sábado, janeiro 12, 2008

A moral dos macacos

A meia-dúzia de leitores habituais deste blogue sabe que passei o mês de Dezembro no Sul da Índia, em busca de chá e de macacos, os fabulosos langures negros das Nilgiris. Num outro mês de Dezembro, no remoto ano de 1964, Jules Masserman, Stanley Wechkin, e William Terris publicaram um artigo também sobre macacos. Não sobre os langures da Nilgiris, mas sobre os macacos resus, da espécie Macaca mulatta, como os que se mostra na imagem ao lado. O artigo desses senhores, apenas duas páginas, deixa uma impressão profunda em quem o lê. Pelo menos esse foi o meu caso. Os autores colocaram os macacos face a um dilema: passar fome ou magoar outro macaco. [... ler mais]

O artigo sobre as difíceis escolhas dos macacos resus, da autoria de Jules Masserman, Stanley Wechkin, e William Terris foi publicado na revista American Journal of Psychiatry (ref1). Em que é que consistiu a tal experiência?

Sete fêmeas e oito macacos resus machos, capturados no estado selvagem, foram colocados numa jaula, com dois fios que caíam do tecto, ligados a interruptores. Os macacos foram então treinados a obter comida, puxando um dos fios quando acendia uma luz vermelha, e o outro quando acendia uma luz azul. O período de treino durou até os macacos conseguirem uma eficácia de 90% na tarefa. Um outro macaco, um "animal de estímulo", como lhe chamam os autores, foi então colocado num compartimento ao lado, separado por um semi-espelho: o macaco no compartimento com os fios e as luzes via o outro, mas o "animal de estímulo" não conseguia ver o compartimento ao lado. Ao fim de quatro dias, os investigadores fizeram então uma maldade: programaram um dos interruptores para dar um choque eléctrico ao animal de estímulo. Deve notar-se que os animais que escolhessem comer apenas quando a luz de uma dada cor fosse activada não sucumbiriam à falta de alimento, mas passariam fome. Para ficarem saciados os animais teriam que dar choques ao desgraçado na outra jaula.

Os resultados foram claros, apenas 5 dos 15 animais não mostraram uma preferência estatisticamente significativa pela alavanca que dava apenas comida e não electrocutava o animal do lado. Mas desses cinco dois fizeram-no porque depois de verem o animal no outro compartimento levar um choque se recusaram a puxar qualquer um dos fios. Um deles passou fome durante cinco dias, o outro durante doze! Os animais mantiveram um padrão de resposta consistente mesmo quando os investigadores mudaram os parceiros, tendo notado que os animais que tinham sofrido eles próprios choques eléctricos optavam com maior probabilidade por respostas extremas de privação de alimento.

A experiência mostrou que a maioria dos macacos resus prefere, de forma consistente, passar fome do que conseguir comida à custa de um choque eléctrico num congénere. A resposta dos animais não está relacionada de forma significativa com a idade, tamanho, sexo ou posição hierárquica do outro macaco.

É um resultado que nos toca de tão "humano": fazer sacrifícios pelo bem dos outros, algo que entra no domínio do que definimos como moralmente correcto. Nestes pequenos macacos, capturados na natureza e colocados em jaulas, não deixa de ser algo de sublime.

Ficha técnica
Imagem dos macacos cortesia de Nikita Golovanov, obtida a partir desta página de Wikimedia Commons.

Referências
(ref1) Jules Masserman, Stanley Wechkin, and William Terris (1964). `Altruistic' Behavior in Rhesus Monkeys. American Journal of Psychiatry vol. 121, pp. 584-585.

8 comentários:

João Carlos disse...

Juntando o teu pinguim anterior com o macaco deste, me assalta a dúvida: e se tratasse de um Rhesus de outro bando?... Ou de um macaquinho albino (se é que tal existe)?

Será que - no caso de um "forasteiro" ou de um "socialmente excluído" - haveria a mesma solidariedade?

Meu último "lobo" Huskie se foi no mês passado, mas eu tive uma matilha e vi a "Loba" Alfa demonstrar "preocupação maternal" com seu filhote já bem adulto.

O estudo do comportamento dos animais gregários ainda vai acabar pór introduzir uns capítulos a mais na Teoria dos Jogos...

Caio de Gaia disse...

Os macacos ficavam perturbados mesmo com forasteiros, e quer com animais pequenos ou grandes (socialmente fracos ou dominantes).

João Carlos disse...

Então minha inferência de que os animais gregários têm uma "tendência altruísta" (que pode ser reduzida a "instinto de sobrevivência da espécie", levado além da mera proliferação) leva boas chances de ser verídica.

Tanto pior para Dawkins e seu "Gene Egoísta"...

Caio de Gaia disse...

Aí discordo. É muito provável que a nossa tendência altruísta seja resultado da capacidade para detectar um batoteiro e não cooperar mais com esse indivíduo. Um gene (sendo simplista) que leve alguém a ser batoteiro num grupo pequeno, onde todos se conhecem, pode dar azo a uma vantagem no imediato mas não no longo prazo.

Aliás, uma das coisas que torna os seres humanos "especiais", é esta coisa que temos de dispender um esforço despropositado a policiar os outros e a castigar os batoteiros. Neste caso o "egoísmo dos genes" deverá mesmo levar a que a norma de comportamento seja altruísta, pois é a que assegura o melhor resultado (em grupos pequenos onde todos os indivíduos precisam frequentemente de ajuda de outros).

É um problema curioso no estudo da "moral humana". A simples selecção natural força a que os batoteiros sejam um nicho limitado (precisam de um afluxo constante de novos otários que não os conheçam). Num grupo pequeno a boa reputação é algo muito importante; não se ajudam aqueles que se sabe que não retribuem favores, mas é do nosso interesse ajudar aqueles que nos poderão ajudar mais tarde.

Os genes são de facto egoístas mas o produto desses genes pode ser uma criatura "moral" e altruísta.

João Carlos disse...

Compreendo... Trata-se, portanto, de um "altruísmo" interesseiro. "Se me comporto bem, me tratarão bem".

Me pergunto até que ponto isso não é mesmo um mecanismo auto-regulatório da natureza... E o quanto dos problemas da humanidade não devidos à sobrevivência de indivíduos que, pela seleção natural, não deviam prosperar: os anti-sociais...

P.S: estou remetendo uma notícia do EurekAlert sobre comportamento de Chimpanzés.

Caio de Gaia disse...

Aí é que está é interesseiro do ponto de vista dos genes, mas para os indivíduos pode ser genuinamente altruista. Nós fazemos muitos actos desinteressados (como ajudar alguém que não voltaremos a ver) porque nos dá prazer e porque no fundo é assim que julgamos que é a forma correcta de proceder. Num grupo pequeno e coeso este é o tipo de comportamento que permite um melhor funcionamento e uma vida mais fácil para todos no grupo.

Claro que há sempre formas de iludir os outros, mas dado o carácter vingativo da espécie humana há custos envolvidos.

João Carlos disse...

Mais uma vez lhe dou razão. Não deixa de ser uma aparente contradição: somos altruístas por uma questão de "egoismo" - isso nos é prazeroso.

Eu confesso que não entendo é a motivação dos "anti-sociais", dos batoteiros... E o fascínio que essa fugaz sensação de "poder" exerce. Para mim, isso é anti-natural...

Caio de Gaia disse...

Um batoteiro que não é apanhado tem vantagens. Ter os outros a ajudar e eclipsar-se quanto é preciso que ajude representa uma apreciável economia de esforço.

Em criaturas sem esperteza suficiente para identificarem batoteiros o tipo de altruismo que vemos nos humanos seria pouco provável. Aí compensaria mais (do ponto de vista dos genes) não ser altruista.