terça-feira, janeiro 08, 2008

Um fóssil vivo avinagrado

Volta e meia surge na imprensa um relato sobre a descoberta de um qualquer famigerado "fóssil-vivo", com a referência obrigatória ao celecanto. O termo é muitas vezes enganador, em geral o "fóssil vivo" e os "fósseis extintos" são apesar de tudo bastante diferentes. Há no entanto casos de espécies que foram descritas na literatura científica a partir de esqueletos encontrados em depósitos fósseis, e que se julgavam extintas, mas que afinal até existiam na natureza. É o caso do dono do crânio que se pode ver nesta figura, o Speothos venaticus, que foi descrito em 1842, por um senhor chamado Lund, a partir de fósseis encontrados nas caves de Lagoa Santa, em Minas Gerais, no Brasil. Verificou-se depois que se tratava de um animal que se podia encontrar em grande parte do território brasileiro. [... ler mais]

Como a dentição deixa antever trata-se do crânio de um carnívoro, mais exactamente de um canídeo, cujas afinidades com os restantes canídeos são ainda um pouco obscuras. Há por exemplo diferenças na dentição em relação ao lobo cinzento, Canis lupus, cujo crânio se mostra na imagem abaixo:

Notem bem o número de molares no maxilar, o Speothos venaticus possui penas um em cada maxila, o lobo possui dois.

Já que estamos a falar de canídeos, de crânios e de dentes não resisto a mostrar mais uma imagem, que parece saída de um pesadelo:

Que horrível criatura possui um tal crânio? Trata-se de um cachorro doméstico, da minúscula variante conhecida como Chihuahua. A origem do cachorro doméstico tem sido tema de muita confusão e mesmo de alguma controvérsia, mas a maioria dos autores modernos favorecem a hipótese de que se trata de uma versão domesticada do lobo cinzento. Os cachorros domésticos são a espécie de mamíferos com maior variabilidade morfológica que se conhece, embora tendam a seguir alguns padrões, em particular relacionados com o tamanho. Quando "encolhem" em tamanho tendem a apresentar crânios progressivamente mais arredondados, tal como se observa facilmente neste
Chihuahua. Os cães domésticos apresentam em geral dentes também menores que as espécies de canídeos silvestres, uma característica que permite distinguir os cães dos restos fósseis de lobos em contextos arqueológicos.

Como referi o Speothos venaticus existe na maior parte do território brasileiro, e noutros países centro- e sul-americanos, tais como o Panamá, a Venezuela, a Bolívia, o Peru, o Equador, o Paraguai e a Argentina. Apesar da vasta distribuição geográfica, esta criatura, conhecida no Brasil como cachorro do mato vinagre, é muito rara, e muito difícil de observar na natureza. Que o diga Beatriz de Mello Beisiegel, que resolveu obter o seu grau de doutor com uma dissertação sobre a história natural desta criatura. Mas isso ficará para a próxima contribuição.

Referências
Dr. Pamela Owen, 2001, "Speothos venaticus" (On-line), Digital Morphology. Acedido a 21 de Novembro de 2007 no endereço http://digimorph.org/specimens/Speothos_venaticus/.
Dr. Pamela Owen, 2001, "Canis lupus" (On-line), Digital Morphology. Acedido a 21 de Novembro de 2007 no endereço http://digimorph.org/specimens/Canis_lupus_lycaon/.
Ms. Jennifer Olori, 2005, "Canis familiaris" (On-line), Digital Morphology.. Acedido em 21 de Novembro de 2007 no endereço http://digimorph.org/specimens/Canis_familiaris.

1 comentários:

João Carlos disse...

Não deixa de ser curioso que o "vinagre" tenha sido encontrado no sítio de Lagoa Santa, onde também foram encontrados os mais antigos vestígios de homens no Brasil.

Os silvícolas brasileiros (que eu saiba) não têm maiores relacionamentos com os canídeos, o que também é curioso, já que são caçadores.