quarta-feira, abril 18, 2007

A produção primária da biosfera

As discussões sobre o aquecimento global e sobre o que se pode fazer para o mitigar, envolvem sempre aquilo que se chama recurso a energia limpa, muitas vezes com a estampa ecológica lá gravada. O que me incomoda nessas coisas é que em geral não se avança números, referem-se sempre uns estudos quaisquer mas sem muita substância. Encontrei no entanto um artigo recente que fornece alguns números interessantes que merecem alguma reflexão. Tem tudo a ver com um modelo de utilização de etanol tal como existe neste momento no Brasil. No fundo é uma pequena provocação da minha parte aos participantes brasileiros da Roda de Ciência. Vamos então aos números. [... ler mais]

Trata-se de um artigo de F.I. Woodward na revista Current Biology. O autor introduz o aspecto do etanol numa parte já avançada do artigo. Depois de referir que o etanol é usado apenas como 20 a 25% da fracção do combustível e que há custos escondidos no uso de combustíveis para o plantio, recolha e processamento da cana do açucar, o autor dá um número que me parece assombroso. Numa tradução livre desse excerto:

Cultivar plantas para bio-combustíveis faz uma utilização intensiva do terreno enquanto a recolha de combustíveis fósseis bastante menos. Quase 4% do Brasil é utilizado para cultivar cana do açucar para produzir etanol.

Isto é 3.7 vezes a área de Portugal. O autor faz uma extrapolação para o Reino Unido:
No Reino Unido, o trigo seria a fonte provável de etanol, mas com metade da produtividade da cana do açucar. Há 26 milhões de proprietários de carros registados no Reino Unido, que em média, conduzem 15,000 km por ano. Petróleo com 22% de etanol tem uma economia média de combustível de 9 km por litro. O trigo produz 0.43 toneladas de etanol por hectare. Este dados implicam que um condutor conduzindo a distância média anual necessitaria por ano todo o etanol produzido por 0.67 hectares de uma cultura de trigo. Adicionando todos os condutores no Reino Unido isto significa dedicar cerca de 75% da área de terreno para cultivo de trigo para produzir etanol.

Em Portugal, entre veículos ligeiros pessoais e comerciais há cerca de 5 milhões de automóveis. Não faço ideia da quilometragem média no país, mas admitindo os mesmos 0.67 hectares por veículo isso dá 32,500 quilómetros quadrados, ou seja, "apenas" 35% do território. Isto para juntar apenas 22% de etanol à gasolina, que descontando os custos de produção e tratamento do trigo significam uma redução irrisória na quantidade de dióxido de carbono lançada na atmosfera. Os bio-combustíveis poderão funcionar como um paliativo mas muito reduzido, em particular face ao tremendo impacto ecológico.

Na verdade, não tive em consideração a qualidade dos terrenos e o clima, que definem a produtividade primária de uma dada região. No início do artigo os autores lançam números quanto a mim esclarecedores do potencial biológico do planeta. A figura que usam é esta, proveniente de medições pelo satélite MODIS da produção vegetal primária:

As unidades são quilograma de carbono por metro quadrado de área por ano. Estas são as quantidades de carbono fixadas pela fotossíntese. Para ter uma ideia do que este gráfico significa, nada melhor que os números dados no artigo:
A queima de combustíveis fósseis e a deflorestação em conjunto emitem cerca de 9 PgC por ano na atmosfera.

Um Pg representa uma quantidade de gramas igual a 1 seguido de 15 zeros. Mas não se preocupem em contar os zeros, o que interessa aqui são os números relativos e o P dá jeito:
Esta quantidade parece pequena relativa aos125 PgC por ano de produção primária da biosfera. Contudo, tendo em conta a respiração heterotrófica, reduz a produção primária da biosfera consideravelmente, com uma produção líquida de biosfera de 11 PgC por ano para os oceanos e 5 PgC por ano para a terra firme — quantidade semelhantes às das emissões devidas aos seres humanos. Em terra, ocorrem perdas adicionais de carbono em consequência de perturbações como incêndios e erosão dos solos, reduzindo o carbono realmente retirado da atmosfera, a produção líquida do bioma, a cerca de 2-3 PgC por ano. Isto corresponde a cerca de 20 a 30% das emissões pelos seres humanos, variando de ano para ano devido às flutuações climáticas.

A respiração heterotrófica representa os valores devidos a herbívoros, predadores, organismos decompositores, isto é, o que mantém um ecossistema saudável e viável. É impressionante verificar que queimamos neste momento 3 a 5 vezes mais carbono do que aquele que as plantas de terra firme conseguem produzir como excesso de massa todos os anos. Se retirarmos mais do que isso estaremos a sacrificar as cadeias alimentares, incluindo a dos seres humanos, que além de gasolina precisam de comida. Do meu ponto de vista, estes números arrumam a questão dos bio-combustíveis. Poderão servir como paliativo, mas não são a solução para os problemas da humanidade nem vão resolver o problema do aquecimento global. Poderão até ter um efeito perverso, na destruição ainda mais acelerada dos ecossistemas naturais.

Referências
(ref1) F.I. Woodward (2007). Global primary production. Current Biology, Vol 17, R269-R273. Versão em linha.

COMENTÁRIOS via Roda de ciência.