóveis. Não faço ideia da quilometragem média no país, mas admitindo os mesmos 0.67 hectares por veículo isso dá 32,500 quilómetros quadrados, ou seja, "apenas" 35% do território. Isto para juntar apenas 22% de etanol à gasolina, que descontando os custos de produção e tratamento do trigo significam uma redução irrisória na quantidade de dióxido de carbono lançada na atmosfera. Os bio-combustíveis poderão funcionar como um paliativo mas muito reduzido, em particular face ao tremendo impacto ecológico.

Na verdade, não tive em consideração a qualidade dos terrenos e o clima, que definem a produtividade primária de uma dada região. No início do artigo os autores lançam números quanto a mim esclarecedores do potencial biológico do planeta. A figura que usam é esta, proveniente de medições pelo satélite MODIS da produção vegetal primária:

As unidades são quilograma de carbono por metro quadrado de área por ano. Estas são as quantidades de carbono fixadas pela fotossíntese. Para ter uma ideia do que este gráfico significa, nada melhor que os números dados no artigo:
A queima de combustíveis fósseis e a deflorestação em conjunto emitem cerca de 9 PgC por ano na atmosfera.

Um Pg representa uma quantidade de gramas igual a 1 seguido de 15 zeros. Mas não se preocupem em contar os zeros, o que interessa aqui são os números relativos e o P dá jeito:
Esta quantidade parece pequena relativa aos125 PgC por ano de produção primária da biosfera. Contudo, tendo em conta a respiração heterotrófica, reduz a produção primária da biosfera consideravelmente, com uma produção líquida de biosfera de 11 PgC por ano para os oceanos e 5 PgC por ano para a terra firme — quantidade semelhantes às das emissões devidas aos seres humanos. Em terra, ocorrem perdas adicionais de carbono em consequência de perturbações como incêndios e erosão dos solos, reduzindo o carbono realmente retirado da atmosfera, a produção líquida do bioma, a cerca de 2-3 PgC por ano. Isto corresponde a cerca de 20 a 30% das emissões pelos seres humanos, variando de ano para ano devido às flutuações climáticas.

A respiração heterotrófica representa os valores devidos a herbívoros, predadores, organismos decompositores, isto é, o que mantém um ecossistema saudável e viável. É impressionante verificar que queimamos neste momento 3 a 5 vezes mais carbono do que aquele que as plantas de terra firme conseguem produzir como excesso de massa todos os anos. Se retirarmos mais do que isso estaremos a sacrificar as cadeias alimentares, incluindo a dos seres humanos, que além de gasolina precisam de comida. Do meu ponto de vista, estes números arrumam a questão dos bio-combustíveis. Poderão servir como paliativo, mas não são a solução para os problemas da humanidade nem vão resolver o problema do aquecimento global. Poderão até ter um efeito perverso, na destruição ainda mais acelerada dos ecossistemas naturais.

Referências
(ref1) F.I. Woodward (2007). Global primary production. Current Biology, Vol 17, R269-R273. Versão em linha.

COMENTÁRIOS via Roda de ciência.

Partilhar os frutos e a morte

Estes filamentos na imagem são de um vírus, mas não um vírus qualquer. Esse vírus tem o nome de um rio na agora chamada República Democrática do Congo (antigo Zaire), pois foi aí que os seus efeitos foram pela primeira vez identifcados em 1976. O nome desse rio? Ébola. A febre hemorrágica do Ébola é uma doença grave e quase sempre fatal em seres humanos. É daquelas coisas que nos faz pensar imediatamente em cenários apocalípticos. Tal como referi aqui e aqui, esta doença ataca também primatas não humanos, em particular gorilas e chimpanzés. A mortandade entre esses primatas é tão ou mais intensa que entre os humanos, e em cada surto da doença os cadáveres contam-se por milhares. Um estudo recente analisou o papel o tipo de interação social entre os vários grupos de gorilas e também entre grupos de gorilas e chimpanzés en regiões onde ambas as espécies coexistem em densidades populacionais elevadas. Tudo para compreender o carácter explosivo das incidências da doença e o grande número de animais mortos em cada ocorrência. [... ler mais]

O novo trabalho é da autoria de Peter Walsh e colegas e saiu na revista American Naturalist. Numa tradução livre do resumo.

Ao longa do último decénio a febre hemorrágica Ébola tem surgido repetidamente no Gabão e no Congo, causando um grande número de surtos humanos e uma vasta mortandade de gorilas e chimpanzés. A razão do surgimento tão explosivo do ébola permanece pouco compreendida. Estudos prévios tenderam a focar factores exógenos tais como perturbação do habitat e mudanças climáticas como os promotores da emergência do Ébola, ao mesmo tempo que minimizavam a contribuição entre grupos sociais de chimpanzés e gorilas. Relatamos aqui observações recentes de comportamentos que colocam um risco de transmissão entre grupos de gorilas ou chimpanzés. Estas observações apoiam uma reavaliação da transmissão de antropóide a antropóide como um amplificador dos surtos de ébola.

Na verdade os autores não observaram ocorrências da doença, mas sim os comportamentos de diferentes grupos de gorilas e chimpanzés, mais exactamente a frequência com que os diferentes grupos (unidades) entravam em contacto, durante épocas correspondentes à maturação dos frutos de algumas árvores. Como os autores referem no corpo do artigo, alguns grupos eram extraordinariamente sociáveis:
Uma das unidades visitou as árvores de Nauclea em 26 dos 36 dias de Setembro e Outubro em que os gorilas foram observados nas árvores de Nauclea. Essa unidade respondeu por 38% das sobreposições no mesmo dia, 49% das sobreposições em dias consecutivas, e 56% das sobreposições de dois dias. Essa unidade coexistiu com nove das outras 15 unidade em pelo menos um de três intervalos de tempo (quatro, sete, e nove unidades, respectivamente).

Os autores estabelecem aqui um curioso paralelo com o que se passa no caso do SIDA:
Estas observações sugerem que algumas unidades sociais de gorilas podem desempenhar um papel na transmissão da doença análogo ao das prostitutas na propagação da SIDA no sudoeste africano, disseminando rapidamente o Ébola entre redes de indivíduos que de outra forma interagiriam pouco. Mostrou-se recentemente que tais "super transmissores" desempenham um papel crítico na dinãmica de doenças emergentes explosivas, incluindo o Ébola em humanos.

O contacto social entre os grupos ultrapassa mesmo a barreira das espécies. Já se sabia que os chimpanzés e gorilas partilhavam alguns dos recursos alimentares, mas não que os exploravam em simultâneo. Isso foi observado pela primeira vez pelos autores:
De 2002 a 2004, observámos chimpanzés de quatro comunidades diferentes a alimentarem-se em árvores de fruto do género Ficus. Em 5 de 75 dias (isto é, uma vez em cada 5 dias de alimentação em figueiras) os chimpanzés ocuparam uma árvore simultaneamente com os gorilas. A co-ocupação durou em média 47 minutos, com uma média de 10.4 chimpanzés e 3.8 gorilas envolvidos. As taxas reais de co-ocupação são provavelmente mais elevadas porque os gorilas parecem ser demovidos pela presença de observadores.

Este tipo de comportamentos certamente potenciam a propagação da doença. Há ainda um aspecto que me escapou enquanto tirei notas deste artigo na biblioteca, mas que é referido no weblog de John Hawks. Os autores do artigo referem ter observado um grupo que se deparou com um cadáver ensanguentado de outro grupo a parar e observá-lo. Numa doença como o Ébola, a possibilidade de membros de um grupo se depararem com membros mortos de outros grupos é também um factor de risco.

Ficha técnica
Imagem da autoria de Cynthia Goldsmith e do Centers for Disease Control and Prevention (CDC), obtida através da Public Health Image Library (PHIL)

Referências
(ref1) Peter D. Walsh, Thomas Breuer, Crickette Sanz, David Morgan, and Diane Doran-Sheehy (2007). Potential for Ebola Transmission between Gorilla and Chimpanzee Social Groups. Am. Nat. 2007. Vol. 169, pp. 684-689. Resumo.

terça-feira, abril 17, 2007

A difícil escolha: mel ou telefone?

Esta é a abelha melífera europeia, da espécie Apis mellifera. Um animal até há pouco tempo comum, mas que começa a rarear, e tudo pode ter que ver com os hábitos de vida modernos. Ao ler o Living the Scientific Life deparei-me com algo que me tinha escapado. Um estudo que sugere que uma das causas para o desaparecimento das abelhas, que tem ocorrido nos Estado Unidos da América e em vários países europeus, possa estar ligado a uma inovação tecnológica de certa forma ainda recente. Que inovação é essa? Pois bem, nada mais nada menos que o telemóvel (telefone celular no Brasil). Eu estou ainda à procura de uma verdadeira referência, para já só encontrei esta apresentação em alemão. Tudo se baseia num estudo de Jochen Kuhn, da Universidade de Landau na Alemanha, que observou que colocando um telemóvel na vizinhança de uma colmeia as abelhas passavam a evitá-la. Até encontrar uma referência mais satisfatória, deixo isto aqui à laia de curiosidade. Se esta pista estiver correcta então as abelhas estão condenadas.

Ficha técnica
Imagem cortesia de John Severns a partir da Wikimedia Commons.

quinta-feira, abril 12, 2007

Treinada para enfrentar as feras

Esta ave é uma ema, da espécie Rhea americana, a maior ave brasileira. Trata-se de um animal ameaçado na natureza, mas que pode ser criado em cativeiro, pelo que esforços de reintrodução serão sempre possíveis. Uma das questões na reintrodução de animais criados em cativeiro é como irão eles reagir aos predadores. Na verdade, muitos desses animais são ingénuos ao ponto de nem reconhecerem uma potencial ameaça. Daí que seja conveniente treiná-los de alguma forma. Claro que também é importante que o animal seja capaz de recordar os treinos. Como se comportam então as emas nesses dois aspectos? Aparentemente bem, e posso desde já adiantar que o processo de treino envolveu cadeiras. [... ler mais]

O trabalho que visa desenvolver os mecanismos de auto-preservação das emas e da autoria de Cristiano S. de Azevedo e Robert J. Young, investigadores da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, e foi publicado na Revista Brasileira de Zoologia (ref1) há sensivelmente um ano. Os autores facultam um resumo em português que diz o seguinte:

O treinamento anti-predação é uma ferramenta poderosa usada atualmente para ajudar os animais reintroduzidos a reconhecer e escapar de seus predadores. Testar a capacidade de memória dos animais após o treinamento é importante para se avaliar a validade de sua aplicação. Um grupo de 15 emas nascidas em cativeiro foi estudado no zoológico de Belo Horizonte. Oito aves foram treinadas contra predadores e sete não. Após o término dos treinamentos, foram realizados quatro testes de memória após 40, 55, 70 e 88 dias.

Os autores na introdução citam um factor importante na motivação deste estudo. Segundo lhes foi comunicado por Ângela Faggioli, bióloga do zoológico de Belo Horizonte, num esforço de reintrodução de emas no estado brasileiro de Minas Gerais todos os animais morreram, devido a ataques de cães selvagens. O resumo prossegue então com os aspectos relativos à memória:
Os testes de memória consistiam em apresentar um modelo de predador para as emas e anotar as respostas comportamentais exibidas. Foram medidas a capacidade de memória das aves, a influência do tamanho do grupo no comportamento das aves e a influência do treinamento anti-predação na estimulação de respostas comportamentais adequadas. Os resultados mostraram que as emas retiveram a capacidade de reconhecimento do predador por quase três meses após o término dos treinamentos, que o tamanho do grupo afeta as respostas das aves (mais comportamentos de defesa quando sozinhas) e que o treinamento anti-predação é essencial para estimular uma resposta comportamental adequada, uma vez que o grupo não treinado se comportou tranqüilamente perante o predador. Conclui-se que o treinamento anti-predação é válido para futuros programas de reintrodução de emas, uma vez que a capacidade de memória dessas aves é considerável.

Basicamente uma ema não treinada e lançada na natureza é uma ema morta. Há vários aspectos interessantes no corpo do artigo. Comecemos então com o treino. As emas eram treinadas num recinto diferente daquele onde residiam. O modelo do recinto de treino pode ser visto na figura abaixo. Era cercado com arame, com um dos lados coberto também com uma faixa de plástico opaco, mas com uma janela. Nessa janela fazia-se então deslizar um modelo de um predador (uma onça na ilustração).

Os treinos eram relativamente simples. Mostrava-se um modelo de predador na janela durante 3 a 5 segundos, e então um ser humano vestindo uma máscara e munido de uma rede entrava no recinto e perseguia as emas. O humano disfarçado saia, e voltava então a mostrar-se o modelo de predador na janela durante 3 a 5 segundos. A experiência durava cerca de um minuto, tendo cada animal sido submetido a 15 sessões. Os modelos de predador usados na experiência foram: uma onça empalhada, um cachorro vivo, e uma cadeira. A cadeira era apenas aquilo que se chama um controle, apenas para verificar que os animais não desatavam a ficar inquietos só por aparecer algo na janela. Não é dito explicitamente no texto mas suponho que não houvesse perseguição quando aparecia a cadeira. Se bem que a ideia de que há por aí emas que associam as cadeiras a predadores terríveis tem o seu quê de divertido.

A memória dos animais foi testada mostrando às emas, no mesmo recinto, a tal onça empalhada, sem que o humano disfarçado entrasse no recinto, e registando as suas reações, quer sozinhas, quer acompanhadas de outras emas. A resposta isolada ou em grupos é um aspecto importante pois as emas vivem grupos e as aves poderão aprender umas com as outras. Os autores fizeram a mesma coisa a um grupo de emas que não tinham sido treinadas. Tal como referido no resumo, as emas treinadas mantiveram a sua capacidade de reação mesmo quando testadas três meses apos o período de treino, enquanto as não treinadas se mostravam bastante mais tranquilas. As emas treinadas mantinham uma postura de vigilância e defesa durante cerca de 15 minutos após o desaparecimento do modelo de predador, mesmo quando se tinham passado 70 dias após o início do processo de treino. Claro que o passo seguinte deste estudo é ver como se comportam as aves numa reintrodução num habitat natural. É um exame práctico um pouco mais drástico que o dos liceus e faculdades: quem falha pode acabar morto.

Existe ainda um outro aspecto importante deste estudo, que os autores avançam na discussão dos resultados, e que convém referir. Após terem sido treinadas as emas mostraram um conjunto de comportamentos, tais como saltarem para fugirem de predadores, ou colarem o corpo ao solo, imobilizando-se. Tais comportamentos não tinham sido observados antes nas emas do zoológico de Belo Horizonte. Ou seja, apesar de nascidas em cativeiro, as emas são capazes de comportamentos antipredatórios, mas esses comportamentos só surgem após um período de treino.

Ficha técnica
Imagem da ema no início da contribuição a partir da Wikimedia Commons.

Referências
(ref1) Cristiano S. de Azevedo e Robert J. Young (2006). Do captive-born greater rheas Rhea americana Linnaeus (Rheiformes, Rheidae) remember antipredator training?. Rev. Bras. Zool. 23(1): 194-201. Laço DOI.


quarta-feira, abril 11, 2007

Dormir destapado para aquecer

A contribuição de hoje é dedicada aos hábitos de sono do tamanduá bandeira, de seu nome científico Myrmecophaga tridactyla. Descobri um artigo em que se investiga algo que parece trivial mas que se desconhecia, nomeadamente se, para dormir, o tamanduá bandeira se cobre sempre com a sua exuberante cauda. A postura típica dos tamanduás a dormitarem é a que se mostra na imagem, uma ilustração de um friorento tamanduá observado no dia 24 de Julho de 2001, quando a temperatura ambiente era de "apenas" 28.5 graus Celsius. Percebe-se que precise de um cobertor. Ora qual é então a resposta? O tamanduá cobre-se sempre, ou não, com essa espécie de penacho, cujos pêlos podem atingir 40 centímetros de comprimento? [... ler mais]

Ísis Meri Medri e Guilherme Mourão resolveram pôr isso em pratos limpos e a resposta é dada neste resumo muito curto de um artigo na Revista Brasileira de Zoologia (ref1).

A literatura científica sobre tamanduá-bandeira afirma que o animal dorme com sua cauda dobrada sobre o corpo para conservar a temperatura corporal. Entretanto, observações desta espécie em hábitats naturais indicam variações neste comportamento, dependendo da temperatura ambiente.

Pode parecer estranho mas este resultado nunca tinha sido publicado. Incríveis as coisas que ignoramos. Os autores referem no artigo dados sobre a fisiologia e fisionomia do tamanduá bandeira importantes para compreender esta questão do sono. Os tamanduás bandeira, animais tropicais, possuem um espesso casaco de peles. Isso ocorre porque possuem um nível metabólico bastante mais baixo que animais endotérmicos de tamanho semelhante, que tem possivelmente a ver com a sua dieta de formigas e térmitas (cupins) que apesar de abundantes são pobres em nutrientes.

Os hábitos de sono do tamanduá bandeira foram descobertos como resultado de um estudo efectuado em 2001 no Brasil, no Pantanal no estado de Mato Grosso do Sul. O trabalho envolveu a captura de alguns animais, que foram equipados com transmissores rádio e depois libertados, para se poderem estudar os seus movimentos e alguns aspectos do seu comportamento. O sono foi um dos comportamentos que pode ser analisado. Os tamanduás bandeira fazem pequenas cavidades com as garras em zonas abrigadas onde se deitam. Em 107 avistamentos os tamanduás estavam de facto a dormir na pose tradicional com a cauda a cobrir o corpo, mesmo em dias em que a temperatura era elevada, acima de 30 graus Celsius. A postura tradicional com a cauda a cobrir o corpo destina-se, segundo alguns autores referenciados no artigo de Ísis Meri Medri e Guilherme Mourão, a ajudar a conservar o calor do corpo, e ao mesmo tempo camuflar o animal adormecido.

A excepção ocorreu no dia 21 de Junho de 2001, numa manhã algo fria, com uma temperatura de apenas 17 graus Celsius. Os autores fizeram o seguinte desenho da postura desse animal:

Este tamanduá dormia com a cauda bem esticada sobre o chão, expondo todo o corpo aos raios do Sol. Os autores sugerem que estava a usar os raios do Sol para aumentar a sua temperatura corporal. Portanto já sabem, os tamanduás quando têm frio põem o cobertor de parte e usam a energia solar.

Ficha técnica
Imagem no início da contribuição cortesia de Dave Pape, a partir da Wikimedia Commons.

Referências
(ref1) Ísis Meri Medri, Guilherme Mourão (2005). A brief note on the sleeping habits of the giant anteater - Myrmecophaga tridactyla Linnaeus (Xenarthra, Myrmecophagidae). Rev. Bras. Zool. 22(4): 1213-1215. Laço DOI

terça-feira, abril 10, 2007

Os pinheirinhos urticantes

Esta é uma fotografia de uma das minhas cenas favoritas. As coisas brancas são fáceis de identificar como sendo pequenos casulos. Trata-se dos locais de onde emergiram pequenas vespas. Vespas essas que se alimentaram da estrutura de onde provêm aquilo que parecem pequenos pinheirinhos verdes. Os casulos abrigavam larvas de pequenas vespas parasíticas, de uma espécie não identificada, vorazes devoradoras de carne de lagarta. Os "pinheirinhos" são na verdade os apêndices urticantes de um dos estádios larvares da Automeris illustris, cujo adulto é a mariposa vulgarmente conhecida no Brasil como "olho de pavão alaranjado". Encontrei esta imagem enquanto procurava responder ao pedido de uma leitora que tinha encontrado uma lagarta preta e vermelha a comer o seu hibisco. Não consegui identificar a lagarta, mas isso serviu para me convencer de uma coisa: não se fala o suficiente sobre lagartas na blogosfera.[... ler mais]

Para atenuar um pouco essa lamentável lacuna resolvi roubar descaradamente material de um artigo de Alexandre Specht, Aline C. Formentini e Elio Corseuil, na Revista Brasileira de Zoologia (ref1), sobre a biologia da Automeris illustris. Esse artigo possui fotos fabulosas do ciclo de vida desta lagarta, incluindo a fantástica foto dos pequenos casulos. Pena que não deu para ver as vespinhas a emergirem. O resumo do artigo é algo lacónico mas, para um artigo da especialidade, não é tão difícil de perceber como isso. Além disso, o resumo e o artigo são em português. Não precisei de fazer traduções.

Objetivou-se estudar a biologia de Automeris illustris (Walker, 1855), um hemileucíneo polifitófago considerado praga secundária da eucaliptocultura e cujas lagartas podem provocar erucismo. Os parâmetros biológicos foram obtidos em condições controladas de temperatura: 25 ± 1ºC, UR 70 ± 10% e fotofase de 14 horas, com observações diárias. Foram avaliados, em cada fase de desenvolvimento, aspectos morfológicos e etológicos, duração e viabilidade. Para relacionar as plantas hospedeiras foram reunidos dados de material coletado em campo e já referidos em bibliografia. Nas condições de laboratório observou-se que o ciclo de vida necessitou de aproximadamente 121 dias, cujos períodos médios das fases de ovo, lagarta, pré-pupa, pupa e adulta foram de 10,60; 80,56; 3,58; 19,17 e 7,83 dias, respectivamente. As lagartas passaram por seis ínstares e tiveram uma razão média de crescimento de 1,47. Observou-se um alto grau de polifitofagia sendo relacionadas 51 plantas hospedeiras pertencentes a 28 famílias. O potencial biótico foi estimado em 8.719.556 indivíduos ao ano.

Basicamente o que os autores fazem no resumo é identificar o tipo de mariposa (hemileucíneo) e as suas preferências alimentares. É um polifitófago, isto é pode comer uma grande variedade de plantas. Embora refiram a vastidão da dieta desta lagarta os autores indicam também mais adiante, no texto do artigo, um facto curioso. Tendo começado a sua vida a comer uma planta as lagartas não gostam de mudar, recusando-se mesmo nalguns casos a comer um alimento de substituição. Ou seja as lagartas respeitam a escolha da sua mãe. Esta parte do resumo refere também o "erucismo". Essa é a parte dolorosa da história. Os pinheirinhos que saem do dorso da lagarta são urticantes e provocam dor e uma sensação desagradável a todos os que têm a infeliz ideia de lá ir mexer. Portanto aviso desde já aqueles que se sintam inspirados por esta contribuição: tenham muita cautela no trato destes animais. Não lhes toquem com os dedos nem os coloquem em contacto com a vossa pele. Dito de outra forma: não lhes peguem nem lhes façam festas.

Finalmente temos os números. O que é o tal potencial biótico? Bem é o número de fêmeas descendentes que uma só fêmea pode produzir ao final de um ano. Para esta lagarta é coisa pouca, uns meros 8 milhões e 700 e tal mil. Para mostrar como se chega a esse número é preciso começar a história do início, no fundo uma boa desculpa para roubar mais imagens do artigo. Tudo começou com a selecção de uns quantos ovos, semelhantes aos da imagem abaixo. Os ovos têm cerca de 1.8 milímetros de comprimento. São pequenos mas claramente visíveis a olho nu.

Desses ovos saem pequenas e vorazes lagartas, que se mostam aqui no estádio de primeiro instar, ou seja antes da primeira muda de exosqueleto.

Estas lagartinhas crescem, passam por uma série de mudas, atigindo este maravilhoso aspecto no último instar:

Estas maravilhosas criaturas são animais gregários. Os autores começaram o estudo com 150 lagartas mantidas separadamente, só que nenhuma atingiu o estádio de adulto. Por causa disso a partir daí passaram a colocá-las em grupinhos, o que fez maravilhas no que se refere à sua taxa de sobrevivência.

Quando perturbadas as lagartas adoptavam uma postura de defesa, que eu tinha que mostrar aqui pois é seguramente a imagem mais extraordinária do artigo:

Os autores referem a este propósito mais um dos aspectos do comportamento gregário destas lagartas:
Ao realizar a troca de alimento observou-se que ao serem perturbadas, as lagartas contraiam o corpo e eriçavam os escolos e emitiam um ruído ou estridulação semelhante a um estalo. Após alguns exemplares da gaiola de criação emitirem os estalos todas as lagartas do mesmo recipiente tomavam posição defensiva, como um efeito cascata; muitas delas se desprendiam da planta hospedeira, contorcendo-se agressivamente, provavelmente como uma reação comportamental que visa intimidar o agressor.

Não só são gregárias como comunicam umas com as outras através de sons. Fantástico.

Marcando o final do sexto e último instar as larvas começavam a fazer uma espécie de casulos, misturando seda, folhas e detritos vegetais, pupavam e davam origem às mariposas olho de pavão alaranjado que se mostram abaixo:

A da esquerda é uma fêmea, a da direita um macho. O traço a branco corresponde a um centímetro. Os adultos não se alimentam e não vivem muito tempo. O ciclo de vida, desde o ovo até um adulto a pôr ovos, demorou cerca de 122 dias, o que significa que se pode repetir três vezes por ano. Das mariposas emergentes os investigadores selecionaram 20 casais e repetiram a história, para determinarem as taxas de sobrevivência.

O número médio de ovos por fêmea observado neste estudo foi de 514.75, dos quais em média 411.65 atingiam a idade adulta, ou seja uma taxa de sobrevivência de 79.87 por cento. Daqui é fácil atingir o valor do potencial biótico dado no resumo. Comecemos com uma fêmea, que põe os tais 515 ovos, a partir dos quais 412 adultos são gerados e se reproduzem. Desses adultos metade (206) váo ser fêmeas. Isto ao fim de 122 dias. Se aguardarmos mais 122 dias , cada uma dessas 206 fêmeas terá produzido outras 206, o que significa que a nossa fêmea original tem neste momento 42,436 descendentes fêmeas. Se aguardarmos então mais 122 dias, teremos que multiplicar esse número por 206, significando que a nossa fêmea original terá nesse momento 8 milhões 741 mil e 816 descendentes fêmeas. Ou seja, sem problemas de predadores ou de condições atmosféricas adversas, e com alimento em abundância, como sucede nas monoculturas intensivas, basta uma fêmea para termos uma praga. Esta espécie é aliás considerada como uma praga secundária dos eucaliptais.

Referências
(ref1) Alexandre Specht; Aline C. Formentini; Elio Corseuil (2006). Biologia de Automeris illustris (Walker) (Lepidoptera, Saturniidae, Hemileucinae). Rev. Bras. Zool., vol.23, no.2, p.537-546. Laço DOI

quarta-feira, abril 04, 2007

O frio que veio da Holanda

A roda de ciência decidiu focar este mês o problema do aquecimento global. Confesso que se a política por trás da coisa me interessa pouco, os estudos das evoluções do clima, e dos factores que entram em jogo, são no entanto fascinantes. Enquanto procurava algo sobre o tema encontrei um artigo curioso, em que o autor colocava a questão: qual a razão que levou os holandeses às costas da América do Norte 400 anos atrás? A resposta está no roedor de ar receoso que se mostra na imagem: o castor americano, de seu nome científico Castor canadensis. O autor explica também qual o motivo: o frio que se na época se fazia sentir na Europa. O início do século XVII corresponde à parte mais fria daquilo que se conhece como a Pequena Idade do Gelo. Não espanta assim que existisse uma procura muito grande por casacos de peles (em especial castor) por parte das classes altas e médias da Europa. O resultado foi um extermínio generalizado dos castores à escala planetária, e em particular na América do Norte. Os castores esgotaram-se, os holandeses partiram, mas os efeitos dramáticos na paisagem permaneceram. O que eu ignorava é que até talvez o clima tenha sido afectado. [... ler mais]

Os castores são criaturas capazes de modificar efectivamente a paisagem onde vivem, a partir das estruturas que constroem, as famosas barragens.

Estas barragens têm um impacto ecológico tremendo. O efeito mais óbvio é a capacidade de retenção de água, funcionando as barragens como uma espécie de atenuador de acontecimentos meterológicos extremos, em particular secas. Estas estruturas retêm também sedimentos e material orgânico e assim limitam o fluxo de carbono a ser transportado pelos rios e depositado nos fundos oceânicos. As zonas húmidas criadas pelos castores são na verdade uma fonte de carbono atmosférico, pois libertam quantidade significativas de dióxido de carbono e metano para a atmosfera. Como todos sabemos, pois os meios de comunicação têm-nos martelado a cabeça constantemente com estas coisas, estes são gases associados ao efeito estufa. É aqui que entra o artigo de J. C.Varekamp na revista Eos (ref1) de que falei no início da contribuição. Eis aqui uma das figuras do artigo, mostrando a variação de temperatura nos últimos 1000 anos no norte da Europa.

Vemos que houve um período "quente" por volta do ano 1000, altura em que os Viquingues ocuparam a Gronelândia e se estabeleceram mesmo no que é hoje o Canadá, na Terra Nova. Esse é o chamado período quente medieval (PQM na figura), a que se sucedeu um período de arrefecimento, a Pequena Idade do Gelo (PIG na figura). A barra cinzenta marca a chegada dos impiedosos e metódicos exterminadores de castores holandeses. Deve notar-se no entanto que os holandeses tiveram companhia nessa tarefa, que tinha começado muito antes, e levado à erradicação dos castores um pouco por todo o planeta. Um pouco a partir de 1900 começou o tal aquecimento global moderno (AGM), que faz as manchetes dos jornais. O AGM "disparou" nos últimos 20 a 30 anos, mas essa parte está fora do período representado neste gráfico. A questão dos castores é abordada pelos autores nesta passagem no final do artigo:

A redução ao nível do planeta nas barragens dos castores, que começou muito antes, pode mesmo ter afectado a severidade da Pequena Idade do Gelo como resultado da menor produção de dióxido de carbono e metano das região alagadas devidas aos castores. A erradicação global dos castores (possivelmente 50 milhões mortos apenas na América do Norte) pode ter baixado significativamente o fluxo de metano e dióxido de carbono das barragens, o que, juntamente com as possivelmente já reduzidas concetrações atmosféricas da época, pode ter conduzido a um efeito de estufa reduzido. A sociedade industrial é muitas vezes criticada por causar danos ambientais severos, mas as ideias apresentadas aqui sugerem que mesmo durante os períodos coloniais as acções humanas podem ter afectado fortemente os ambientes locais e possivelmente mesmo o clima global.

Não deixa de ser curioso que os holandeses, ao procurarem resguardar-se do frio, estavam a contribuir para perpetuar esse mesmo frio.

Talvez seja o meu carácter pessimista, mas quando li isto pensei que este estudo pode servir de argumento contra a reintrodução dos castores. Afinal estes simpáticos animais irão contribuir para o aquecimento global, são maus da fita.

Ficha técnica
Imagem de castor no Carburn Park em Calgary, Alberta no Canadá, no início da contribuição cortesia Chuck Szmurlo, obtida através da Wikimedia Commons.
Imagem da barragem de castor cortesia de Walter Siegmund, obtida através da Wikimedia Commons.
Imagem de Castor mostrando a cauda cortesia de Tom Smylie, obtida através da páginas do U.S. Fish and Wildlifer Service.

Referências
(ref1) J. C.Varekamp (2006). The Historic Fur Trade and Climate Change. Eos, Vol. 87, No. 52, 26.

COMENTÁRIOS via roda de ciência.

domingo, abril 01, 2007

Um mico-estrela carrega sempre algo do irmão dentro de si

Ela era de raça divina, não humana: leão pela frente, serpente por trás, cabra pelo meio do corpo terrível, ela soprava o ardor de um fogo flamejante.

Esta é uma passagem do canto VI da Ilíada em que se descreve a Invencível Quimera, uma criatura formada pela mistura de animais distintos. O termo adquiriu um significado um pouco mais vasto em português, mas continua a ser usado nesse contexto em biologia. As quimeras existem de facto, e um razoável número delas pulula nas matas brasileiras. Estas quimeras brasileiras não cospem fogo pelas ventas, nem possuem um ar terrível: são na verdade os simpáticos Callithrix kuhlii, os micos-estrela de que falei na contribuição anterior. Eu sei que hoje é o famigerado dia das mentiras, mas trata-se de verdade verdadeira. A sério. Os micos-estrela são aquilo a que se chama quimeras genéticas. [... ler mais]

Como referi na contribuição anterior sobre os micos-estrela, os machos ocupam-se dos jovens carregando-os durante o dia, para que a mãe se possa alimentar. O mais bizarro nestes animais, e algo que deveras me surpreendeu, é que as relações de parentesco entre os machos e as crias de que cuidam não são claras. Um exemplo: é possível que um macho que tenha de facto contribuído para a fecundação das crias não seja pai de nenhuma, apenas tio. Por outro lado, dependendo da relação de parentesco com os outros machos do grupo, é possível que um macho que não tenha acasalado com a fêmea seja, apesar de tudo, o pai genético de algumas crias. Confusos? Bem, tem tudo a ver com o que se passa na barriga da mãe.

Os micos-estrelas nascem aos pares, e sucede que durante a gestação as placentas dos dois irmão se fundem e eles partilham assim uma rede de vasos sanguíneos através da qual as células estaminais de um animal podem "colonizar" o outro. Ora os pequenitos servem-se disso com resultados surpreendentes, algo que é descrito num artigo de Ross, French e Ortí na revista Proc. Natl. Acad. Sci. USA (ref1). Numa tradução livre do resumo:
A formação de quimeras genéticas viáveis nos mamíferos, através da transferência de células entre irmãos no útero é rara. Mostramos aqui, utilizando marcadores de microssatélites de ADN, que os fenómenos quiméricos em micos gémeos (Callithrix kuhlii) não se limita aos tecidos hematopoiéticos derivados do sangue como tinha sido descrito anteriormente.

Na verdade já se sabia que algumas células passavam de um gémeo para outro através dos vasos sanguíneos que partilham. O que não se sabia era a extensão do fenómeno, em particular este aspecto que me deixou siderado:
Todos os tipos de tecidos somáticos revelaram ser quiméricos. Mais notável ainda, demonstrou-se que os tecidos da linha germinal eram quiméricos, algo nunca antes documentado como ocorrendo naturalmente num primata.

Os tecidos da linha germinal são os tecidos das gónodas que se convertem em gâmetas, ou seja que contêm material genético a passar à geração seguinte. Impressionante, os ovos ou esperma de um mico podem na verdade ser do irmão ou irmã. As implicações são óbvias:
De facto, verificámos que os micos quiméricos transmitem com frequência à sua própria descendência os alelos do irmão que adquirem no útero. Isso significa que um indivíduo que contribui gâmetas para a descendência não é necessariamente o pai genético dessa descendência.

Os autores discutem no artigo essencialmente os aspectos relativos ao cuidado cooperativo das crias nestes primatas, pois é claro que isto baralha completamente as relações de parentesco. Mas há outros aspectos, em particular um bastante sombrio que é discutido por Carl Zimmer no seu blog the Loom. Trata-se do velho problema de que o que serve os interesses da mãe nem sempre serve os interesses da cria. Carl Zimmer entrevistou um estudioso, David Haig, que tinha abordado esta questão em 1999, quando apenas se conheciam aspectos quiméricos no sangue. Segundo Zimmer, Haig sugere que os gémeos além de células estaminais poderiam também enviar celúlas dos mecanismos imunitários para se atacarem mutuamente. Isso poderia explicar porque razão os micos estrelas possuem tão poucos receptores para reconhecimento pelas células do sistema imunitário, o que os torna tão sensíveis a infecções virais. Isso faria sentido se se tratasse de uma defesa contra ataques do sistema imunitário do irmão. Este aspecto dos micos arrepia-me e faz-me pensar que afinal estas quimeras também têm o seu quê de feroz.

Ficha técnica
Imagem de mico-estrela obtida a partir das páginas do Callitrichid Research Center da University of Nebraska Omaha.
Imagem da quimera retirada desta página da Wikimedia Commons que mostra o fresco Bellerophon tötet die Chimäre no Neues Museum em Berlim na Alemanha.

Referências
(ref1) C. N. Ross, J. A. French, and G. Ortí. Germ-line chimerism and paternal care in marmosets (Callithrix kuhlii). Proc. Natl. Acad. Sci. USA, Laço DOI.