quarta-feira, janeiro 24, 2007

A Flora finalmente é mamã e papá

Pois é os rapazinhos nasceram. Eu tinha referido aqui há uns dias que uma fêmea da espécie Varanus komodoensis, chamada Flora pelos tratadores, tinha posto uma ninhada de ovos, no distante dia 21 de Maio de 2006, sem a participação de qualquer macho. Dado o mecanismo da determinação do sexo nos dragões, o processo de partenogénese só poderia originar meninos. Pois eis que aí estão eles, cinco robustos dragõezinhos, medindo de 40 a 45 centímetros e pesando de 100 a 125 gramas cada um. O primeiro saiu da casca no dia 15 de Janeiro, seguido pelos irmãos nos dias 17, 18, 21, e 22 do mesmo mês. Há ainda dois ovos que poderão aumentar o agregado familiar. [... ler mais]

Nas palavras de Kevin Buley, um dos curadores do Zoológico de Chester, onde reside a feliz família:

A Flora mostra-se alheia a toda a excitação que causou mas estamos encantados por dizer que ela é agora papá e mamã. Quando o primeiro dos bebés eclodiu não sabíamos se lhe devíamos oferecer uma chávena de chá ou passar-lhe um charuto.

Enfim o típico humor britânico, mas é de facto uma ocasião feliz, sobretudo para os pequenos dragões, que se deliciam com uma dieta de grilos e gafanhotos. Só lhes falta mesmo o cartão de sócios do Futebol Clube do Porto.

Ficha técnica
Texto inspirado nas notícias do Chester Zoo, onde podem ser vistas imagens dos pequerruchos.

As mensagens póstumas das vespas

Publicámos, recentemente, um artigo indicando que vespas em agregados depositam feromonas peptídicas, nos hibernáculos onde passam o inverno, que são sentidas pelas raínhas das gerações posteriores quando buscam locais adequados para hibernarem. O facto intrigante é este: as vespas da geração seguinte recebem uma informação depositada por vespas que morreram uns meses atrás, pelo que estes peptídeos actuam como "palavras num livro" deixado por escritores antigos!
Publicámos, recentemente, um artigo indicando que vespas em agregados depositam feromonas peptídicas, nos hibernáculos onde passam o inverno, que são sentidas pelas raínhas das gerações posteriores quando buscam locais adequados para hibernarem. O facto intrigante é este: as vespas da geração seguinte recebem uma informação depositada por vespas que morreram uns meses atrás, pelo que estes peptídeos actuam como "palavras num livro" deixado por escritores antigos!

Esta é a tradução de uma mensagem que Leonardo Dapporto deixou na caixa de comentários da minha contribuição sobre as vespas brincalhonas. Este comentário ilustra bem uma das vantagens de um blogue com caixa de comentários aberta: a referência a outros estudos interessantes, ainda por cima por parte de um autor do estudo que eu estava a descrever. Mais uma vez as heroínas da história são as vespas da espécie Polistes dominulus. Este novo estudo fala da comunicação química nas vespas. A comunicação química, utilizando feromonas, é algo muito espalhado nas espécies de insectos, só que estas vespas vão mais além, e usam um tipo especial de feromonas para comunicarem mesmo depois de mortas. [... ler mais]

O artigo da autoria de S. Turillazzi e colegas foi publicado na revista Current Biology (ref1). Numa tradução livre de parte do início do artigo:
No final do verão, as raínhas acabadas de emergir e de acasalar abandonam as suas colónias e formam enxames de centenas de indivíduos em locais abrigados, conhecidos como hibernáculos, onde passam a estação fria. A hibernação é um período crítico e a selecção de um abrigo de inverno é provavelmente essencial para a sobrevivência. As vespas muitas vezes invernam no mesmo abrigo ano após ano, o que sugere a presença de pistas persistentes que marcam os hibernáculos utilizados. Este aspecto foi apontado pela primeira vez por Rau em 1930, que também observou fêmeas Polistes annularis a inspecionaram possíveis hibernáculos. Relatamos aqui que, para futuras raínhas de Polistes dominulus, estas pistas persistentes são peptídeos, encontrados na sua cutícula e no seu veneno, que actuam com feromonas marcadoras de hibernáculos de uma geração a outra.

Os peptídeos são pequenas cadeias de aminoácidos, os constituintes das proteínas. A experiência que os autores executaram é bastante simples do ponto de vista conceptual. Cada vespa solitária em período de hibernação era colocada num dispositivo em que podia escolher um entre dois tubos como local onde continuar a hibernar. Quando a escolha era entre um tubo não utilizado, ou um tubo utilizado anteriormente por outras vespas, as vespas preferiam tubos previamente ocupados por outras vespas, mesmo que abandonados há mais de oito meses. Os autores verificaram que a pista que as vespas seguiam era a presença de peptídeos existentes no exosqueleto e no veneno das vespas, a que chamaram dominulinas em honra à espécie de vespas. Estas dominulinas só persistem durante longos períodos de tempo em locais à prova de água, e são assim um bom indicador de um abrigo bem protegido.

Há frases que de tão inusitadas por se referirem a insectos me ficam na memória. Depois das "simultaneamente profecias e histórias" aquando da dança das abelhas, eis agora o "palavras num livro deixado por escritores antigos" relativas às mensagens que as vespas deixam para serem lidas depois de mortas.

Ficha técnica
Imagem de vespa cortesia de Ellen Levy Finch, retirada desta página da Wikimedia Commons.

Referências
(ref1) Turillazzi S., Dapporto L., Pansolli C., Boulay R., Dani F.R., Moneti G., Pieraccini G. (2006). Habitually used hibernation sites of paper wasps are marked with venom and cuticular peptides. Current Biology Volume 16, Issue 14, Pages R530-R531. Laço DOI.

sábado, janeiro 13, 2007

As vespas brincalhonas

Eu tinha uma lista de temas para este fim de semana, que ainda vale, mas não podia deixar de acrescentar isto. Enquanto verificava alguns artigos saídos no final de 2006, encontrei algo de fantástico sobre as vespas mais vulgares em Portugal, da espécie Polistes dominulus. Estas são as vespas que fazem aqueles abrigos tipo papel. São animais que sempre me fascinaram e fico por vezes bastante tempo a vê-las carregarem lagartas e outros insectos para os ninhos, onde são mastigados até formarem uma espécie de polpa que se destina a alimentar as larvas. O que eu não fazia ideia era que as vespas destinadas a fundarem ninhos na Primavera brincam umas com as outras durante o período de hibernação que antecede a saída. [... ler mais]

A investigação de Leonardo Dapporto e colegas foi publicada no Journal of Comparative Psychology (ref1). Numa tradução livre do resumo:

A ideia de que os insectos brincam é recebida muitas vezes com cepticismo. Apesar disso, os autores investigaram a ocorrência de um comportamento tipo brincadeira em indivíduos jovens da vespa do papel. As Polistes dominulus fundadoras hibernam em agregados e fundam ninhos associativos na primavera. Nestes agregados são efectuadas interações de dominância precoces com uma frequência exagerada, ao passo que a agressão e trofalaxia são raras.

A trofalaxia é a regurgitação de alimento de umas vespas para outras, um aspecto importante nas interações entre indivíduos numa colónia.
O comportamento de dominância nos agregados é aparentemente inútil,mas permite provavelmente às vespas aferirem o seu potencial de dominância sem que haja uma competição reprodutiva aparente. Surpreendentemente, estas interações podem ser interpretadas da forma mais conveniente como brincadeira porque o comportamento de dominância nos agregados partilha várias características com o comportamento de luta a brincar dos mamíferos.

Quem já teve vários cachorros jovens em casa sabe bem a que se refere a parte em que coloquei o ênfase a negrito. Que as vespas brincavam umas com as outras é algo que nunca me tinha passado pela cabeça.

Ficha técnica
Imagem cortesia de Fabio Brambilla, retirada da Wikimedia Commons.

Referências
(ref1) Dapporto, Leonardo; Turillazzi, Stefano; Palagi, Elisabetta (2006). Dominance Interactions in Young Adult Paper Wasp (Polistes dominulus) Foundresses: A Playlike Behavior? Journal of Comparative Psychology, Volume 120, Issue 4.

domingo, janeiro 07, 2007

O Natal é sempre que um grilo canta

Dia de Reis, altura de desarmar os presépios, comer bolo-rei ou pão-de-ló, e beber Vinho do Porto. Uma boa data também para voltar a falar de moscas. Descrevi numa contribuição anterior parte do ciclo de vida da Ormia ochracea, uma mosca parasítica cujas larvas encontram a felicidade nas entranhas dos grilos. Só que nessa história não há um Menino Jesus a colocar grilos no sapatinho das larvas. Compete à mãe mosca encontrar a prenda, e ela tem o equipamento adequado para isso: um par de orelhas de grilo. O que denuncia os grilos são os ardores amorosos dos machos, pois a mãe mosca tem os ouvidos afinados para a frequência a que cantam. [... ler mais]

O mecanismo que permite à O. ochracea capacidades auditivas notáveis foi desvendado por Robert, Amoroso e Roy, e publicado na revista Science (ref1), no já distante ano de 1992. Numa tradução livre do resumo:

O parasitismo é uma estratégia de vida diversificada e bastante espalhada que liga espécies no reino animal. As moscas fêmeas parasíticas do género Ormia devem encontrar um grilo hospedeiro específico no qual depositam as suas larvas parasitas. Para se reproduzirem, as moscas fêmeas têm que desempenhar a mesma tarefa que as fêmeas dos grilos: encontrarem um grilo cantor isolado. Estas moscas desenvolveram um orgão auditivo único que lhes permite detectarem e localizarem grilos machos cantores. Através de convergência evolutiva, estas moscas possuem um orgão auditivo que se assemelha muito mais a um ouvido de grilo que a uma ouvido típico de mosca, permitindo a estes parasitas aproveitarem o nicho ecológico sensorial do seu hospedeiro.

Para mostrar esses ouvidos tão especiais tenho primeiro que fazer algo de que os leitores habituais já estarão à espera. Das outras vezes em que falei aqui de moscas fêmeas isso envolveu decapitação e desta vez não vai ser diferente. Os ouvidos desta mosca estão nos ombros, o que significa que a linda cabeça da mosca tem que saltar para que lhe possamos ver as orelhas.

Notem os macabros verstígios do pescoço. Na imagem pós-decapitação as orelhas não são tão óbvias como isso. Eis aqui a mesma imagem com ajustes no contraste e com setas a indicarem algumas características importantes.

Os orgão auditivos da mosca são os dois tímpanos quitinosos indicados pelas setas. Estas orelhas minúsculas têm apenas cerca de 1 milímetro quadrado de área e estão ligadas entre si por uma pequena ponte semirrígida. À mosca não interessa apenas determinar que está um grilo a cantar, interessa-lhe também determinar a localização, isto é a direcção e a distância até ao cantor. Não se trata de uma tarefa muito complicada para quem tem dois ouvidos. A maioria dos animais localizam as fontes sonoras a partir de dois mecanismos: a diferença de tempo entre a chegada do som a cada ouvido, e a diferença de intensidade entre os sons que chegam a cada ouvido.

No caso da Ormia há contudo um problema ligado às dimensões. Os tímpanos da Ormia distam um do outro qualquer coisa como apenas 0.5 milímetros, e mesmo nas condições mais extremas (som que vem completamente da esquerda ou direita) o atraso é de apenas um microssegundo e meio, cerca de 400 vezes menos que num ser humano. Este tempo é demasiado curto para ser eficientemente processado pelo cérebro da mosca, que codifica sinais com uma precisão da ordem dos 70 milissegundos. Por outro lado, a diferença de intensidade numa distância tão curta é menos que um decibel, que é uma atenuação muitas vezes abaixo do necessário para ser percebida pela mosca. Ora, quer no laboratório, quer na natureza, as Ormias não têm problema em localizar grilos a vários metros de distância, mesmo quando eles se calam com a mosca a meio do caminho. A forma como estas moscas o conseguem não tem paralelo no reino animal e está relacionada com a pequena ponte semirígida que une os tímpanos. Discutirei isso em maior detalhe numa próxima contribuição, mas para já deixo-vos com uma imagem que ilustra um desconcertante aspecto desta investigação: estudar os parasitas dos grilos pode vir a auxiliar pessoas com problemas auditivos.

Os auxiliares auditivos para seres humanos existentes no mercado são todos muito maiores em tamanho que a Ormia, mas todos apresentam um desempenho muitíssimo inferior ao da mosca.

Ficha técnica
Imagens cortesia de Roy Hoy e Ronald Miles, obtidas a partir desta página da Neuronal Pattern Analysis, no Beckman Institute, University of Illinois em Urbana Champaign.

Referências
(ref1) D Robert, J Amoroso, and RR Hoy (1992). The evolutionary convergence of hearing in a parasitoid fly and its cricket host. Science Vol. 258. no. 5085, pp. 1135 - 1137. Laço DOI.

quarta-feira, janeiro 03, 2007

Algumas aves são verdadeiramente filhos da mãe

Antes de mais nada, desejo um Bom Ano a todos os leitores deste espaço. Aproveito também para avisar os leitores habituais de que vou ser muito menos "falador" em 2007. Por motivos de ordem profissional em princípio o Cais de Gaia passará a ser actualizado apenas durante o fim de semana. No próximo sábado ou domingo falarei, como prometido, dos ouvidos das moscas. Contudo, visto que as festividades natalícias só acabam no Dia de Reis, não podia desperdiçar a ocasião para referir um facto curioso relativo a um dos pratos típicos do Natal.


Na minha família o prato tradicional de Natal é o Fiel Amigo, mas muita gente por esse mundo fora, mesmo em Portugal, prefere um suculento e bem assado Meleagris gallopavo. O nome latino da criatura pode não significar grande coisa para muitos leitores, mas seguramente quase todos adivinharam, olhando para a imagem, que se trata de um peru doméstico. O que muitos leitores possivelmente ignoram é que os perus partilham com os dragões de Komodo algo de que falei aqui anteriormente: a possibilidade de nascimentos virgens. [... ler mais]

Por estranho que possa parecer a partenogénese é razoavelmente comum nos perus, embora na maioria dos casos os ovos não sejam viáveis. Essa menor propensão dos "ovos sem pai" para eclodirem acarreta custos económicos que justificam mesmo páginas dedicadas ao assunto no Departamento de Ciências Animais da Oregon State University. Foi aí que descobri factos curiosos e toda uma série de referências sobre o assunto. Embora seja uma ocorrência rara, alguns perus partenogenéticos conseguem sair da casca e atingir a idade adulta. Tal como no caso do dragões, os perus meninos de sua mãe são todos machos, o que tem a ver com um mecanismo genético semelhante para a determinação do sexo: os machos são ZZ e fêmeas ZW.

Pois é, mesmo peruas com vidas recatadas podem ter filhos que não sabem quem é o pai. Quando se é um peru macho, como o que mostra na imagem abaixo, há uma pequena possibilidade de que não se tenha pai, apenas mãe.

Ficha técnica
Imagens de perus retiradas da Wikimedia Commons, desta e desta páginas.