quinta-feira, janeiro 31, 2008

Ainda mais medos dos elefantes

A imagem mostra um elefante africano, da espécie Loxodonta africana, a alimentar-se dos ramos de uma acácia da espécie Acacia tortilis. Um elefante adulto é uma criatura que come muito, cerca de 110 toneladas de folhagem por ano. Uma parte pequena dessa folhagem vem das incursões, cada vez mais frequentes, que os elefantes fazem aos campos de cultivo dos humanos. Para evitar conflitos onde, apesar do tamanho, a parte mais fraca é o elefante, há que procurar formas não letais para afastar os elefantes dos terrenos agrícolas. É preciso mandar aos animais a mensagem de perigo mas sem que eles estejam de facto em risco de vida. Alguns investigadores pensam que a solução para o problema pode ser encontrada nestas árvores. Os elefantes não se alimentam assim tão à vontade de todas as acácias que encontram no seu caminho. Por vezes evitam as árvores, receosos, pois encontram-se aí criaturas que temem e que evitam. Ora do que é que os elefantes têm tanto medo? Não, não são os ratos de que falei na contribuição anterior, são criaturas muito mais pequenas. Os seres que tanto atemorizam os elefantes são abelhas selvagens africanas, da espécie Apis mellifera africana. Essas abelhas são ferozes, chegando a perseguir os elefantes durante 3 a 5 km. Os pequenos insectos são uma das grandes esperanças para limitar o antagonismo, que existe em África, entre a crescente população humana, e os elefantes. [... ler mais]

Um dos trabalhos que descreve o comportamento dos elefantes face às abelhas é da autoria de Fritz Vollrath e Iain Douglas-Hamilton, e foi publicado na revista Naturwissenschaften (ref1). Numa tradução livre do resumo:

Os números de elefantes têm caído em Afríca e na Ásia nos últimos 30 anos enquanto o número de humanos tem aumentado, em ambos os casos de forma substancial. O atrito entre estas duas espécies atingiu níveis que são altamente preocupantes quer do ponto de vista ecológico, quer político. Devem procurar-se formas e meios para mantê-las afastadas em áreas sensíveis para a sobrevivência de cada espécie. A agressiva abelha africana pode ser um desses métodos. Mostramos aqui que as abelhas africanas impedem os elefantes de danificar a vegetação e as árvores que acolhem as suas colmeias. Argumentamos que as abelhas podem ser utilizadas de forma proveitosa para proteger, dos danos dos elefantes, não apenas as árvores selecionadas, mas também áreas selecionadas.

No auge da estação seca, os autores do artigo suspenderam 30 colmeias vazias, e seis colmeias ocupadas, em árvores da espécie Acacia xanthophloea, num local designado Mpala Ranch, no Planalto de Laikipia, no Quénia. Compararam então o que acontecia às árvores com colmeias em relação a 36 outras árvores da mesma espécie sem colmeias. A época em que os elefantes atacam as árvores é durante a transição da estação seca para a estação chuvosa. Das árvores sem colmeias, apenas 10% escaparam ao apetite voraz dos elefantes durante esse período. Das árvores com colmeias apenas um terço foi tocada pelos elefantes, e nenhuma das árvores com abelhas nas colmeias foi alvo dos elefantes.

Ora os elefantes podem detectar as colmeias através do seu olfacto apurado, mas podem também fazê-lo através do ouvido. Isso pode explicar porque razão as colmeias ocupadas (que emitem um zumbido audível) foram tão eficientes a afastar os elefantes. A importância para um mecanismo de controlo de movimentos é óbvia: uns quantos altifalantes com zumbido podem ser suficientes para manter os elefantes afastados de terrenos de cultivo.

O desempenho de um sistema de afastamento sonoro foi estudado por Lucy King, Iain Douglas-Hamilton, e Fritz Vollrath, tendo os resultados sido publicados na revista Current Biology (ref2). Numa tradução livre do resumo:
A intromissão do desenvolvimento humano em áreas que anteriormente eram de vida selvagem está a comprimir os elefantes africanos em regiões cada vez menores, causando níveis elevados de conflito entre humanos e elefantes. Propôs-se que as abelhas melíferas africanas seriam um possível dissuasor para os elefantes. Fizemos uma experiência passando uma gravação para estudar essa hipótese. Verificámos que uma maioria significativa dos elefantes, numa amostra de 18 famílias bem estudadas e subgrupos de vários tamanhos, reagiram de forma negativa, começando imediatamente a afastar-se ou correr, quando ouviam o zumbido de abelhas perturbadas, enquanto ignoravam o som de controle de ruído branco natural. Se a resposta que se observou era o resultado de condicionamento individual ou aprendizagem de carácter social é algo que ainda não foi estabelecido. O nosso estudo apoia fortemente a hipótese que as abelhas, e talvez mesmo apenas o seu zumbido, podem ser utilizados para manter os elefantes afastados.

Um problema complicado com o que parece ser uma resposta simples: o medo.

Referências
(ref1) Fritz Vollrath e Iain Douglas-Hamilton (2002). African bees to control African elephants. Naturwissenschaften 89:508-­511. DOI 10.1007/s00114-002-0375-2.
(ref2) Lucy E. King, Iain Douglas-Hamilton, and Fritz Vollrath (2007). African elephants run from the sound of disturbed bees. Current Biology, Vol 17, R832-R833.

terça-feira, janeiro 29, 2008

Os medos dos elefantes


Existe um animal chamado Elefante que não tem nenhum desejo de copular.

É assim que, no mesmo bestiário do século XII, de que falei na contribuição anterior, se inicia a parte relativa aos hábitos dos elefantes. Os bestiários eram mais do que a simples descrição do comportamento dos animais, faziam paralelos entre o comportamento animal e a concepção do mundo que se possuía na época, ligada às Escrituras. Não surpreende assim que se estabeleça um paralelismo, entre os hábitos sexuais dos elefantes, e a história de Adão e Eva no Génesis. Os elefantes, macho e fêmea, quando queriam uma cria, deslocar-se-iam para oriente, para o Paraíso, onde comeriam da árvore Mandrágora, cedendo então aos prazeres da carne, e concebendo de imediato. Estranhamente, na época, julgava-se que os elefantes não tinham joelhos, e que copulavam costas com costas, uma suposição que vinha do tempo dos autores gregos da época clássica. No bestiário ficamos também a saber que, se o Elefante não tem problemas em enfrentar um touro, por outro lado tem medo dos ratos. Pois é, aquela imagem do elefante em pânico ao ver um rato, típica dos desenhos animados, afinal tem mais de 800 anos. Curiosamente, pode existir um fundo de verdade na história. [... ler mais]

O suposto medo dos ratos é tratado num episódio dos Caçadores de Mitos (Mythbusters), que fizeram uma experiência envolvendo um ratinho branco, um esconderijo feito de excremento de elefante, e dois elefantes num cenário natural:



Notem que o Adam e o Jamie fizeram mesmo uma experiência de controlo sem o rato, mostrando que não foram nem os fios, nem o monte de excremento a saltar, que assustaram os elefantes. Foi mesmo o ratinho. Deve notar-se que, embora isto signifique que seja possível que o mito tenha a sua base num comportamento real, os elefantes não têm realmente medo de ratos. Aquilo é sobretudo cautela com uma criatura, possivelmente barulhenta, que surge de repente no meio do caminho. Os elefantes nos zoológicos, e nos circos, convivem de perto com ratos e ratazanas, e não lhes prestam grande atenção.

Ficha técnica
Imagem retirada da referência abaixo.

Referências
The book of beasts. Editor Terence Hanbury White. New York: Putnam, 1960. Páginas na Universidade de Wisconsin.

domingo, janeiro 27, 2008

As cobras do leite

Esta cobra é uma Lampropeltis triangulum syspila, um animal que, apesar das cores berrantes, é relativamente inofensivo para os humanos. Possui no entanto uma má reputação junto aos agricultores que enveredam pela pecuária, que é extensiva a outras cobras. Essa má reputação provém de uma crendice, que existia já na idade média. Por estranho que pareça, os manuscriptos mais populares na período medieval, a seguir à Bíblia, eram tratados de biologia animal, os bestiários. Os autores dos bestiários deixavam de fora dos seus livros as criaturas fantásticas dos pagãos: os animais descritos eram supostamente criaturas reais, e os hábitos relatados eram considerados como comportamento de facto das criaturas. Algumas das coisas referidas nos bestiários são claramente fantasiosas, e levam-nos muitas vezes a esboçar um sorriso. Mas não nos podemos esquecer que os autores deste livros limitavam-se a aceitar o testemunho de pessoas mais autorizadas do que eles: caçadores e camponeses, que lidavam directamente com os animais, ou relatos de viajantes que os teriam visto em primeira mão. Ora o que é que isso tem a ver com a Lampropeltis triangulum? Bem, é que esta cobra é conhecida nos Estados Unidos da América como red-milk-snake, ou seja, a cobra-do-leite vermelha, e a razão para o nome poderia ser decalcada de um bestiário com mais de 800 anos. [... ler mais]

Eis então uma tradução para português, de um excerto de uma tradução do latim para inglês da autoria de Terence Hanbury White, de um bestiário do século XII:

A BOA é uma cobra italiana que persegue manadas de vacas ou grandes grupos de búfalos, e se agarra aos seus úderes plenos com muito leite. Destrói-os ao mamar. Assim, pela devastação do gado (Boves), a Boa retira o seu nome.

A cobra-do-leite dos Estados tem exactamente a mesma reputação. Quando as vacas aparecem com os úderes vazios a culpa é das cobras. O facto das cobras aparecerem nos estábulos das vacas não tem grandes segredos: procuram roedores, não leite. Mas, mesmo que se desse importância ao facto de aparecerem nos estábulos com as vacas sem leite, a associação causal não faz sentido, é que uma cobra destas não possui capacidade para secar uma vaca. Para lá das cobras não possuirem um aparelho bucal adequado a mamar nas tetas duma vaca, trata-se de animais relativamente pequenos. O volume de leite ingerido pela cobra seria sempre diminuto em relação à capacidade da vaca. Mas esse tipo de considerações não detém os agricultores. De acordo com as crendices locais, uma só cobra-de-leite consegue sugar, de uma assentada, leite capaz de saciar quarenta homens.

O mesmo mito existe, ou pelo menos existia quando eu era miúdo, nas aldeias portuguesas. Quando uma cabra aparecia com as tetas vazias, dando muito menos leite do que era costume, a culpa era invariavelmente de alguma cobra. Pelo menos era o que meu avô me dizia, e eu acreditava na história. Claro que nenhuma das cobras nativas portuguesas se presta a este tipo de actividades, mas as histórias do apetite das cobras por leite abundam em Portugal, e possuem mesmo versões mais tenebrosas. Uma outra história, que me lembro da minha infãncia, é a da cobra que entra em casa atraída pelo cheiro do leite humano, e apanhando a mãe adormecida com o filho ao colo, aproveita para mamar em vez da criança. Com requintes de malvadez, o animal chegaria ao ponto de tapar a boca da criança com a cauda à laia de chupeta, para a manter sossegada. Nalgumas versões, as cobras procuram crianças pequenas que tenham acabado de mamar, e entram-lhes pela garganta abaixo para irem buscar o leite, sufocando-as.

Enfim, contos de terror das aldeias, mas que as pessoas juram a pés juntos terem acontecido ao avô do tio do primo de um vizinho. Não adianta tentar argumentar acerca da impossibilidade do fenómeno. A maioria das pessoas reage de forma irracional às cobras, e mesmo os meus parentes mais próximos continuam a julgar-me louco por agarrar nas cobras, que me entram em casa, e por largá-las no campo, em vez de simplesmente lhes esborrachar a cabeça.

Os bestiários eram levados muito a sério pelas pessoas da época, e o facto de muitas das histórias persistirem são reveladoras. Na próxima contribuição descreverei mais algumas curiosidades destes bestiários. Sabiam, por exemplo, que para assustar um leão basta mostrar-lhe um galo, em especial se for branco?

Ficha técnica
Imagem de Lampropeltis triangulum syspila cortesia de Mike Pingleton via Wikimedia Commons.

Referências
The book of beasts. Editor Terence Hanbury White. New York: Putnam, 1960. Páginas na Universidade de Wisconsin.

sexta-feira, janeiro 25, 2008

Protegido no dia-a-dia graças ao bom cheirinho a cobra

Este chocalho na ponta da cauda pertence a uma Crotalus atrox, uma espécie de cascavel que não desdenharia um suculento esquilo, caso algum passasse por perto. Falei aqui, recentemente, do que poderia ser a descoberta de uma nova estratégia de defesa dos esquilos terrícolas contra as cascaveis. Essa estratégia consistia em mascar pele de cobra, e em seguida lamber o pêlo, imbuindo-o do bom cheirinho a cascavel. Os autores apoiaram essa hipótese no facto dos animais mais vulneráveis (fêmeas e esquilos juvenis) aplicarem o odor com muito maior frequência que os machos adultos. Isso é evidência indirecta e, para conseguir uma resposta mais conclusiva, era preciso observar o efeito sobre as cascaveis. Ora, a mesma equipa de autores do artigo anterior, fez exactamente isso, testou a reacção das cobras. [... ler mais]

O estudo é da autoria de Barbara Clucas, Donald Owings e Matthew Rowe e foi publicado na revista Proceedings of the Royal Society B (ref1). Numa tradução livre do resumo:

Os esquilos terrícolas (Spermophilus spp.) evoluiram uma bateria de defesas contra as cascaveis (Crotalus spp.), que os têm predado ao longo de milhões de anos. Mostrou-se recentemente que as reacções comportamentais características destas esquilos às cascavéis incluem a aplicação do odor da cascavel — os esquilos aplicam o cheiro lambendo vigorosamente o pêlo após mastigarem mudas de pele de cascavel. Apresentamos aqui evidência de que este comportamento é uma defesa antipredador inovadora fundada na exploração de um odor estranho. Testámos três hipótese funcionais para a aplicação do cheiro a cobra — anti-predação, afastamento de congéneres, e defesa contra parasitas externos — ...

Até aqui tudo parece igual ao artigo anterior, mas desta vez o objecto do estudo incluia as cobras e pulgas:
... examinando as reacções das cascaveis ao odor de cascavel, esquilos terrícolas e parasitas externos (pulgas). As cascaveis eram mais atraídas para o odor a esquilo terrícola que ao odor a esquilo misturado com o cheiro a cascavel ou apenas ao odor a cascavel. Contudo, o comportamento dos esquilos terrícolas, e a escolha de hospedeiros pelas pulgas, não foram afectados pelo cheiro a cascavel. Logo, os esquilos terrícolas podem reduzir o risco de predação pelas cascaveis aplicando o odor nos seus corpos, potencialmente como uma forma de camuflagem olfactiva. A exploração oportunista de odores heterospecíficos pode ser um fenómeno alargado; muitas espécies aplicam odores estranhos, mas apenas nuns poucos casos se demonstrou servirem na defesa contra predadores.

Camuflagem olfactiva, o que os animais fazem para evitar serem comidos. Dois artigos tão próximos, parece-me que os autores já sabiam a resposta à especulação que propunham no outro artigo.


Ficha técnica
Imagem de Crotalus atrox cortesia de Gary Stolz para o U.S. Fish and Wildlife Service, a partir da Wikimedia Commons.

Referências
(ref1) Barbara Clucas, Donald H. Owings and Matthew P. Rowe. Donning your enemy's cloak: ground squirrels exploit rattlesnake scent to reduce predation. Proceedings of the Royal Society B. DOI 10.1098/rspb.2007.1421.

quarta-feira, janeiro 23, 2008

Plástico não, obrigado

Uma das presenças mais marcantes da sociedade de consumo moderna, pelo menos dos últimos 50 anos, é um produto criado expressamente para derrotar os processos de reciclagem naturais. O plástico, com a sua capacidade de proteger do ar e da água, é uma presença omnipresente na vida do dia-a-dia, e de certa forma pode dizer-se que as sociedades modernas são viciadas no plástico. Na maioria das vezes que compramos algo numa loja, trazemos um produto que contém, ou está contido em, plástico. Uma vez terminado o seu uso como saco, embrulho, ou embalagem, o plástico tem como destino o lixo, que muitas vezes encontra o caminho do mar. A maior parte do lixo enviado para os oceanos é decomposto pelos microorganismos marinhos, num período de tempo relativamente curto, em dióxido de carbono e água, mas nem mesmo a mais voraz das bactérias é capaz de se alimentar de plástico. A maioria dos plásticos em uso não são biodegradáveis, é a luz do Sol que os quebra em bocados cada vez menores, todos eles polímeros plásticos, até que eventualmente se obtêm moléculas de plástico individuais. Mas mesmo essas moléculas são demasiado resistentes para a maioria dos organismos digerirem, e permanecem nos oceanos do planeta durante muito tempo, provavelmente 500 anos ou mais. Esta fotografia de Cynthia Vanderlip, mostrando um albatroz morto, com plástico a jorrar das suas entranhas, é emblemática do problema, que atinge neste momento uma escala gigantesca. A superfície dos oceanos tornou-se num verdadeiro mar de plástico. [... ler mais]

Os números do problema são dados num artigo de Charles Moore e colegas na revista Marine Pollution Bulletin (ref1). Numa tradução livre do resumo:

Foi aferido o potencial para a ingestão de partículas plásticas pelas criaturas que se alimentam por filtragem em mar aberto através da medição da massa e da abundância relativa de plástico flutuante e zooplâncton nas águas superficiais sob as células de alta pressão atmosférica do Oceano Pacífico Norte. Foram recolhidas amostras em suspensão em 11 locais escolhidos de forma aleatória, usando uma rede de arrasto com malha 333 u. A abundância e massa do plástico em suspensão foi mais elevada que noutro lugar qualquer do Oceano pacífico com 334 271 peças por km² e 5114 g por km², respectivamente. A abundância de plâncton era aproximadamente cinco vezes mais elevada que a do plástico, mas a massa do plástico era aproximadamente seis vezes superior à do plâncton.

Estes resultados foram obtidos numa região conhecida como o Giro do Pacífico Norte. Os giros são gigantescas extensões de oceano onde as correntes formam espirais, um pouco como um ralo onde a água roda lentamente, e onde materiais que lá vão parar podem permanecer durante muito tempo. Os giros subtropicais, como o que foi estudado neste trabalho, correspondem a cerca de 40% da superfície dos oceanos, ou seja mais de um quarto da superfície do planeta é neste momento dominada pelo plástico.

Estes giros subtropicais são regiões de calmaria e as águas são relativamente pobres em nutrientes, logo têm pouco peixe. Alguns dos animais que dominam esta espécie de desertos oceânicos são as salpas, os vorazes aspiradores de plâncton de que falei aqui. Mas as salpas são criaturas gelatinosas, que não têm importância económica para os seres humanos. Não admira por isso que a dimensão do problema do plástico fosse ignorada durante muito tempo. Tudo mudou há cerca de 10 anos atrás, quando Charles Moore e a equipagem do Alguita, um navio de pesquisa, resolveram passar por um desses locais, depois de uma meritória participação numa regata, em que ficaram em terceiro lugar. O que viram deixou-os estupefactos. Num local que supunham imaculado, em qualquer direcção que olhassem, viam fragmentos de plástico. Durante a semana que levaram a atravessar o giro não encontraram um único local que pudessem considerar limpo.

O problema entretanto agravou-se. Uma nova viagem de Charles Moore, em 2007, estimou um aumento, por um factor de 5, na quantidade de plástico no Giro Subtropical do Pacífico Norte, em relação ao que tinha sido encontrado dez anos antes. Isto é particularmente grave, pois estudos recentes mostram que os plásticos funcionam como esponjas das toxinas que se encontram na água, podendo atingir concentrações de químicos tóxicos um milhão de vezes acima das que se encontram na água circundante. Ora um mecanismo de concentração de toxinas deste tipo, num ambiente dominado pelos aspiradores mais eficientes da natureza (as salpas), acarreta riscos enormes e que precisam de ser estudados.

Estou a falar deste tema porque, a 20 de Janeiro de 2008, o Alguita partiu numa nova missão, e tem um blogue. Eis uma foto do barco, retirada das páginas do blogue:

É relativamente pequeno, uma verdadeira casquinha de noz. Trata-se de um projecto de divulgação interessante, existe mesmo uma outra versão do blogue, vocacionada para que professores de liceu possam envolver as suas turmas na viagem do Alguita.

Referências
(ref1) C. J. Moore, S. L. Moore, M. K. Leecaster and S. B. Weisberg (2001). A Comparison of Plastic and Plankton in the North Pacific Central Gyre. Marine Pollution Bulletin, Volume 42, Issue 12, Pages 1297-1300.

terça-feira, janeiro 22, 2008

Não, não sou o único...

... a não gostar de palhaços. Quando era miúdo e via aqueles adultos vestidos de forma esquisita, e com a cara pintada de forma sinistra, sentia-me sempre pouco à vontade. Não se tratava de uma fobia, nunca me senti assustado. As vozes esquisitas e as supostas piadas davam-me vontade de esconder, mas não de medo. Simplesmente não lhes achava piada, e apossava-se de mim aquela sensação de vergonha, que por vezes sentimos quando alguém faz figura de parvo à nossa frente. Mas sempre pensei que existiria algo de estranho comigo, afinal toda a gente sabe que "as crianças adoram palhaços". Ou será que não? [... ler mais]

Uma revista dedicada a cuidados de enfermagem, a Nursing Standard Magazine, publicou resultados de um estudo efectuado no hospital de Sheffield. Ao planear a decoração da ala das crianças, um conjunto de investigadores resolveu fazer o óbvio: perguntar às crianças antes de preencher o espaço com imagens de palhaços. A resposta dos 250 petizes entrevistados, dos 4 aos 16 anos, não deixa espaço para dúvidas. Eis uma das frases dos autores do estudo, extraída deste comunicado de imprensa:

Descobrimos que os palhaços são universalmente detestados pelas crianças. Algumas consideram-nos assustadores e inescrutáveis.

A extensão do fenómeno não deixou de me surpreender: nem uma das 250 crianças afirmou gostar de palhaços.

Ficha técnica
Imagem do filme Killer Klowns from Outer Space obtida a partir de www.badmovies.org/movies/killerklowns/.

segunda-feira, janeiro 21, 2008

O perfume dos esquilos cheira a cobra

Nas últimas contribuições falei de estratégias de alguns animais para atrairem as presas e asssim conseguirem uma refeição fácil. Existe no entanto o reverso da medalha, estratégias adoptadas pelos animais para evitarem ser comida de outros. O esquilo da imagem, da espécie Spermophilus variegatus, está muito provavelmente a fazer exactamente isso. Este esquilo está a mastigar nada mais nada menos que a pele de um dos seus predadores habituais. Aquela coisa nas patas e boca do esquilo é um bocado de pele de cascavel. Ora aqueles dentes atarefados a cortar e mastigar não procuram alimento, mas sim perfume: depois de uma boa mastigadela o esquilo lambe o seu pêlo, untando o corpo com um saudável cheirinho a cobra. [... ler mais]

Barbara Clucas e colegas resolveram investigar quais as razões deste comportamento, tendo publicado os resultados na revista Animal Behaviour (ref1). Numa tradução livre do resumo:

Por vezes encontram-se substâncias químicas, produzidas por uma espécie, no corpo de outra espécie. Muitas vezes os animais ingerem tais substâncias estranhas e armazenam-nas no seu integumento, mas relatamos aqui um caso de aplicação directa de substâncias heterospecíficas no corpo. Os esquilos terrícolas da Califórnia, Spermophilus beecheyi, e os esquilos das rochas, Spermophilus variegatus, aplicam directamente odores obtidos do seu mais importante predador, as cascaveis, Crotalus spp., mastigando as peles das mudas das cascaveis e lambendo o seu pêlo. Verificámos que a sequência de áreas lambidas durante a aplicação era essencialmente a mesma para as duas espécies.

Eis aqui uma imagem de um animal da outra espécie de esquilos estudada pelos autores do artigo a mastigar uma pele de cobra:

e logo a seguir a espalhar o odor pelo seu corpo:

Qual é então a explicação mais provável para o comportamento?
Consideramos três hipóteses respeitantes à função desta "aplicação de cheiro de cobra": defesa antipredador, defesa contra parasitas externos, e afastar congéneres. Para testar estas hipóteses avaliámos padrões nas diferenças na quantidade aplicada entre classes de sexo e idade e comparámo-los com padrões reflectindo diferenças na importância da predação, carga de pulgas e agressão por congéneres, como fontes de selecção.

O evitar dos predadores pode não parecer óbvio, mas as cobras poderão optar por não percorrer terrenos de caça onde já teria andado uma outra cobra. Na verdade parece ser essa a explicação:
Não encontrámos diferenças entre espécies na quantidade aplicada; contudo os juvenis e as fêmeas adultas de ambas as espécies empenhavam-se em períodos de aplicação mais longos do que os machos adultos. Este padrão de diferenças, nas classes de sexo e idade na aplicação do odor a cobra, apoia apenas a hipótese anti-predadores, pois os juvenis são mais vulneráveis à predação, e as fêmeas adultas protegem activamente os seus jovens. Não encontrámos evidência para apoiar as hipóteses, quer da defesa contra os parasitas, quer do afastar dos congéneres. Logo, o comportamento da aplicação do odor a cobra pode ser uma nova forma de defesa química contra predadores.

Deve notar-se que os autores são algo cautelosos. Primeiro é preciso testar se existe de facto o efeito sobre os predadores. Além disso existem contextos sociais onde isto não foi testado: pode tratar-se de uma forma das mães afastarem das suas tocas fêmeas da mesma espécie com impulsos infanticidas (sim, as mães esquilos matam os pequenos umas das outras). Para já defesa contra cobras parece a explicação mais provável, e como comportamento é fascinante.

Referências
(ref1) Barbara Clucas, Matthew P. Rowe, Donald H. Owings, and Patricia C. Arrowood (2008). Snake scent application in ground squirrels, Spermophilus spp.: a novel form of antipredator behaviour. Animal Behaviour, Volume 75, Issue 1, Pages 299-307. doi:10.1016/j.anbehav.2007.05.024

sábado, janeiro 19, 2008

Grandes títulos

O texto sobre as formigas de rabinho vermelho vai ter que esperar. Os comunicados de imprensa abundam mas o artigo científico ainda não está disponível. No volume de Dezembro havia contudo um artigo de pesquisa com um título sugestivo

Quando cuidar de, abandonar, ou comer a vossa descendência: a evolução dos cuidados parentais e do canibalismo filial.


Referências
Hope Klug e Michael B. Bonsall. When to Care for, Abandon, or Eat Your Offspring: The Evolution of Parental Care and Filial Cannibalism. Am Nat 2007. Vol. 170, pp. 886–901. DOI: 10.1086/522936.

sexta-feira, janeiro 18, 2008

Uma cauda para apanhar pássaros

Em 2006 foi descrita uma nova espécie de cobra, a Pseudocerastes urarachnoides, um animal fabuloso, e que estranhamente passou quase despercebido nos comunicados de imprensa. Eu ignorava completamente tão interessante criatura até que o Carel resolveu falar nisso na sua última contribuição no Rigor Vitae. Ora o que há de tão interessante neste animal? Notem que o nome urarachnoides vem do grego: ura quer dizer cauda, arachno é aranha, e ides quer dizer semelhante. Ou seja, esta é uma Pseudocerastes com a cauda semelhante a uma aranha. Para compreender bem a coisa é preciso recuar quarenta anos. A "Segunda Expedição de Rua ao Irão", em 1968, embora se destinasse à colecta de mamíferos, recolheu contudo alguns répteis e anfíbios. Essas criaturas foram depositadas no Field Museum of Natural History, onde um senhor chamado Steven Anderson notou uma excrescência semelhante a solifugídeo, um tipo de aracnídeo, na ponta da cauda de uma cobra atribuída inicialmente à espécie Pseudocerastes persicus. Na altura, existindo apenas um exemplar, não se podia afirmar com certeza se aquela excrescência teria uma base genética, se seria devida a um tumor, ou causada por um parasita. A cobra permaneceu assim, guardada mas não esquecida, até que em 2003 uma cobra em tudo semelhante foi capturada. [... ler mais]

Os animais de 1968 e de 2003 são descritos num artigo de Hamid Bostanchi e colegas, incluindo o tal senhor chamado Steven Anderson, na revista Proceedings of the California Academy of Sciences (ref1). Numa tradução livre do resumo:

Descreve-se uma nova espécie de víbora, Pseudocerastes urarachnoides, dos Montes Zagros no oeste do Irão. A nova espécie tem uma cauda curta, poucos pares de subcaudais (15 nos exemplares conhecidos), com os pares distais formando uma protuberância oval; as escamas dorsais da cauda projectam.se para formar apêndices alongados ao longo dos lados da protuberância terminal.

Eis aqui a fabulosa ornamentação da cauda deste animal:

Paracem mesmo patas de artrópode. Radiografias dos exemplares não mostraram evidências de danos nas vértebras dessa zona do corpo:

Tudo indica que estas "patas" na ponta da cauda são normais nestas criaturas. Ora para que servirá tal ornamentação? Os autores sugerem que será utilizada nos hábitos predatórios do animal:
Especulamos que o apêndice caudal pode servir como engodo para captura de presas num predador de emboscada.

Os autores notam que um dos animais possui vestígios de um pássaro no estômago (são visíveis as patas), e é provável que a estrutura se destine a atrair esse tipo de presas. Isto é algo que tem que ser verificado, pois o animal não foi observado na natureza.

Referências
(ref1) Hamid Bostanchi, Steven C. Anderson, Haji Gholi Kami, and Theodore J. Papenfuss (2006). A New Species of Pseudocerastes with Elaborate Tail Ornamentation from Western Iran (Squamata: Viperidae). Proceedings of the California Academy of Sciences, Fourth Series Volume 57, No. 14, pp. 443–450. PDF.

quinta-feira, janeiro 17, 2008

As fabulosas formigas planadoras

Um cientista, de seu nome Stephen Yanoviak, encontrava-se no ano de 2004 empoleirado a 30 metros de altura nas selvas do Equador, à espera que mosquitos se alimentassem do seu próprio sangue, quando se desembaraçou de algumas formigas que estavam a mordê-lo, empurrando-as das alturas. Uma queda dessas no perigoso chão da floresta, ou dentro de água, levaria em princípio à morte dos infelizes insectos. Só que, para espanto de Yanoviak, as formigas executaram umas fabulosas voltas de 180 graus e conseguiram poisar no tronco, subindo de volta ao local de onde tinham sido empurradas. Estava descoberto o vôo planado das formigas da espécie Cephalotes atratus. [... ler mais]

A descoberta foi descrita por Stephen Yanoviak, Robert Dudley e Michael Kaspari num artigo na revista Nature (ref1). Numa tradução livre do resumo:

Numerosos vertebrados arborícolas não voadores usam descida controlada (quer paraquedismo quer planar no sentido restrito) para evitar predação ou localizar recursos, e pensa-se que controlar a direcção durante um salto ou queda é um estádio importante na evolução do vôo. Mostramos aqui que as obreiras da formiga neotropical Cephalotes atratus L. (Hymenoptera: Formicidae) usam descida aérea dirigida para voltarem ao seu tronco de origem com mais de 80% de sucesso durante uma queda. Quedas registadas em vídeo revelam que as obreiras da C. atratus descem com o abdómen à frente com trajectórias de declive pronunciado e a velocidades relativamente elevadas; uma experiência no terreno mostra que as formigas em queda usam pistas visuais para localizarem os troncos antes de atingirem o chão da floresta.

A fabulosa técnica destas formigas pode ser apreciada neste filme, cortesia de Stephen Yanoviak. As formigas caem a qualquer coisa como quatro metros por segundo e muitas vezes falham a primeira aterragem, mas tentam de novo e lá conseguem agarrar-se ao tronco.
Obreiras menores da C. atratus, e mais geralmente espécies menores de Cephalotes, ganham de novo contacto com o seu tronco de origem em distâncias menores do que o fazem as obreiras maiores. Levantamentos de formigas arborícolas comuns sugerem que a descida dirigida ocorre na maioria das espécies da tribo Cephalotini e nas Pseudomyrmecinae arborícolas, mas não em ponerimorfos ou Dolichoderinae arborícolas. Este é o primeiro estudo a documentar a mecânica e a importância ecológica desta forma de locomoção na linhagem mais diversificada da Terra, os insectos.

Ou seja, é comum a muitas espécies de formigas arborícolas, embora não a todas. A forma exacta como as formigas conseguem planar não é conhecida. As cabeças achatadas podem ter que ver com a coisa.

Ora algum tempo depois deste artigo Stephen Yanoviak notou formigas, semelhantes em tudo às Cephalotes atratus, excepto no facto de possuirem um abdómen vermelho e não preto, e de o manterem no ar.

Não se trata de uma nova espécie, há algo bastante mais tenebroso por trás desta imagem. A história completa na próxima contribuição.

Ficha técnica
Fotos cortesia de Stephen P. Yanoviak, obtidas a partir do comunicado de imprensa na University of California, Berkeley.

Referências
(ref1) Stephen. P. Yanoviak, Robert Dudley e Michael Kaspari (2005). Directed aerial descent in canopy ants. Nature 433, 624-626. doi:10.1038/nature03254

quarta-feira, janeiro 16, 2008

Agitar os dedos para um repasto canibal

Esta imagem mostra o agitar muito rápido de um dedo do pé do sapo-cururu, de seu nome científico Chaunus marinus (conhecido anteriormente por Bufo marinus). Trata-se de um sapo relativamente grande, que pode chegar aos 24 centímetros de comprimento e 2800 gramas de peso. Nativo da América Central e do Sul, foi importado para outros lugares do planeta ,onde se tornou uma praga, com impacto nocivo na fauna desses locais. Isso sucede porque o cururu tem duas glândulas no dorso que segregam uma toxina poderosa, e predadores não habituados a este sapo morrem envenenados ao tentarem consumi-lo. Ora porque razão é que este animal está a agitar o dedo? Não se trata de nervosismo, mas sim de vontade de comer. O sapo está a tentar atrair comida, mas não uma comida qualquer. [... ler mais]

Eis aqui a imagem de corpo inteiro do cururu.

A presa que o cururu procura é revelada num artigo de Mattias Hagmana e Richard Shine na revista Animal Behaviour (ref1). O estudo foi feito numa população de animais que infestam o Território Norte da Austrália. Numa tradução livre do resumo:

Muitos predadores de emboscada possuem estruturas e comportamentos cuja função plausível é atrair presas, mas essa hipótese só raramente foi sujeita a testes empíricos directos. Se o engodo evoluíu para atrair tipos de presas específicos então prevemos que só se manifestará se a presa estiver presente, e apenas por predadores com tamanho adequado a esse tipo de presa. O engodo deve também induzir uma maior aproximação da presa; e aspectos do comportamento (por exemplo a frequência do movimento do engodo) devem ter sido afinados pela selecção para induzir uma resposta máxima da presa. Descrevemos aqui um sistema de engodo de um novo tipo: cururus de tamanho médio e pequeno (mas não metamórficos nem grandes), Chaunus marinus, agitam o longo dedo médio do pé dos membros traseiros para cima e para baixo numa exibição óbvia.

Os animais metamórificos são sapos que já passaram a fase de girino mas ainda não atingiram a forma adulta.
Admitindo a hipótese funcional, o agitar do dedo é despoletado pelo movimento de objectos comestíveis, como grilos ou sapos metamórficos. Os sapos metamórficos são atraídos para este estímulo, e ensaios com um modelo mecânico mostram que quer a cor quer a frequência vibracional do dedo correspondem de muito perto à frequência mais eficiente para atrair congéneres menores na direcção do engodo.

Pois é, estes sapos são canibais e tentam atrair sapos menores da mesma espécie para poderem comê-los. Os autores dissecaram 28 sapos juvenis (com comprimentos entre 21 e 55 milímetros) e verificaram que cerca de 64% das presas consumidas por esses animais eram membros menores da mesma espécie.

Ficha técnica
(ref1) Mattias Hagmana e Richard Shine (2008). Deceptive digits: the functional significance of toe waving by cannibalistic cane toads, Chaunus marinus. ANIMAL BEHAVIOUR, 75, 123e131. doi:10.1016/j.anbehav.2007.04.020.

sábado, janeiro 12, 2008

A moral dos macacos

A meia-dúzia de leitores habituais deste blogue sabe que passei o mês de Dezembro no Sul da Índia, em busca de chá e de macacos, os fabulosos langures negros das Nilgiris. Num outro mês de Dezembro, no remoto ano de 1964, Jules Masserman, Stanley Wechkin, e William Terris publicaram um artigo também sobre macacos. Não sobre os langures da Nilgiris, mas sobre os macacos resus, da espécie Macaca mulatta, como os que se mostra na imagem ao lado. O artigo desses senhores, apenas duas páginas, deixa uma impressão profunda em quem o lê. Pelo menos esse foi o meu caso. Os autores colocaram os macacos face a um dilema: passar fome ou magoar outro macaco. [... ler mais]

O artigo sobre as difíceis escolhas dos macacos resus, da autoria de Jules Masserman, Stanley Wechkin, e William Terris foi publicado na revista American Journal of Psychiatry (ref1). Em que é que consistiu a tal experiência?

Sete fêmeas e oito macacos resus machos, capturados no estado selvagem, foram colocados numa jaula, com dois fios que caíam do tecto, ligados a interruptores. Os macacos foram então treinados a obter comida, puxando um dos fios quando acendia uma luz vermelha, e o outro quando acendia uma luz azul. O período de treino durou até os macacos conseguirem uma eficácia de 90% na tarefa. Um outro macaco, um "animal de estímulo", como lhe chamam os autores, foi então colocado num compartimento ao lado, separado por um semi-espelho: o macaco no compartimento com os fios e as luzes via o outro, mas o "animal de estímulo" não conseguia ver o compartimento ao lado. Ao fim de quatro dias, os investigadores fizeram então uma maldade: programaram um dos interruptores para dar um choque eléctrico ao animal de estímulo. Deve notar-se que os animais que escolhessem comer apenas quando a luz de uma dada cor fosse activada não sucumbiriam à falta de alimento, mas passariam fome. Para ficarem saciados os animais teriam que dar choques ao desgraçado na outra jaula.

Os resultados foram claros, apenas 5 dos 15 animais não mostraram uma preferência estatisticamente significativa pela alavanca que dava apenas comida e não electrocutava o animal do lado. Mas desses cinco dois fizeram-no porque depois de verem o animal no outro compartimento levar um choque se recusaram a puxar qualquer um dos fios. Um deles passou fome durante cinco dias, o outro durante doze! Os animais mantiveram um padrão de resposta consistente mesmo quando os investigadores mudaram os parceiros, tendo notado que os animais que tinham sofrido eles próprios choques eléctricos optavam com maior probabilidade por respostas extremas de privação de alimento.

A experiência mostrou que a maioria dos macacos resus prefere, de forma consistente, passar fome do que conseguir comida à custa de um choque eléctrico num congénere. A resposta dos animais não está relacionada de forma significativa com a idade, tamanho, sexo ou posição hierárquica do outro macaco.

É um resultado que nos toca de tão "humano": fazer sacrifícios pelo bem dos outros, algo que entra no domínio do que definimos como moralmente correcto. Nestes pequenos macacos, capturados na natureza e colocados em jaulas, não deixa de ser algo de sublime.

Ficha técnica
Imagem dos macacos cortesia de Nikita Golovanov, obtida a partir desta página de Wikimedia Commons.

Referências
(ref1) Jules Masserman, Stanley Wechkin, and William Terris (1964). `Altruistic' Behavior in Rhesus Monkeys. American Journal of Psychiatry vol. 121, pp. 584-585.

sexta-feira, janeiro 11, 2008

Os pinguins descoloridos e a falta de higiene de uma princesa espanhola

Esta é uma imagem de um pinguim de Adélia, da espécie Pygoscelis adeliae. Já falei aqui por várias vezes destes pinguins, incluindo uma famosa referência à física dos seus disparos de excrementos. Pois bem hoje vou falar destes pinguins e da relação que ele possuem com roupa interior não lavada. Confusos? Tem tudo que ver com o facto de este pinguim em particular apresentar um casaco beige em vez do tradicional negro. Trata-se de um fenómeno chamado leucismo e que é relativamente raro nos pinguins. Esta foto foi tirada na Antártida numa colónia de cerca de 4,000 adélias, e este era o único pinguim beige. Ser fora do normal não grangeia a este animal grande simpatia por parte dos seus congéneres. Segundo os membros da expedição que observaram o animal, os adélias "normais" implicavam regularmente com o pinguim beige. Alguns autores preferem chamar isabelinismo a estes casos, pois para os ingleses Isabella era o nome que se dava (caíu em desuso no século XIX) a uma cor cinzento-amarelada. Há uma lenda por trás desse nome, que mete princesas e a sua roupa interior, e que eu não resisto a contar aqui. [... ler mais]

Embora raro, o fenómeno do isabelinismo nos pinguins encontra-se descrito na literatura científica, e David Everitt e Colin Miskelly fazem um resumo dos conhecimentos num artigo na revista Notornis (ref1). Foi aí que encontrei a tal história. Numa tradução livre da parte relevante:

Uma origem relatada para o adjectivo 'isabelino' é na verdade algo desagradável e em desacordo com a beleza das aves. Diz-se estar relacionada com um voto feito pela arquiduquesa Isabel da Áustria em 1600 de não mudar a sua roupa interior, nem mesmo para a lavar, até que o seu marido, o Arquiduque Alberto da Áustria, conquistasse a cidade de Ostende, unindo assim as províncias do norte e do sul dos Países Baixos.

De certa forma esta princesa Isabel faz parte da história luso-brasileira. É filha de Filipe II de Espanha, que era também rei de Portugal (Filipe I) e logo governava também o Brasil nessa época. Conseguir que a tal princesa espanhola ganhasse hábitos de higiene mais saudáveis não foi fácil:
Demorou três anos até 1604 para unir as províncias com o custo de mais de 40,000 vidas espanholas. A cor Isabella é supostamente uma descrição da roupa interior suja dessa dama. Contudo, esta origem é refutada no Shorter Oxford dictionary.

Depois de pesquisar um pouco descobri que a história é falsa porque o termo Isabella para designar cor cinzento-amarelada surge num documento relativo à rainha de Inglaterra, um ano antes do voto da princesa espanhola. Embora a origem do termo não esteja ligado a esta Isabel, a falta de higiene dos membros femininos da realeza espanhola pode apesar de tudo estar ligada à designação destes lindos pinguins. Tudo se passaria um século antes, com outra Isabel. O termo existe em Francês e Alemão e está ligado a uma história semelhante, só que envolve Isabel a Católica e o cerco de Granada, pelo seu marido Fernando de Aragão, que terminou em 1492 com a conquista da cidade.

Eis outro exemplo de um adélia isabelino, fotografado por Leon Baradat numa viagem de turismo à Antártida, em 2003:

Os pinguins isabelinos ão animais bonitos, quer a sua designação se deva ou não a roupa interior suja. Mas os pinguins não vêm apenas em branco e preto ou branco e beige. Há também pinguins-azuis, mas esses terão que esperar por uma próxima contribuição.

Ficha técnica
Imagem no início da contribuição de Brett Jarrett (Mawson's Hut Foundation) que pode ser encontrada no blogue Mawson's Huts 2007-8.
Imagem de pinguim isabelino entre os seus congéneres escuros da autoria de Leon Baradat via Wikimedia Commons.

Referências
(ref1) DAVID A. EVERITT, COLIN M. MISKELLY (2003). A review of isabellinism in penguins. Notornis, Vol. 50: 43-51. PDF.

quinta-feira, janeiro 10, 2008

As iguanas quando arrefecem caem no céu

Quando a temperatura cai abaixo dos 5 a 10 graus Celsius, iguanas, parecidas a esta Iguana iguana, "desligam", não sendo capazes de se agarrar aos ramos e troncos. O resultado é uma chuva de iguanas no chão da floresta. Isso aconteceu esta semana na Florida, nos Estados Unidos da América, onde as temperaturas nocturnas chegaram aos 3 graus negativos. Estas quedas não significam necessariamente a morte dos animais: com o nascer do Sol e o aumento das temperaturas muitos animais recuperam (podem suportar de 4 a 10 horas imóveis no frio). Mas nem todos o fazem, o que até nem é mau de todo. É que as iguanas ("os iguanas" para os leitores brasileiros) da Florida são uma peste, animais não nativos importados do México. [... ler mais]

Imagens de um dos intervenientes nesta verdadeira chuva de iguanas podem ser vistas nestas páginas do Miami Herald. Ora quão sério é o problema com estas criaturas na Florida e como surgiu? Tudo pode ter começado com animais como este, um juvenil, que possui um tamanho adequado para animal de estimação.

Só que os pequenitos crescem até mais de dois metros de comprimento da cabeça até à ponta da cauda, e muitos donos desistem delas, libertando-as na natureza, onde procriam de uma forma capaz de fazer inveja aos coelhos. Com a ausência de predadores o resultado é uma praga de iguanas, que devastam as plantas e incomodam os seres humanos de muitas e variadas maneiras.

O instituto da Ciências Alimentares e Agrícolas da Florida publica mesmo circulares sobre como lidar com o problema. Numa tradução livre de um desses textos, da autoria de W. H. Kern (ref1), na parte relativa aos estragos provocados pelos animais:

Danos causados pelas iguanas incluem consumirem plantas com valor ambiental, arbustos e árvores, comerem orquídeas e muitas outras flores, comerem frutos como bagas, figos, mangas, tomates, bananas, líchias, etc. As iguanas não consomem citrinos. As tocas que elas escavam minam os passeios, diques e fundações. Tocas de iguanas próximas de diques permitem a erosão e eventual colapso desses diques. Os excrementos das iguanas cobrem as áreas onde elas tomam banhos de sol. Isso é desagradável à vista, causa queixas relativamente a odores, e é uma fonte possível de bactérias salmonella, uma causa comum de intoxicação alimentar.

Não se trata de animais inofensivos:
As iguanas adultas são animais grandes e poderosos que podem morder, capazes de arradelas graves com as suas garras extremamente afiadas, e capazes de dolorosas pancadas com as suas poderosas caudas. As iguanas normalmente evitam as pessoas mas defender-se-ão contra animais de estimação e pessoas que tentem apanhá-los ou encurralá-los
.
Acho que é de facto uma boa ideia evitar estes dentes:

O autor discute várias formas de captura destes animais: com armadilhas, laços, e mesmo tiros ou flechas (se bem que a Florida tenha leis anticrueldade que se estendem aos reptéis). Uma vez capturadas as iguanas não podem ser libertadas, têm que ser mantidas em cativeiro, vendidas como animais de estimação, destruídas ou então consumidas! Sim, porque pelos vistos possuem uma carne tenra e suculenta.
A carne de iguanas adultas e os seus ovos são comidos e considerados uma iguaria ao longo dos seus locais de origem, especialmente durante a semana da Páscoa. Em 2004, o preço de carne de iguana era de 31 dólares dos EUA por quilo, na Marilândia. Adultos grandes, demasiado perigosos para serem mantidos como animais de estimação, podem ter valor como carne nos mercados de cariz étnico que se destinam a emigrantes da América do Sul e Central. Contudo, é melhor fazer um acordo com o gerente do mercado antes de aparecer com um saco de iguanas.

Um pitéu algo caro. Já vi iguanas pequenitas à venda por estes lados, nas lojas de animais, e sem dúvida algumas terão fugido ou sido libertadas quando se tornaram demasiado grandes. Com geadas frequentes, mesmo no sul do país, é pouco provável que cheguem a formar colónias. Mesmo assim, pelo sim pelo não, talvez seja boa ideia arranjar algumas receitas.

Ficha técnica
Imagens cortesia da University of Florida, Institute of Food and Agricultural Sciences (UF/IFAS) for the people of the State of Florida. Podem ser obtidas na referência abaixo.

Referências
(ref1) W. H. Kern, Jr (2004). Dealing with Iguanas in the South Florida Landscape. Fact Sheet ENY-714, a series of the Entomology and Nematology Department, Florida Cooperative Extension Service, Institute of Food and Agricultural Sciences, University of Florida. http://edis.ifas.ufl.edu/in528.

terça-feira, janeiro 08, 2008

Um fóssil vivo avinagrado

Volta e meia surge na imprensa um relato sobre a descoberta de um qualquer famigerado "fóssil-vivo", com a referência obrigatória ao celecanto. O termo é muitas vezes enganador, em geral o "fóssil vivo" e os "fósseis extintos" são apesar de tudo bastante diferentes. Há no entanto casos de espécies que foram descritas na literatura científica a partir de esqueletos encontrados em depósitos fósseis, e que se julgavam extintas, mas que afinal até existiam na natureza. É o caso do dono do crânio que se pode ver nesta figura, o Speothos venaticus, que foi descrito em 1842, por um senhor chamado Lund, a partir de fósseis encontrados nas caves de Lagoa Santa, em Minas Gerais, no Brasil. Verificou-se depois que se tratava de um animal que se podia encontrar em grande parte do território brasileiro. [... ler mais]

Como a dentição deixa antever trata-se do crânio de um carnívoro, mais exactamente de um canídeo, cujas afinidades com os restantes canídeos são ainda um pouco obscuras. Há por exemplo diferenças na dentição em relação ao lobo cinzento, Canis lupus, cujo crânio se mostra na imagem abaixo:

Notem bem o número de molares no maxilar, o Speothos venaticus possui penas um em cada maxila, o lobo possui dois.

Já que estamos a falar de canídeos, de crânios e de dentes não resisto a mostrar mais uma imagem, que parece saída de um pesadelo:

Que horrível criatura possui um tal crânio? Trata-se de um cachorro doméstico, da minúscula variante conhecida como Chihuahua. A origem do cachorro doméstico tem sido tema de muita confusão e mesmo de alguma controvérsia, mas a maioria dos autores modernos favorecem a hipótese de que se trata de uma versão domesticada do lobo cinzento. Os cachorros domésticos são a espécie de mamíferos com maior variabilidade morfológica que se conhece, embora tendam a seguir alguns padrões, em particular relacionados com o tamanho. Quando "encolhem" em tamanho tendem a apresentar crânios progressivamente mais arredondados, tal como se observa facilmente neste
Chihuahua. Os cães domésticos apresentam em geral dentes também menores que as espécies de canídeos silvestres, uma característica que permite distinguir os cães dos restos fósseis de lobos em contextos arqueológicos.

Como referi o Speothos venaticus existe na maior parte do território brasileiro, e noutros países centro- e sul-americanos, tais como o Panamá, a Venezuela, a Bolívia, o Peru, o Equador, o Paraguai e a Argentina. Apesar da vasta distribuição geográfica, esta criatura, conhecida no Brasil como cachorro do mato vinagre, é muito rara, e muito difícil de observar na natureza. Que o diga Beatriz de Mello Beisiegel, que resolveu obter o seu grau de doutor com uma dissertação sobre a história natural desta criatura. Mas isso ficará para a próxima contribuição.

Referências
Dr. Pamela Owen, 2001, "Speothos venaticus" (On-line), Digital Morphology. Acedido a 21 de Novembro de 2007 no endereço http://digimorph.org/specimens/Speothos_venaticus/.
Dr. Pamela Owen, 2001, "Canis lupus" (On-line), Digital Morphology. Acedido a 21 de Novembro de 2007 no endereço http://digimorph.org/specimens/Canis_lupus_lycaon/.
Ms. Jennifer Olori, 2005, "Canis familiaris" (On-line), Digital Morphology.. Acedido em 21 de Novembro de 2007 no endereço http://digimorph.org/specimens/Canis_familiaris.