domingo, julho 30, 2006

Quem lhes comeu a carne deixou que outros lhes analisassem os ossos

Como eu referi recentemente, está neste momento em curso um projecto que visa reconstruir o genoma do homem de neandertal. Esse estudo vai talvez permitir responder a algumas questões acerca da interacção entre o homem moderno e esta variante do género Homo desaparecida há cerca de 30,000 anos. A imagem do Homo neanderthalensis tem vindo a "humanizar-se" progressivamente desde a imagem dos brutos animalescos "homens das cavernas" que se popularizou aquando da sua descoberta. As reconstruções modernas, como esta de uma criança que teria aproximadamente 4 anos, a partir de vestígios descobertos em Gibraltar, ilustram-no bem. Há no entanto diferenças que fariam com que um neandertal, que por acaso passeasse entre humanos modernos, se destacasse facilmente. [... ler mais]

O rosto abaixo, de uma mulher adulta que poderia ser a mãe do rapazinho acima, mostra claramente algumas das grandes diferenças que tornam o homem de neandertal tão fácil de distinguir do sapiens: testa baixa, meio da face projectado para a frente, os arcos salientes sobre as órbitas oculares.

Na verdade esta reconstrução é algo imperfeita, como a presença de queixo deixa antever.

A Nature tem um interessante artigo de Rex Dalton (ref1) sobre as movimentações na Europa em relação ao projecto do genoma do neandertal. Em grande parte, discute problemas burocráticos em França, e questões que têm a ver com cientistas que se tentam "colar" ao projecto. Estes aspectos revelam que se trata de uma iniciativa que é levada muito a sério, e deixam antever pode vir a ter repercussões profundas sobre a forma como vão ser distribuídos os financiamentos futuros na área. Uma das partes do texto que me chamou a atenção, porque se trata de algo em que eu nunca tinha pensado foi (numa tradução livre):

Uma vantagem chave do local de Moula-Guercy é que os ossos estão bem preservados por causa do canibalismo que remove a carne e logo as bactérias destrutivas. Os ossos longos foram abertos para retirar a medula, o que pode aumentar a possibilidade de que o ADN sobreviva, diz White, uma autoridade em prácticas canibalísticas.
White suspeita que esta possa ser a razão pela qual Pääbo teve sucesso ao sequenciar ADN das amostras da Croácia: porque elas são de um local, chamado Vindija, onde o canibalismo era practicado.

Qualquer que fosse a razão do canibalismo nesses locais, ao comerem os seus mortos os neandertais podem ter-nos dado os meios de trazê-los de volta.

Ficha técnica
Imagem do rapaz de Gibraltar retirada desta página que descreve o processo de reconstrução em detalhe.
Imagem da mulher adulta retirada do artigo da PLoS biology dado como ref2 abaixo.

Referências
(ref1) Rex Dalton (2006). Palaeoanthropology: Decoding our cousins. Nature 442, 238-240. Laço DOI.
(ref2) Cro-Magnons Conquered Europe, but Left Neanderthals Alone. PLoS Biol 2(12): e449 Laço DOI.

sexta-feira, julho 28, 2006

O palrear da macacada e a linguagem dos homens

O pequeno macaco resus, de seu nome científico Macaca mulatta, habita no Afeganistão, Norte da Índia e sul da China. É um primata que se adapta bem ao cativeiro e é muito utilizado em experiências de laboratório. Famosos pelo factor sanguíneo Rh (de rhesus), estes macacos já foram enviados ao espaço pela NASA, já foram clonados, e até já houve quem colocasse genes de alforreca num deles. Em liberdade, estes macacos são bastante "faladores". Os resus são capazes de uma série de vocalizações para avisar os colegas sobre a presença de alimento, de predadores, e para comunicar estados emocionais a congéneres. A questão é até que ponto o estudo destas vocalizações nos pode auxiliar a perceber a evolução das estruturas envolvidas na compreensão da liguagem nos seres humanos. [... ler mais]

Num artigo fresquíssimo, acabado de sair, na revista Nature Neuroscience (ref1) Ricardo Gil da Costa e colegas descrevem os resultados de um estudo sobre as áreas do cérebro envolvidas na interpretação das vocalizações nos macacos resus. Numa tradução livre do resumo:

A origem dos mecanismos cerebrais que permitem a linguagem human — quer se trata de uma novidade que apareceu nos humanos ou quer tenha evoluído de um substrato que existisse num antepassado comum — permanece um tema controverso. Embora a resposta não seja fornecida pelo registo fóssil, é possível fazer inferências estudando espécies existentes de primatas não humanos. Identificamos aqui os sistemas neuronais associados com a percepção de vocalizações específicas a indivíduos de macacos resus utilizando tomografia de emissão de positrões (TEP) de H2 15O.

A TEP é uma técnica que consiste em injectar isótopos radioactivos, neste caso água com 15O, na corrente sanguínea. É usada também em humanos e é um procedimento bastante seguro. As imagens obtidas estudando as emissões do material radiactivo permitem então identificar as regiões do cérebro onde o sangue flui em maior quantidade. O que os cientistas fizeram foi expôr os macacos a gravações de vocalizações de outros macados e ver quais as zonas do cérebro que mostravam um aumento das emissões positrónicas.
Estas vocalizações evocam padrões de actividade cerebral distintos, em regiões homólogas das áreas de linguagem perisylvianas humanas.

Esta é a região do cérebro que se julga estar envolvida na produção e compreensão da linguagem falada nos seres humanos. Os autores concluem o resumo com:
Em vez de resultar de diferenças nas propriedades acústicas, esta actividade parece reflectir um processamento auditivo de ordem mais elevada. Embora a evolução paralela em espécies de primatas independentes seja possível, esta descoberta sugere a possibilidade de que o último antepassado comum dos macacos e dos humanos, que viveu entre 25 a 30 milhões de anos atrás, possuía mecanismos neuronais chave que eram candidatos plausíveis para exaptação durante a evolução da linguagem.

O processo evolutivo trabalha com aquilo que os seres vivos têm, em geral não produz coisas a partir do nada. A "exaptação" é um termo que significa isso mesmo: indica que uma estrutura é co-optada para uma nova tarefa, e eventualmente pode mesmo acabar por perder a função inicial. Um caso óbvio são as asas dos morcegos ou das aves. A aquisição da linguagem é um dos marcos mais importantes da evolução humana. A descoberta desta correspondência funcional entre regiões semelhantes no cérebro humano e de outros primatas é um avanço importante.

Ficha técnica
Imagem dos macacos na ilha de Hainan na China cortesia de Nikita Golovanov, obtida a partir desta página de Wikimedia Commons.

Referências
(ref1) Ricardo Gil-da-Costa, Alex Martin, Marco A Lopes, Monica Muñoz, Jonathan B Fritz & Allen R Braun (2006). Species-specific calls activate homologs of Broca's and Wernicke's areas in the macaque. Nature Neuroscience 9, 1064 - 1070. Laço DOI.

quinta-feira, julho 27, 2006

Nos olhos algumas células são lerdas e outras são afoitas

Na contribuição anterior falei num artigo que ligava a encefalização nos primatas à quantidade de informação visual que os seus cérebros processavam. Mas quão grande é exactamente essa quantidade de informação? De que volume de dados estamos a falar? [... ler mais]

Mal tinha formulado essa pergunta quando me deparei com a resposta, fruto de um trabalho recém-publicado. Até nem precisei de procurar muito, o número mais recente da Current Biology traz a resposta a essa questão num artigo de Kristin Koch e colegas (ref1). Numa tradução livre do resumo:

No clássico "O que o olho da rã diz ao cérebro da rã", Lettvin e colegas mostraram que diferentes tipos de células ganglionares retinais enviam tipos de informação específicos. Por exemplo, um tipo responde melhor a uma forma escura convexa movendo-se de forma centrípeta (uma mosca). Consideramos aqui uma questão complementar: quanta informação é que a retina envia e como é repartida entre os diferentes tipos de células?

O olho humano é mais que uma simples "máquina" fotográfica, e faz grande parte do trabalho de processamento de imagem antes de "enviar" as coisas para o cérebro. Isso deve-se em grande parte à repartição de tarefas entre as diferentes células ganglionares da retina. A retina é no fundo um "bocado do cérebro", e as células ganglionares são de facto neurónios. Os cerca de 10 a 15 tipos diferentes de células ganglionares respondem a diferentes tipos de estímulos e, juntamente com outras células da retina, fazem um tratamento preliminar dos dados visuais. O processamento de informação ao nível da retina era conhecido há décadas, o que se desconhecia eram os tempos de resposta das várias células e a quantidade de informação que enviavam para o cérebro. É aí que entra este estudo de Kristin Koch e colegas:
Registando informação da retina de um porquinho da Índia numa cadeia de multi-eléctrodos e apresentando diversos tipos de movimento em cenários naturais, medimos taxas de informação para sete tipos de células ganglionares. As taxas médias variaram ao longo dos tipos de células de 6 a 13 bits por segundo a mais que entre os estímulos. Células lerdas transmitiram informação a taxas mais baixas que células afoitas, mas devido a compensações entre ruído e correlação temporal, todos os tipos tinham a mesma eficiência de registo.

Este lerdas é a minha tradução de "slugish" e afoitas de "brisk" do trabalho original. Do ponto de vista da velocidade, as células ganglionares caem nestas duas categorias. Aproveito para salientar que, embora eu não o dicuta aqui, a conversão da resposta das células aos estímulos em quantidade de informação (bits) é em si um tema bastante interessante. Não é tão simples como parece, o que interessa é o padrão da resposta e como se destaca de um ruído de fundo. Vamos então os números:
Calculando as proporções de cada tipo de células a partir do tamanho do campo receptor e factor de cobertura, concluímos (admitindo independência) que as aproximadamente 105 células ganglionares transmitem na ordem de 875,000 bits por segundo. Porque as células lerdas são igualmente eficientes mas mais numerosas, elas respondem pela maior parte da informação. Com aproximadamente 106 células ganglionares, a retina humana transmitirá dados a uma taxa semelhante a uma ligação ethernet.

Os seja qualquer coisa como 10 Mbits por segundo. Este valor não é nada de extraordinário, e, quem sabe, talvez seja possível num futuro não muito distante produzir um olho artificial. O que é interessante é que são as células lerdas que transportam a maior parte da informação. Nos comunicados de imprensa um dos autores do estudo, Peter Sterling, faz uma analogia curiosa:
No que se refere a enviar informação visual para o cérebro, estas células afoitas são o Fedex do sistema óptico, enquanto as células lerdas são o equivalente do correio dos Estados Unidos.

De facto, devido ao custo, só enviamos coisas por correio ultra-rápido quando é mesmo necessário. Ao propor esta analogia os autores estão no fundo a sugerir que o tipo de resposta das células afoitas tem custos metabólicos muito superiores ao tipo de resposta das células lerdas.

Ficha técnica
A imagem foi adaptada de um original que pode ser encontrado no comunicado de imprensa da University of Pennsylvania School of Medicine.

Referências
(ref1) Kristin Koch, Judith McLean, Ronen Segev, Michael A. Freed, Michael J. Berry, Vijay Balasubramanian, and Peter Sterling (2006). How Much the Eye Tells the Brain. Current Biology, Vol 16, 1428-1434. Resumo.

quarta-feira, julho 26, 2006

Este cérebro grande é para te ver melhor

Tantas revistas científicas, tão pouco tempo. Mas já que coloquei a mão na massa aquando do artigo sobre o medo das cobras como agentes da evolução no cérebro dos primatas, aproveitei para dar uma vista de olhos pelos outros artigos nesse número do Jornal of Human Evolution. Há um outro artigo sobre o tema da encefalização nos primatas, da autoria de E. Christopher Kirk (ref1), que estuda o impacto das influências visuais. O autor não se preocupa com o tipo de influências (cobras, frutos, identificação de outros membros do grupo) mas sim com o volume de informação visual processada pelo animal. [... ler mais]

Numa tradução livre do resumo:

Os primatas diferem da maioria dos outros animais ao possuirem cérebros relativamente grandes. Como resultado, um grande número de estudos comparativos tentaram identificar as variáveis selectivas que influenciaram a encefalização dos primatas. Contudo, nenhum examinou o efeito da quantidade total de informação visual no tamanho relativo do cérebro. De acordo com o princípio de Jerison de quantidade de massa, as áreas funcionais do cérebro dedicadas primordialmente ao processamento de informação visual deveriam exibir aumentos de tamanho quando a quantidade de informação visual para essas áreas aumenta. Como resultado, a quantidade total de informação visual para o cérebro poderia exercer uma grande influência na encefalização porque as áreas visuais correspondem a uma grande proporção do total da massa do cérebro nos primatas.

A quantidade de informação visual é um parâmetro que, curiosamente, pode ser estimado facilmente, embora de forma indirecta.
O objectivo desta análise é testar a expectativa de uma relação directa entre informação visual e encefalização usando o tamanho do foramen óptico e o tamanho do nervo óptico como indicadores da quantidade total de informação visual.

Os autor testou não apenas primatas mas também carnívoros, e fez três análises distintas.
Os dados foram recolhidos para uma grande amostra comparativa de primatas e carnívoros, e foram efectuadas três análises primárias. Primeiro, a relação entre indicadores para a informação visual e o volume endocraniano relativo foram examinados usando correlações parciais e métodos filogenéticos comparativos. Segundo, para examinar a generalidade dos resultados obtidos para primatas existentes, uma série paralela de correlações parciais e análises comparativas foram executadas usando dados para carnívoros. Terceiro, dados de vários primatas do Eoceno e Oligoceno foram comparados com dados de primatas vivos para determinar se as espécies fósseis mostram uma relação semelhante entre tamanho relativo do cérebro e informação visual.

O autor conclui então:
As três análises confirmam as expectativas da quantidade de massa e favorecem a conclusão de que o total de informação visual tem sido uma influência importante na evolução do tamanho relativo do cérebro quer nos primatas quer nos carnívoros. Para além disso, este estudo sugere que as diferenças na quantidade de informação visual podem explicar parcialmente (1) a elevada encefalização dos primatas relativamente à condição euteriana primitiva, (2) a elevada encefalização dos antropóides existentes relativamente a outros primatas, e (3) a muito baixa encefalização dos adapiformes do Eoceno.

O interessante no processamento visual é que é integrado em toda uma hierarquia de processos cognitivos, que tem a ver com o reconhecimento de formas, e reacção a essas formas. O espectro de possibilidades que se abrem como consequência de uma maior riqueza de observação visual pode ser complementado com formas de analisar os sinais visuais. Isto abre todo um leque de possibilidades, sobretudo num animal social pois permite formas mais complexas de interacção social, aprendizagem social e previsão de comportamento dos outros. Para além das tarefas sociais há os aspectos ecológicos, tais como construir mapas cerebrais da região onde se vive, ou detectar mellhor os predadores.

Ficha Técnica
Imagem do cérebro humano com o córtex visual a vermelho retirada de Wikimedia Commons, desta página.

Referências
(ref1) E. Christopher Kirk (2006). Visual influences on primate encephalization.Journal of Human Evolution, Volume 51, Issue 1, Pages 76-90. Laço doi.
>

As ovelhas sonham com ovelhas ausentes?

Hoje vou falar de ovelhas, cientificamente designadas por Ovis aries. Tendemos a falar das ovelhas com expressões depreciativas acerca da sua inteligência e mentalidade de rebanho, ou, na sua versão cordeiro, como paradigma da inocência. Pois bem, essa é uma avaliação redutora e injusta. As ovelhas são criaturas sensíveis, que conseguem reconhecer as caras de outras ovelhas, e mesmo de seres humanos, e são capazes de guardar esses rostos durante muito tempo em memória. [... ler mais]

A razão porque resolvi falar da memória dos ovinos tem a ver com o artigo sobre as cobras e da evolução dos primatas de que falei aqui anteriormente. Posso ter parecido demasiado crítico na minha apreciação, mas isso não quer dizer que eu não tenha encontrado muita coisa de que gostei no artigo. Na verdade recomendo-o vivamente. Embora o nexo causal com as cobras não me pareça particularmente forte, a autora faz um bom apanhado das outras hipóteses, em particular das suas fraquezas. Um dos pontos que a autora discute tem a ver com as elevadas capacidades cognitivas supostamente necessárias para reconhecer e interagir com indivíduos num grupo alargado. A frase que utiliza para rebater esta "inteligência social" é particularmente deliciosa. Numa tradução livre:

Primeiro, deve explicar porque razão as ovelhas (Ovis aries), que não são conhecidas por possuirem cérebros grandes, são apesar disso capazes de reconhecer visualmente e recordar tantos indivíduos quantos aqueles presentes num bando típico de babuínos, mesmo após um ano de separação.

E aqui a autora cita dois artigos, que vou discutir no que segue. Um deles é um artigo de Kendrick e Baldwin na Science (ref1) que mostra que as ovelhas possuem alguns processos mentais em comum com os humanos. Numa tradução livre do resumo:
Para investigar se o córtex temporal de uma espécie de não primatas contém células que respondam à visão de rostos, efectuou-se um estudo, em ovelhas conscientes, das respostas de neurónios nesta região do cérebro à visão de rostos. Das 561 células em que as respostas foram registadas, 40 responderam preferencialmente a rostos. Diferentes categorias dessas células foram influenciadas pela dominância (provavelmente indicada pela presença e tamanho dos chifres), raça e familiaridade, e rostos ameaçadores como as de humanos e cães. Estes resultados mostram que as células que respondem preferencialmente a rostos estão presentes no córtex temporal de uma espécie de não primatas, e que as respostas destas células são influenciadas por factores relevantes para a interação social.

Este é um resultado de certa forma surpreendente. Os nossos cérebros tratam os rostos de forma diferente de outros objectos. Temos porções do cérebro destinadas a reconhecer rostos de outros seres humanos de forma rápida e eficiente. As ovelhas também o fazem, e de forma bastante eficiente também. Há estudos que mostram que as ovelhas conseguem mesmo avaliar emoções e preferem seres humanos sorridentes a seres humanos carrancudos. O que é ainda mais interessante é que as ovelhas são capazes de recordar estes rostos mesmo quando os indivíduos a que pertencem se ausentam durante longos períodos de tempo. Isso é discutido num outro artigo, de Kendrick e colegas na Nature (ref2). Este artigo tem como segundo título a frase:
A descoberta de uma memória notável mostra que afinal as ovelhas não são assim tão estúpidas.
O resumo explica melhor as coisas:
O cérebro humano desenvolveu mecanismos neuronais especializados para o reconhecimento visual de rostos, que nos fornecem uma habilidade notável para discriminar, recordar e pensar acerca de muitas centenas de indivíduos diferentes. As ovelhas também reconhecem e são atraídas por ovelhas e humanos individuais pelos seus rostos, pois possuem sistemas neuronais espacializados semelhantes nos seus lobos temporais e frontais para auxiliarem nesta importante tarefa social, incluindo um maior envolvimento do hemisfério direito do cérebro. Mostramos aqui que uma ovelha pode recordar 50 rostos diferentes de outras ovelhas durante dois anos, e que circuitos neuronais especializados mantêm o registo selectivo de rostos individuais de ovelhas e humanos mesmo após longos períodos de separação.

O que os autores fizeram foi, usando recompensas de comida, treinar 20 ovelhas a recordarem rostos de 25 pares de ovelhas, que inicialmente desconheciam, em fotografias. As ovelhas são particularmente boas a identificarem os rostos. O processo de treino envolvia vistas de frente de diferentes ovelhas. Após o treino as ovelhas identificavam os rostos familiares mesmo quando eram mostrados de perfil, algo para o qual não tinham sido treinadas. Os autores em seguida verificaram se as ovelhas eram capazes de reconhecer esses rostos após intervalos de tempo que podiam chegar a 800 dias sem olhar para as fotografias. Só após 601 dias os investigadores notaram que o desempenho das ovelhas começava a piorar. Este é um resultado notável. Mas Kendrick e colegas não se ficaram por aí.

Os autores verificaram que quando mostravam às ovelhas imagens de ovelhas ou humanos que faziam parte dos seus grupos sociais o cérebro das ovelhas mostrava actividade no mesmo grupo de células que armazena as memórias de rostos em humanos e macacos. Além disso, mostrando às ovelhas imagens de ovelhas do seu rebanho que se encontravam ausentes há algum tempo, as ovelhas mostraram reconhecê-las balindo para essas imagens da mesma forma que faziam para as ovelhas que se encontravam no rebanho, mas a actividade cerebral era menos intensa do que a verificada quando olhavam para rostos de ovelhas que continuavam no rebanho. Há diferentes níveis de organização entre as células cerebrais envolvidas no processo. Um grande número de células identifica rostos em geral, um conjunto menor identifica rostos familiares, e um grupo ainda menor responde a indivíduos específicos muito familiares, Os autores interpretam os resultados das várias experiências admitindo que o processo de memorização enfraquece lenta mas progressivamente ao longo do tempo, e que as ovelhas ausentes passarão eventualmente de uma categoria em que um indivíduo origina a resposta neuronal mais elevada até a uma categoria em que o indivíduo é classificado apenas como um "rosto conhecido".

A forma como as ovelhas reconhecem outras ovelhas e guardam as memórias dos rostos dessas ovelhas é muito semelhante à utilizada pelos seres humanos. Isto levanta questões acerca de "pensamento consciente" nas ovelhas, pois se elas são capazes de recordar, então também poderão responder emocionalmente a indivíduos ausentes. Será que quando estão paradas a ruminar com um ar que interpretamos como vazio e estúpido, elas não estarão pelo contrário embrenhadas em pensamentos a recordar outras ovelhas ausentes? Já agora, será que é assim tão mau ser a ovelha negra do rebanho?


Ficha técnica
Imagem do rebanho cortesia de Jaime Vásquez Sapunar, retirada de Wikimedia Commons, desta página.
Imagem do cordeiro preto sobre a ovelha branca cortesia do utilizador Fasten de Wikimedia Commons, retirada desta página.
Referências
(ref1)KM Kendrick and BA Baldwin (1987). Cells in temporal cortex of conscious sheep can respond preferentially to the sight of faces. Science, Vol. 236. no. 4800, pp. 448 - 450.Laço DOI.
(ref2)Keith M. Kendrick, Ana P. da Costa, Andrea E. Leigh, Michael R. Hinton and Jon W. Peirce (2001). Sheep don't forget a face. Nature 414, 165-166.Laço DOI.

terça-feira, julho 25, 2006

Os comedores de frutos e o vírus mortífero

A imagem do morcego pelado que o Osame colocou no SEMCIÊNCIA fez-me recordar que eu tinha visto há relativamente pouco tempo um artigo sobre morcegos com um aspecto igualmente estranho. Após procurar um pouco nas revistas do ano passado encontrei os tais morcegos. Apesar do aspecto pouco usual, a criatura na imagem é um morcego frugívoro, da espécie Hypsignathus monstrosus. O artigo que trata destes animais não discute a sua beleza, ou falta dela, mas sim a possibilidade de que estes morcegos sejam reservatórios naturais do vírus do Ébola. [... ler mais]

O artigo de Eric M. Leroy e colegas na Nature (ref1) tem o subtítulo:

Morcegos consumidos por pessoas na África Central mostram evidências de infecção assintomática pelo Ébola.
O resumo é curto mas contém o essencial do estudo:
O primeiro caso registado de um surto do vírus do Ébola foi em 1976, mas o reservatório natural deste vírus é ainda desconhecido. Testamos aqui o Ébola em mas de mil pequenos vertebrados que foram recolhidos durante surtos de Ébola em humanos e grandes símios durante 2001 e 2003 no Gabão e na República do Congo. Encontramos evidências de infecção assintomática pelo vírus do Ébola em três espécies de morcegos frugívoros, indicando que estes animais podem actuar como reservatórios deste vírus mortal.

Uma criatura que transporta o agente da doença sem sintomas é exactamente o que se espera de um reservatório natural da doença. Sabia-se que entre os surtos da doença o vírus tem que existir nalguma criatura não humana, a questão ao longo destes anos tinha sido sempre qual seria essa criatura. Outros animais como chimpanzés e gorilas contraem a doença e pensa-se que a maioria dos surtos de Ébola provêm do manuseamento de carcaças infectadas destes grandes símios. O problema é que os antropóides quando infectados têm taxas de mortalidade muito elevadas e não poderiam ser os reservatórios naturais do vírus.

Em todas as epidemias anteriores os cientistas tinham sempre recolhido milhares de pequenos vertebrados e invertebrados das regiões infectadas. O artigo de Eric M. Leroy e colegas foi feito na sequência de surtos que ocorreram entre 2001 e 2005 no Gabão e no Congo, e que vitimaram não apenas seres humanos mas também gorilas e chimpanzés. É claro que os membros das expedições científicas tomaram todas as precauções necessárias mas o tipo de estudo não deixa de ser um pouco arrepiante:
Para identificar o reservatório viral, levámos a cabo três expedições com armadilhas em regiões nas proximidades de carcaças de gorilas e chimpanzés, logo após a sua descoberta. No total, foram capturados 1,030 animais, incluindo 679 morcegos, 222 aves e 129 pequenos vertebrados terrestres, e testados para evidências de infecção pelo vírus do Ébola.

Três espécies de morcegos frugívoros mostraram a presença de anticorpos específicos para o Ébola e ainda fragmentos do material genético viral no fígado e baço. Para lá do Hypsignathus monstrosus, que se mostra no alto desta contribuição, o vírus encontrava-se também nas espécies Epomops franqueti, e Myonycteris torquata, que se mostram aqui ao lado. É claro que este estudo não vai encerrar a busca pelo reservatório natural do vírus. Há ainda a questão de como os morcegos são infectados, e se existirá um outro reservatório. Mas ao identificar a doença nos morcegos os cientistas têm um conjunto de hipóteses testáveis com que podem trabalhar. Esta identificação é importante também devido ao facto de estes animais serem consumidos pelas populações locais. Poder-se-á assim diminuir o risco de novos surtos entre humanos. Por outro lado, poder-se-ão desenvolver estratégias para limitar a ocorrência também entre os gandes símios. Os autores sugerem que o contágio de chimpanzés e gorilas poderá ocorrer em períodos de escassez alimentar durante a estação seca, em que os morcegos frugívoros e os antropóides poderão entrar em contacto enquanto competem pelo alimento.

Nota: Tara C. Smith, uma especialista nestes temas, costuma discutir as descobertas sobre o Ébola no seu blog Aetiology, e após procurar um pouco encontrei esta contribuição (em inglês) sobre o estudo de que falei acima. Ela refere aí dados de outros estudos que dão entre outras coisas os números de animais testados após cada surto. Por exemplo, após um surto em 1995 na República Democrática do Congo, os cientistas estudaram 1759 roedores, 539 morcegos, 114 insectívoros, 184 aves, e 127 répteis e anfíbios. Foram ainda estudados 15,118 mosquitos, 124 moscas sugadoras de sangue, 6538 percevejos hematófagos, 144 pulgas, 103 piolhos, e 5816 carraças.

Ficha técnica
As imagens foram retiradas do artigo indicado pela ref1 abaixo. Embora haja bastantes imagens destes morcegos, incluindo algumas muito boas do Hypsignathus monstrosus, na internet, nenhuma delas foi lançada no domínio público.

Referências
(ref1) Eric M. Leroy, Brice Kumulungui, Xavier Pourrut, Pierre Rouquet, Alexandre Hassanin, Philippe Yaba, André Délicat, Janusz T. Paweska, Jean-Paul Gonzalez and Robert Swanepoel (2005). Fruit bats as reservoirs of Ebola virus. Nature 438, 575-576. Laço DOI.

segunda-feira, julho 24, 2006

De salto em salto da Ásia até à América

A Europa é densamente povoada por primatas, mas quase todos pertencentes à mesma espécie, o Homo sapiens. A única espécie de primatas não humanos que vive em liberdade na Europa é o macaco berbere, Macaca sylvanus, da qual existem cerca de 300 indivíduos em Gibraltar, no pequeno enclave britânico no sul da Península Ibérica. Houve no entanto um período, milhões de anos atrás, em que primatas habitavam vastas zonas da Europa. Algumas dessas espécies de primatas pertenciam ao género Teilhardina. Eram pequenos animais semelhantes a társios e os cientistas pensam ter decifrado os mecanismos da sua dispersão. Segundo um artigo de Thierry Smith e colegas na revista Proceedings of the National Academy of Sciences USA (ref1), os Teilhardina ter-se-ão originado na Ásia e, saltando de árvore em árvore, em poucos milhares de anos, terão passado pela Europa e chegado mesmo à América, via Gronelândia. Isso mesmo, aquela massa de terra que hoje é uma grande ilha gelada. [... ler mais]

A figura que os autores escolhem para ilustrar o artigo é particularmente feliz:

Numa tradução livre do resumo do artigo:

Os primatas verdadeiros apareceram subitamente nos três continentes do norte durante os 100,000 anos que durou o Máximo Térmico do Paleocénico-Eocénico, aproximadamente 55 milhões de anos atrás. O aparecimento simultâneo ou quasi-simultâneo de euprimatas nos continentes boreais tem sido difícil de compreender porque a área de origem, os antepassados imediatos, e as rotas de dispersão eram todos desconhecidos. Agora, o omomiídeo haplorrino Teilhardina é conhecido nos três continentes em associação com a excursão de isótopos de carbono marcando o Máximo Térmico do Paleocénico-Eocénico.

Este máximo térmico corresponde a um curto período em que a quantidade de carbono e as temperaturas da atmosfera "dispararam" e florestas luxuriantes cobriram zonas hoje em dia geladas como o Canadá, a Gronelândia e a Escandinávia. O intervalo de tempo em que estas condições prevaleceram foi bastante curto em termos geológicos, e só nos últimos três anos é que os cientistas dispuseram das ferramentas e métodos para conseguirem datações relativas precisas nesse curto período. Isso permitiu investigar a questão da dispersão dos primatas. Os Teilhardina são importantes porque se trata de uma série de espécies aparentadas. Isso permitiu aos cientistas estudar a dispersão de duas formas: (1) através da datação muito precisa dos restos usando dados de estratigrafia, (2) através da análise filogenética a partir da dentição dos vários exemplares, que permite avaliar quando as espécies se terão separado de antepassados comuns.
As posições relativas dentro da excursão dos isótopos de carbono indicam que a espécie asiática Teilhardina asiatica é a mais antiga, a espécie europeia Teilhardina belgica é mais recente, e que as espécies norte americanas Teilhardina brandti e Teilhardina americana são sucessivamente, as mais novas. A análise das características morfológicas das quatro espécies apoia uma origem asiática e uma dispersão de este para oeste Ásia-para-Europa-para-América do Norte para os Teilhardina.

O acordo entre a datação e os dados da análise morfológica são importantes pois os cientistas nunca sabem se o fóssil mais antigo que encontraram é de facto o mais antigo de uma determinada espécie. O tempo que os cientistas estimam para o trajecto este-oeste é muitíssimo curto:
Estratigrafia de isótopos de alta resolução indica que esta dispersão ocorreu num intervalo de aproximadamente 25,000 anos. A dispersão geográfica rápida e a evolução das características morfológicas nos Teilhardina são consistentes com as taxas observadas noutros contextos.

Mas apesar de tudo é tempo suficiente para explicar o alcance destes pequenos primatas. Os animais teriam que expandir os seus domínios em apenas cerca de um km por ano, o que não é muito: os autores referem que certas espécies de mamíferos têm taxas de dispersão de cerca de dez km por ano. A expansão foi possibilitada também porque o mundo da época era um pouco diferente do que é hoje, e a Gronelândia estaria ligada ao norte da Europa e Canadá por pontes terrestres.

O mais curioso nesta análise é que o resultado não correspondeu a nenhuma das hipóteses que se assumiam para a origem dos primatas. Com efeito admitiam-se como possibilidades:
  1. Os primatas apareceram em África e dispersaram-se através da Europa e Gronelândia para atingir a América.
  2. Os primatas surgiram na América e dispersaram-se através da rota de Bering para atingir a Ásia e através da Gronelândia para atingir a Europa.
  3. Os primatas originaram-se na Ásia ou África e dispersaram-se através da América do Norte para atingirem a Europa.
  4. Os primatas originaram-se na Ásia e dispersaram-se para leste para a américa e oeste para a Europa.
Uma variante da última hipótese admitia que os primatas teriam aparecido na Índia, e passado para a Ásia aquando da colisão da Índia com a placa asiática. Como vemos, nem sempre as hipóteses que parecem mais razoáveis se mostram as correctas. Já agora, quanto aos macacos de Gibraltar, trata-se de imigrantes bastante mais recentes, possivelmente trazidos pelo homem, e com raízes claras em populações da mesma espécie em Marrocos e na Argélia.

O Máximo Térmico do Paleocénico-Eocénico é um acontecimento ainda algo misterioso. Os cientistas sabem que foram lançadas quantidades colossais de carbono na atmosfera, que poderão ter aumentado a temperatura média do globo em qualquer coisa próximo de dez graus Celsius, mas a origem desse carbono permanece ainda algo misteriosa. Hoje em dia os seres humanos estão a fazer algo semelhante embora a uma escala mais modesta. Não é assim de admirar que o Loom de Carl Zimmer discuta este mesmo artigo num contexto dirigido para os efeitos do actual processo de aquecimento global.

Ficha técnica
Imagem da Macaca sylvanus e cria cortesia de Davide Guglielmo, pode ser obtida através da Wikimedia Commons, nesta página.

Referências
(ref1) Thierry Smith, Kenneth D. Rose, and Philip D. Gingerich (2006). Rapid Asia-Europe-North America geographic dispersal of earliest Eocene primate Teilhardina during the Paleocene-Eocene Thermal Maximum. PNAS, no prelo. Laço DOI.

sábado, julho 22, 2006

Somos como somos por causa das cobras?

A malévola serpente que teria levado um certo primata humano ao conhecimento, é uma imagem familiar às pessoas que cresceram no mundo ocidental de influência judaico-cristã. Uma antropóloga da Universidade Davis da Califórnia pensou em algo semelhante mas para os primatas que teriam surgido muito antes do aparecimento do homem, Trata-se de uma ideia provocadora, mas que se me afigura quase impossível de testar de forma convincente, e foi apresentada por Lynne Isbell, antropóloga da Universidade da Califórnia, Davis, na revista Journal of Human Evolution (ref1). O que esta investigadora propõe é que os antepassados dos primatas desenvolveram o apurado sistema de visão, em particular a forma como veêm tão bem ao perto, para evitar as cobras. [... ler mais]

A autora começa por referir por que razão é necessário reavaliar as explicações anteriores para a acuidade visual dos primatas.

As hipótese correntes que usam os actos de alcançar e agarrar guiados visualmente para explicar a convergência das órbitas, especialização visual, e expansão do cérebro no primatas, são questionáveis agora que a evidência neurológica não revela nenhuma correlação entre convergência das órbitas e a região do cérebro que está associada com o alcançar e agarrar.

Segue-se a parte das cobras.
Uma hipótese alternativa proposta aqui afirma que as cobras foram os agentes responsáveis por essas características que definem os primatas. As cobras têm uma existência evolucionária longa, partilhada com o grupo-base dos mamíferos placentários, e é provável que tenham sido os seus primeiros predadores. Os mamíferos são conservadores em relação às estruturas do cérebro que estão envolvidas na vigilância, medo, aprendizagem, e memória, associados com estímulos assustadores, por exemplo predadores. Algumas destas áreas expandiram-se nos primatas e estão mais fortemente ligadas aos sistemas visuais. Contudo os primatas variam na extensão da sua expansão cerebral.

A autora tenta então ligar as diferenças observadas entre os diversos grupos de primatas às características das cobras com que se defrontam:
Esta variação é coincidente com a variação na co-existência evolucionária com as serpentes venenosas que evoluíram mais recentemente. Os prossímios de Madagáscar nunca coexistiram com cobras venenosas. Os macacos do novo mundo (platirrinos) tiveram uma co-existência com cobras venenosas com interrupções, e os macacos do velho mundo e antropóides (catarrinos) tiveram uma existência continuada com cobras venenosas.

Um pouco adiante:
As aves de rapina que se especializaram em comer cobras possuem olhos maiores e maior binocularidade que as aves de rapina mais generalistas, e fornecem modelos não mamalianos para o papel das cobras como pressão selectiva nos sistemas visuais dos primatas. Estes modelos, juntamente com evidência de paleobiogeografia, neurociência, ecologia, comportamento, e imunologia, sugerem que a corrida evolutiva às armas se iniciou com constritoras, no início da evolução dos mamíferos, e continuou com as serpentes venenosas. Enquanto outros mamíferos responderam desenvolvendo resistência fisiológica aos venenos das serpentes, os antropóides responderam aumentando a sua habilidade de detectar serpentes visualmente antes do bote.

Porquê as cobras? Os primatas têm outros predadores, mas quanto a esses é preferível detectá-los à distância, enquanto estão longe. As cobras são animais que detectados mesmo quando estão perto podem ser evitados. Aliás, muitas cobras esperam pacientemente emboscadas, e só se detectam já bastante perto. A visão de proximidade é aqui importante, e os antepassados dos primatas terão seguido essa via, enquanto outros grupos de mamíferos seguiram outras.

Confesso que não estou convencido. Esta coisa de querer ligar o sistema visual e a expansão do cérebro com apenas uma causa, e ainda por cima uma que, milhões de anos depois, só pode ser testada de forma muito indirecta, é demasiada especulação para o meu gosto.

Ficha técnica
Imagem do társio zangado, cortesia de Serafin Ramos Jr, retirada da Wikimedia Commons, desta página.
Imagem da cobra, cortesia de Tristan Loper, retirada da Wikimedia Commons, desta página.

Referências
(ref1) Lynne A. Isbell (2006). Snakes as agents of evolutionary change in primate brains. Journal of Human Evolution, Volume 51, Issue 1, Pages 1-35. Laço DOI.

sexta-feira, julho 21, 2006

O genoma do outro Homo

Esta imagem mostra à esquerda uma reconstrução do esqueleto do Homo neanderthalensis, e à direita uma reconstrução do esqueleto do Homo sapiens. As diferenças são notórias, sendo a robustez do esqueleto do neandertal algo que salta à vista. A imagem não se destina a introduzir um artigo científico recente, mas sim falar de algo que há pouco pareceria saído da ficção científica. Alguns cientistas estão neste momento a trabalhar na sequenciação do genoma do homem de neandertal. [... ler mais]

A equipa trabalha em conjunto com uma empresa de biotecnologia a 454 Life Sciences que colocou inclusivé uma página sobre o projecto, que pode ser consultada aqui (em inglês). Os Neandertais, que desapareceram da Europa e Próximo Oriente há relativamente pouco tempo, cerca de 30,000 anos, habitaram durante muito mais tempo a Península Ibérica, e logo a região que hoje corresponde a Portugal, que o Homo sapiens. O estudo do genoma do neandertal será importante para saber se houve troca de genes com os humanos modernos, em particular os Europeus. Será que os portugueses carregam ainda hoje alguns desses genes?

Mas o desafio que espera os cientistas não é fácil. De um dos comunicados de imprensa que podem ser encontrados na página do projecto:

Ao longo dos próximos dois anos, a equipa da sequenciação do neandertal vai reconstruir um rascunho dos 3 mil milhões de bases que fazem o genoma dos neandertais. Nesse trabalho, vão utilizar amostras de vários indivíduos, incluindo o espécime tipo encontrado no Vale de Neander em 1856 e um neandertal da croácia particularmente bem preservado. A decisão da Sociedade Max Planck de financiar o projecto é baseada numa análise de aproximadamente um milhão de pares de bases de ADN nuclear de um fóssil da Croácia com 45,000 anos, sequenciado pela 454 Life Sciences.

O trabalho é hercúleo, devido ao estado da amostra e à possibilidade de contaminação. Ainda do material que se pode encontrar nas páginas:.
O 454 Life Sciences' Genome Sequencer 20 System torna essa tarefa possível ao permitir que aproximadamente um quarto de milhão de fragmentos de ADN obtidos de pequenos fragmentos de osso sejam sequenciados em apenas cerca de 5 horas por uma única máquina. As sequências de ADN determinadas pelo Genome Sequencer 20 System possuem 100-200 pares de bases de comprimento, o que coincide com o comprimento dos fragmentos de ADN antigos.

Para reconstruir os 3 mil milhões de bases os cientistas vão precisar de montar uma espécie de gigantesco puzzle, com bocados de apenas 100 a 200 pares de bases. É claro que se põe outra questão, se os cientistas conseguirem ultrapassar as questões de contaminação, da ambiguidade de atribuir um gene a um certo cromossoma, e reconstruirem de facto o ADN do homem de neandertal, deveremos trazê-los de volta se isso for possível? Poderão existir alguns argumentos de ordem "moral", sobretudo se algum dia se provar que foi o Homo sapiens o responsável pela sua extinção, mas neste caso confesso que preferia que se deixassem as coisas como estão.

quinta-feira, julho 20, 2006

Qualidade do alimento, crescimento e aprendizagem dos mandarins

A imagem mostra o mandarim, de seu nome científico Taeniopygia guttata, uma pequena ave comum no sudoeste asiático, nomeadamente em Timor, e na Austrália. Curiosamente, está na lista de Rafael Matias das espécies de aves exóticas que se podem observar em liberdade em Portugal. Os mandarins são animais gregários, adaptam-se bem ao cativeiro e reproduzem-se de froma prolífica. São por isso muitas vezes utilizados em experiências de laboratório. Foi o que fizeram Michael Fisher e colegas num estudo publicado num artigo no PLoS biology (ref1). O que estes autores investigaram foi a relação entre a qualidade do alimento na fase de crescimento, e as capacidades cognitivas depois de adultos, de um grupo de mandarins. [... ler mais]

Trata-se de um trabalho interessante, e que se pode revelar importante para os seres humanos. Numa tradução livre do resumo:

Alguns estudos demonstraram que uma nutrição inicial pobre, seguida por uma compensação do crescimento, pode ter consequências negativas mais tarde na vida. Contudo, permanece pouco claro se isso se deve à deficiência nutricional em si mesma ou a um custo do crescimento compensatório. Esta distinção é importante para a nossa compreensão dos factores que quer a curto quer a longo prazo dão forma às trajectórias de crescimento e qual a melhor forma de gerir o crescimento na nossa e noutras espécies no seguimento de um nascimento com baixo peso.

A questão aqui é como gerir o crescimento de crianças, por exemplo, que após o parto apresentam um peso demasiado baixo, ou que na fase inicial da vida tiveram uma alimentação de fraca qualidade ou escassa. Quando finalmente se consegue providenciar uma dieta de qualidade superior a essas crianças, elas passam muitas vezes por um período de crescimento acelerado, e na idade adulta apresentam estatura normal. Podem no entanto apresentar em alguns casos uma menor capacidade de aprendizagem. A questão é qual o factor determinante na menor aptidão cognitiva: a malnutrição ou a taxa de crescimento. Este é um factor importante para compreender como melhor gerir a transição entre regimes alimentares por forma a minorar os efeitos a longo prazo. É aí que entram os mandarins, pois uma experiência nunca poderia ser levada a cabo intencionalmente sobre seres humanos, por razões óbvias.
Criámos pares de mandarins (irmãos) com nutrição de qualidade diferente durante os primeiros 20 dias de vida apenas e examinámos a sua aptidão para a aprendizagem na idade adulta. O tamanho final não foi afectado. Contudo, a velocidade de aprendizagem de uma tarefa simples enquanto adultos, que envolvia associar uma cor num painel com a presença de uma recompensa de comida, estava negativamente relacionada com a quantidade de compensação de crescimento que tinha ocorrido. A velocidade de aprendizagem não estava relacionada com a dieta inicial ou com o tamanho da diferença de crescimento.

Ou seja, nos mandarins, não era o diferencial de crescimento, ou seja a diferença de tamanho dos mandarins nos dois grupos, ao fim dos 20 dias que era importante. O que era importante era a taxa como que esse fosso no tamanho era compensado, ou seja a velocidade com que, após terem tido acesso a nutrição de qualidade superior, os mandarins que tinham tido alimentos de qualidade inferior durante 20 dias "apanhavam" o tamanho dos mandarins que tinham tido sempre nutrição de boa qualidade. Isso é o que os autores "compensação de crescimento".

Há vários aspectos do estudo que valem a pena referir. As crias foram alimentadas por mandarins adultos, mas, para controlar factores genéticos, pares de crias da mesma ninhada foram separadas, sendo uma das crias colocada com pais adoptivos. Assim um dos irmãos era alimentado por adultos que tinham acesso a alimento de alta qualidade, enquanto o outro era alimentado por adultos com acesso a comida de qualidade inferior. Após 20 dias as crias abandonavam o ninho e passavam a alimentar-se sozinhas. Os investigadores forneciam então a todos os jovens mandarins comida de valor nutritivo elevado.

O teste cognitivo foi feito quando as crias entraram sensivelmente na idade adulta, com cerca de 150 dias de vida. Era relativamente simples: os animais foram colocados oito vezes por dia, durante dois dias, num arena circular com sete corredores terminando seis deles num painel negro e o outro num painel amarelo. Apenas atrás do de cor amarela, cuja localização variava de forma aleatória de teste para teste, existia comida. O que os cientistas registaram foi o número de visitas falhadas de cada pássaro, e verificaram então a relação com a taxa de crescimento compensatório. O resumo finaliza com:
Estes resultados mostram que o nível de crescimento compensatório que ocorre a seguir a um período de nutrição pobre está associado com consequências negativas a longo prazo para as funções cognitivas e sugere que uma "troca" entre crescimento e aptidão pode determinar a trajectória de crescimento óptima.

Trata-se de resultados que têm de ser confirmados com outros estudos, incluindo outros animais e estudos de seres humanos que tenham passado por este tipo de privações. Deve notar-se que todos os pássaros aprenderam eventualmente a executar a tarefa. Foi a velocidade de aprendizagem que variou. Os autores especulam sobre alguns mecanismos que possam explicar esta diferença, embora não testem nenhum deles, e referem alguns estudos com crianças que mostram que as coisas poderão ser um pouco mais complexas com os seres humanos, devido à presença de estímulos culturais e interacção com os progenitores.

Ficha técnica
Imagem dos mandarins retirada da sinopse de Liza Gross no PLoS Biology. Ver ref2 abaixo.

Referências
(ref1) Fisher MO, Nager RG, Monaghan P (2006) Compensatory Growth Impairs Adult Cognitive Performance. PLoS Biol 4(8): e251. Laço DOI.
(ref2) Gross L (2006) Accelerated Growth following Poor Early Nutrition Impairs Later Learning. PLoS Biol 4(8): e270. Laço DOI.

segunda-feira, julho 17, 2006

O mais forte é quem mais urina

Eu era para não colocar nada hoje. A temperatura por estes lados tem ultrapassado em muito os 30 graus Celsius, e algumas pessoas, para compensar, gostam de meter o ar condicionado nos 18 graus. O resultado é que estou com uma constipação daquelas "à antiga portuguesa" e não confio muito nos meus dotes de escrita. Dediquei por isso o dia a fazer uma ronda por outros blogues, só que, ao ler o John Hawks Anthropology Weblog, dei com algo de que não resisto a falar aqui. Entre alguns assuntos de que falei também no Cais de Gaia (a escola das formigas e dos suricatas) John Hawks fala sobre lagostins de água doce, semelhantes aos apetitosos crawdads da Luisiana que se mostram na imagem já cozinhados. [... ler mais]

Ora o que têm de espacial os lagostins de água doce, em especial os da espécie Astacus leptodactylus? Contrariamente aos humanos, onde "molhar as calças" ou "borrar-se de medo" são sinais de cobardia, os Astacus leptodactylus dominantes exibem orgulhosamente os seus esguichos: quanto mais forte o animal, mais urina produz durante os confrontos com outros lagostins. Numa tradução livre do resumo do artigo de Thomas Breithaupt and Petra Eger, na revista Journal Experimental Biology (ref1), cujo texto integral está disponível na Internet:

A comunicação química é um fenómeno bastante espalhado nos animais aquáticos mas é difícil de investigar porque os sinais não são visíveis. Mostramos aqui os resultados de um estudo da comunicação química em lagostins lutadores (Astacus leptodactylus), com os olhos vendados, no qual empregámos um novo método: visualização da urina utilizando o pigmento Fluoresceína.

Eis abaixo o aspecto de um lagostim a exibir os seus dotes urinários, visíveis através da utilização deste pigmento.


A probabilidade de libertação de urina é maior durante as lutas que durante actividades não sociais ou inactividade. Os vencedores eventuais têm maior probabilidade de libertar urina que os eventuais perdedores. Quer nos vencedores quer nos perdedores, o largar de urina está ligado a comportamentos ofensivos, e a probabilidade de libertação de urina aumenta com o aumentos dos níveis de agressão. No A. leptodactylus, a urina é carregada até ao oponente pelas correntes das gelras que se projectam adiante. Durante uma libertação espontânea, a urina é enviada lateralmente com a ajuda dos exopoditos dos maxilípedes.

Os lagostins conseguem assim direcionar o esguicho com as guelras e os maxilípedes, e usam a urina no processo de intimidação do oponente. Para testar se apesar de tudo a dominância não seria determinada por pistas visuais, os autores utilizaram vendas:
O comportamento agressivo funciona para intimidar oponentes vendados apenas em conjunto com a libertação de urina: os receptores dimuem o comportamento ofensivo e aumentam o comportamento defensivo. O comportamento agressivo por si só não é suficiente para intimidar os opositores.

Os autores verificaram ainda que não se tratava apenas de identificar o lagostim agressor por parte do lagostim com a venda:
O perdedor de um combate recente é batido igualmente bem por um oponente familiar quer por um desconhecido. Logo, nos lagostins, o reconhecimento do odor da urina de um indivíduo dominante não parece ser significativo para manter as hierarquias de dominância. Os nossos resultados sugerem que a urina contém informação acerca da habilidade como lutador, ou a agressividade do assinante. Os sinais químicos até agora não identificados parecem ser importantes para determinar o resultado de uma luta.

Os cientistas verificaram assim que os resultados dos confrontos eram determinados essencialmente pelas pistas químicas. A capacidade que os animais possuem de avaliar os opositores e evitar combates desnecessários e potencialmente debilitantes é importante, embora a forma como os lagostins o fazem seja curiosa: num combate uma das urinas cheira a vitória a outra a derrota.

Mais uma vez aqueles que pensam que uma carreira científica traz algum tipo de sucesso social desiludam-se. Tantos anos a estudar, doutoramentos e coisas que tais, para poder dizer às pessoas: "inventei um modo para ver melhor como os lagostins urinam uns para cima uns dos outros".

Ficha técnica
Imagem dos Crawdads cozidos cortesia de PDPhoto.org
Imagem do "esguicho" do Astacus leptodactylus retirada da ref1 abaixo.

Referências
(ref1) Breithaupt T, Eger P. 2002. Urine makes the difference : chemical communication in fighting crayfish made visible. J Exper Biol 205:1221-1231. Resumo.


domingo, julho 16, 2006

O lado tenebroso das futuras mães

Falei numa contribuição recente nas criaturas da espécie Suricata suricatta, um grupo de animais aparentados aos mangustos que parecem gozar de um modo de vida pacífico e tranquilo: os adultos colaboram na defesa do grupo, todos contribuem para alimentar as crias, têm mesmo um sistema de ensino. Embora pareçam corresponder ao paradigma dos animais fofinhos e "abraçáveis" há aspectos do comportamento das suricatas que não são nem bonzinhos nem carinhosos. [... ler mais]

A sociedade das suricatas é bastante mais violenta do que se poderia antever. Não se trata apenas dos conflitos entre adultos como a luta que se mostra na figura. Os alvos são as crias muito jovens, e os perpetradores as fêmeas grávidas. As futuras mamãs são imbuídas de uma espécie de fúria sanguinária que as leva a procurar e matar as crias das outras fêmeas.

Andrew J. Young e Tim Clutton-Brock num artigo na revista Biology Letters (ref1) analisam o infanticídio nos bandos de suricatas. Embora o matar a prole de outras fêmeas não seja um comportamento assim tão raro nos mamíferos, esse comportamento nas suricatas apresenta um aspecto peculiar. Numa tradução livre do resumo do artigo:

Em espécies animais cooperativas, as fêmeas dominantes mostram tipicamente um sucesso reprodutor maior que os subordinados, e acredita-se usualmente que controlam a extensão da partilha reprodutiva.

A vida poderia assim parecer fácil para a fêmea suricata dominante: tem a maioria das crias e um grande número de babás para tomar conta delas. Mas as outras fêmeas podem engravidar a aí o futuro das crias é incerto.
Contudo, estudos de sociedades de insectos sociais mostram que os subordinados também podem interferir com as tentativas de reprodução dos outros, com importantes consequências para a distribuição de aptidão no interior da colónia. Mostramos aqui que fêmeas subordinadas num vertebrado, a Suricata suricatta exercem também uma influência substancial sobre as tentativas de reprodução dos outros. Nas sociedades de suricatas, sabe-se que as fêmeas dominantes matam as ninhadas das subordinadas, contudo mostramos que as subordinadas também matam crias; não apenas as de outras subordinadas mas também as da dominante. As ninhadas nascidas de fêmeas, qualquer que fosse o seu lugar na heirarquia, tinham apenas metade de possibilidade de sobreviver os seus primeiros 4 dias se uma subordinada estivesse grávida.

Esta futuras mães estão apenas a tentar aumentar a pequena fatia dos recursos que as suas crias poderão eventalmente obter. Não cabem aqui quaisquer juízos de valor. A fêmea dominante tem assim razões acrescidas para impedir que outras fêmeas da colónia fiquem grávidas. É que este comportamento só ocorre nas futuras mães, as fêmeas não grávidas não possuem estes impulsos infanticidas.
Contudo, as fêmeas dominantes tinham maior probabilidade que as subordinadas de dar à luz quando nenhuma das outras fêmeas estava grávida, e assim perdiam menos ninhadas devido ao infanticídio que as subordinadas. Isto é provavelmente devido em parte às fêmeas dominantes empregarem técnicas que contrariam a incidência de gravidez nas subordinadas.

Este artigo não foi realmente um choque para mim. As suricatas não são os únicos mamíferos que vivem em colónias em que os recém-nascidos estão em perigo. Nos cães-da-pradaria, por exemplo, a colónia é varrida por uma espécie de frenesim canibal aquando da época dos nascimentos. O que é nunca se tinha observado em mamíferos, numa sociedade com uma hierarquia bem definada, com uma fêmea dominante, foi a tentativa das subordinadas interferirem de forma activa no sucesso reprodutivo da fêmea dominante. Isso é mais típico dos insectos, onde foi observado por exemplo nas abelhas. É sempre perigoso tentar humanizar outras espécies, e o critério para "gostar" ou não de um animal não pode passar por nos identificarmos ou não com ele, ou inversamente por acharmos o seu aspecto ou comportamento repelente. As suricatas continuam a ser dos meus animais favoritos.

Ficha técnica
Imagem das suricata à luta, retirada de Wikimedia Commons, utilizador Sarefo, desta página aqui.

Referências
(ref1) Andrew J. Young and Tim Clutton-Brock (2006). Infanticide by subordinates influences reproductive sharing in cooperatively breeding meerkats. Biology Letters, no prelo. Laço DOI.


sábado, julho 15, 2006

Ninguém quer abraçar uma ténia

A contribuição anterior, sobre as suricatas, levanta problemas curiosos. As suricatas correspondem à ideia de animal que gostamos de mostrar às crianças: são engraçadas, os membros do grupo ajudam-se uns aos outros, cuidam dos pequenos. Há muitas pessoas que gostam de usar este tipo de imagem para promover a defesa da natureza, mas, se bem que compreenda que as intenções são nobres, isso incomoda-me um pouco. Confesso que desenvolvi uma antipatia profunda por pandas, bebés-foca, e essa mania de tentar arregimentar a opinião pública em torno dos animais "abraçaveis". Então e os outros elementos do ecossistema, os animais feios ou com comportamentos que consideramos cruéis, e aqueles que consideramos asquerosos, em especial os parasitas? [... ler mais]

Afinal, de acordo com a tira de BD do Freefall de Mark Stanley, ninguém quer abraçar uma ténia.

Há um outro risco nessa abordagem de utilizar como estandarte animais com que nos identificamos. Quando se estuda bem os animais encontramos, muitas vezes, aspectos do seu comportamento que se podem revelar perturbadores para quem encara a defesa dos animais sob o prisma da "sobrevivência dos mais amorosos". Como mostrarei numa das próximas contribuições as suricatas nem sempre são animais "bonzinhos".

Ficha técnica
Imagem da Taenia solium cortesia de Mae Melvin/CDC obtida através do PHIL.
Freefall é uma banda desenhada trissemanal da autoria de Mark Stanley.

Os suricatas também têm aulas

Apesar de viver num ambiente protegido, no Jardim Zoológico de Leipzig na Alemanha, este Suricata suricatta leva muito a sério os seus deveres de vigia. Isso acontece porque na natureza os suricatas, que vivem em regiões áridas no sudoeste africano, passam boa parte do tempo com a cabeça baixa em busca de insectos e pequenos vertebrados, dependem dos avisos destes vigias para correrem para um local abrigado caso um predador seja avistado. Os suricatas são aparentados com os mangustos e vivem em grupos que podem conter algumas dezenas de indivíduos. Estes bandos possuem um macho e fêmea dominantes que são os progenitores de cerca de 80% das crias no grupo. O bando apresenta no entanto um comportamento de tipo altruísta em relação aos membros mais jovens mesmo quando estes não são seus descendentes directos. [... ler mais]

As crias, embora comecem a seguir os outros elementos do grupo com cerca de um mês de vida, a princípio não conseguem alimentar-se sozinhas, e são alimentadas por todos os membros do grupo em resposta a vocalizações de pedido que emitem. Só após cerca de 90 dias de vida os suricatas são proficientes na manipulação das presas e se tornam nutricionalmente independentes. Ora os suricatas não se limitam a alimentar as crias, ensinam-nas também a interagir com as diversas presas. Pelos vistos, no mundo animal, não são apenas as formigas que vão à escola. Os pequenos suricatas, como os que se mostram abaixo, também têm aulas.

Ao analisarem a forma como os suricatas apresentam o alimento às crias Alex Thornton e Katherine McAuliffe, num artigo na Science (ref1), mostram que o processo se enquadra numa forma que se pode interpretar como professor-aluno. Numa tradução livre do resumo:

Apesar dos benefícios óbvios de mecanismos direccionados que facilitem a transferência eficiente de habilidades, existe pouca evidência crítica para o ensino em animais não humanos. Utilizando dados observacionais e experimentais, mostramos que suricatas selvagens (Suricata suricatta) ensinam às crias técnicas de manipulação de presas ao fornecerem-lhes oportunidades de interagirem com presas vivas.

O ambiente árido onde os suricatas vivem é muito exigente, e os tipos de presas consumidos pelos suricatas é algo vasto, incluindo inclusive criaturas perigosas, como escorpiões, que têm dimensões apreciáveis do ponto de vista de um suricata, que mede pouco mais de 30 centímetros, sem contar com a cauda. Em muitas espécies de mamíferos as crias aprendem ao observarem os adultos, em geral a mãe. Este é um tipo de aprendizagem em que não existe propriamente ensino, o adulto executa os seus comportamentos normais. Os pequenos suricatas não aprendem apenas ao observarem o exemplo dos seus congéneres mais crescidos, os adultos apresentam-lhes animais por eles "modificados" com dentadas na cabeça ou abdómen por forma a serem mais facilmente manobráveis ou menos perigosos. Nos escorpiões, por exemplo, costumam retirar o ferrão. Eis em abaixo uma imagem de um suricata, com 70 dias de vida, atarefado a mastigar um escorpião de bom tamanho que lhe foi dado vivo.


Este aspecto é mais importante do que parece: seria mais fácil para os ajudantes levarem a presa morta até às crias. Levar presas vivas ou apenas ligeiramente incapacitadas acarreta custos para os professores. O ajudante tem que vigiar a cria a que deu o alimento, a cria pode deixar fugir a presa, e nesse caso o professor tem que voltar a apanhá-la e eventualmente modificá-la. Tudo isto significa um maior dispêndio de recursos por parte do ajudante do que se ele se limitasse a alimentar a cria com animais mortos. Mas serem colocadas face a animais vivos leva os pequenos suricatas a aprenderem mais rapidamente e de forma menos dolorosa. Os autores do artigo investigaram isso colocando escorpiões vivos e com ferrão face a crias de vários grupos, entre eles um que tinha sido alimentado com escorpiões mortos durante três dias, outro alimentado com escorpiões vivos mas sem ferrão durante os mesmos três dias. Ora enquanto todos os membros do primeiro grupo foram mordidos pelas pinças ou levaram ferroadas dos escorpiões, no segundo grupo isso aconteceu a apenas uma cria (em seis). Os suricatas são em grande parte imunes ao veneno destas ferroadas, mas a experiência não deixa de ser dolorosa.
Em resposta às vocalizações de pedido das crias, os ajudantes modificam os seus métodos de aprovisionamento de presas à medida que as crias envelhecem, assim acelerando a aprendizagem sem o uso de métodos cognitivos complexos.

Aos animais mais novos os suricatas apresentavam mais vezes presas mortas ou bastante incapacitadas (em especial os escorpiões), introduzindo gradualmente presas vivas e em "melhores condições" quando os animais se tornavam um pouco mais velhos. O ênfase a negrito é meu e foca um aspecto que já tinha sido discutido aquando do trabalho sobre as formigas. Há aqui troca de informação entre professor e aluno. Os suricatas ajustam os seus "métodos de ensino" em relação ao nível de conhecimento dos estudantes. Contudo a forma como o fazem não exige que os "professores" sejam capazes de uma avaliação consciente das crias. O tipo de vocalizações muda com a idade das crias e é essa pista que os ajudantes seguem. Os autores do artigo verificaram isso utilizando gravações de pedidos das crias. Assim, quando passavam registos sonoros de pedidos de crias velhas num grupo em que as crias eram ainda bastante jovens, os membros do grupo davam-lhes muitas das vezes presas intactas. Mais uma vez os cientistas fizeram com que um pobre suricata bebé que ainda mal sabe manobrar um escaravelho morto ficasse face a um escorpião vivo. De igual forma, ao passarem registos de crias muitas jovens em grupos em que as crias eram quase independentes os suricatas adultos davam-lhes sobretudo animais já mortos. O resumo termina com a frase:
A falta de evidência para o ensino noutras espécies além dos humanos pode reflectir problemas em produzir apoio inequívoco para a ocorrência de ensino, em vez da ausência de ensino.

Este é um problema que surge muitas vezes em ciência. É sempre necessário possuir uma definição rigorosa do que se pretende estudar, e ter parâmetros objectivos que se possam medir. No caso das formigas e dos suricatas, isso sucede: há custo para os professores que não têm benefício pessoal imediato, os alunos ganham o conhecimento mais depressa, e há interacção nos dois sentidos entre alunos e professores que permite tornar o processo mais eficiente. Tudo isto sem processos cognitivos particularmente complexos e sem verdadeira intencionalidade no processo.

Para finalizar mais uma imagem de suricatas, desta vez de um ajudante que cuida de crias de 30 dias, ou seja em idade pré-escolar mas prestes a começarem as aulas .


Estas criaturas parecem adoráveis, quer do ponto de vista do aspecto físico, quer do ponto de vista das características sociais que como seres humanos apreciamos, mas possuem um aspecto bastante mais sinistro, do qual falarei aqui em breve.

Ficha técnica
Imagem do suricata vigia no Jardim Zoológico de Leipzig, da autoria de Olaf Leillinger, retirada de Wikimedia Commons, desta página.
Imagem das crias de suricata, da autoria de Timo Forchheim, retirada de Wikimedia Commons, desta página.
Imagem de suricata a comer o escorpião e das crias com 30 dias cortesia de Andrew Radford/Sophie Lanfear/Alex Thornton/Katherine McAuliffe disponíveis em alta resolução em vários locais na internet, por exemplo a acompanhar este artigo na LiveScience, nesta página.

Referências
(ref1) Alex Thornton e Katherine McAuliffe (2006). Teaching in Wild Meerkats. Science Vol. 313. no. 5784, pp. 227 - 229. Laço DOI.

sexta-feira, julho 14, 2006

As formigas que vão à escola

O Osame no SEMCIÊNCIA comenta bastante vezes o facto de o salário de um professor não ser lá grande coisa e que a coisa chegou ao ponto de cortar a ração do cachorro. Poderia, em princípio, parecer que este estado de coisas levaria a uma escassez de professores, que todos nos habituámos a ver como indivíduos inteligentes e qualificados. Convém contudo notar que, segundo um artigo de Nigel Franks e Tom Richardson publicado na Nature (ref1), para ser um bom professor não é preciso um grande cérebro. [... ler mais]

Eu já falei aqui por várias vezes na forma como os insectos que vivem em grupos como as baratas e as abelhas são capazes de tomar decisões aparentemente complexas seguindo procedimentos bastante simples. O estudo de Nigel Franks e Tom Richardson incidiu sobre minúsculas formigas da espécie Temnothorax albipennis. Estas formigas apresentam um comportamento designado por corrida em tandem, em que um indivíduo segue um outro utilizando o toque para se manter em contacto. A imagem mostra um desses pares, em que a formiga que vai à frente (pintada a vermelho) conhece o local onde se encontra uma solução açucarada. A formiga que a segue, pintada de branco, e que mantém o contacto tocando com as antenas na outra formiga, desconhece onde o alimento se encontra. A formiga que lidera está a fazer algo mais do que simplesmente guiar a outra. Aliás, se quisesse apenas transportar a outra formiga podia carregá-la com as mandíbulas, e correr bastante mais depressa do que acontece na corrida em tandem. O que os investigadores verificaram é que o grupo de duas formigas segue uma definição do que pode entender como um par professor estudante. Numa tradução livre do resumo:

A formiga Temnothorax albipennis utiliza uma técnica conhecida como corrida em tandem para guiar outra formiga do ninho até ao alimento, com sinais entre as duas formigas controlando quer a velocidade quer a direcção da corrida. Analisamos aqui os resultados desta comunicação e mostramos que a corrida em tandem é um exemplo de ensino, segundo o nosso conhecimento o primeiro num animal não humano, que envolve troca bidireccional entre aluno e professor. Este comportamento indica que pode ser o valor da informação, em vez do constrangimento do tamanho do cérebro, que influencia a evolução do ensino.

A definição de ensino é o ponto fulcral aqui. Nos primatas, por exemplo, os jovens aprendem muitas vezes observando os mais velhos. A questão é até que ponto o "professor" altera o seu comportamento em benefício do aluno, e muitas vezes com custos para si. É esse aspecto que foi comprovado pela primeira vez nas formigas. Os autores do artigo referem:
Um indivíduo é um professor se modifica o seu comportamento na presença de um observador ingénuo, com algum custo inicial para si, por forma a estabelecer um exemplo para que o outro indivíduo possa aprender mais facilmente. Nós sugerimos que o ensino também envolve a troca de informação nos dois sentidos entre professor e aluno.

O que os autores fizeram foi seguir pares semelhantes ao da imagem, em que uma formiga conhece a localização da comida mas a outra a ignora. Um exemplo pode ser encontrado neste filme (5 Mbytes) nas páginas de informação suplementar do artigo da Nature. Os autores verificaram primeiro que a formiga que lidera o tandem altera o comportamento na presença do seguidor:
Verificámos que a líder só continuava a corrida em tandem quando tocada frequentemente nas pernas e abdómen (gaster) pelas antenas da formiga seguidora.

Mostraram também que havia um custo para a "professora":
Verificámos também que liderar o tandem impõe um custo para a líder pois ela pode deslocar-se quatro vezes mais depressa do ninho até à comida quando não atrapalhada por uma seguidora.

A velocidade era reduzida em parte porque as formigas seguidoras faziam pausas frequentes para "andar-à-volta", provavelmente em busca de marcas no terreno que pudessem servir para referência futura. Os autores verificaram também que o líder "ensinava" de facto como encontrar o alimento. As seguidoras encontravam muito mais depressa o alimento quando corriam em tandem do que quando procuravam sozinhas. Além disso, as seguidoras aprendiam de facto não só sobre a localização do alimento mas também bastante sobre as cercanias do ninho, pois na maioria dos casos voltavam bastante mais depressa e por atalhos em linha recta.

Os autores mostraram por outro lado que existia troca de informação entre os dois indivíduos ao analisarem a aceleração das duas formigas na corrida em tandem: quando o intervalo entre as formigas se torna muito grande a formiga que lidera reduz a velocidade enquanto que a que segue aumenta a velocidade. As formigas seguidoras tornam-se por suas vez líderes e ensinam outros indivíduos a dirigirem-se à comida. Assim, embora as corridas em tandem sejam lentas transferem conhecimento que economiza tempo no conjunto das obreiras. Os autores terminam o artigo com:
A troca de informação nos dois sentidos entre professor e aluno distingue o ensino da simples difusão. A maior parte do recrutamento em sociedades de formigas com grandes populações é difusão (por exemplo, através de trilhos de feromonas), que é eficiente em grupos grandes. Contudo, em pequenas sociedades, onde a informação é preciosa e perdida facilmente, o ensino funciona melhor. A nossa identificação de comportamento de ensino numa formiga mostra que um cérebro grande não é um pré-requisito.

O surpreendente é que isto tenha sido descoberto pela primeira vez nas formigas. O algoritmo é em si bastante simples tal como os outros algoritmos de que falei aqui aquando das baratas e abelhas, e poderia ser implementado em dispositivos robotizados.

Referências
(ref1) Nigel R. Franks and Tom Richardson (2006). Teaching in tandem-running ants. Nature 439, 153. Laço DOI.

terça-feira, julho 11, 2006

Os vorazes aspiradores pouco apetitosos

A imagem mostra uma salpa, da espécie Salpa thompsoni, com cerca de 10 cm de comprimento. Apesar do aspecto gelatinoso as salpas não estão relacionada com medusas. São, por estranho que pareça, parentes relativamente próximos dos vertebrados. Trata-se de uma espécie de pequenos aspiradores que filtram água através de uma rede de muco para retirar o planctôn, e que podem viver isoladas ou em cadeias com mais de 100 indivíduos. Por vezes estas criaturas são tão abundantes que formam aglomerações com milhares de km quadrados de área. A voracidade destes pequenos sacos transparentes é impressionante. [... ler mais]

Num artigo recente de L.P. Madin e colegas na revista Deep Sea Research (ref1) os autores estudaram alguns dos aspectos da vida das salpas. Numa tradução livre do resumo:

Amostras de quatro verões durante um período de vinte e sete anos mostraram populações densas de Salpa aspera na Slope Water a sul da Nova Inglaterra, no nordeste dos estados Unidos. As salpas mostraram um forte padrão de migração vertical, movendo-se para as profundezas (na maioria entre 600-800 m) durante o dia e agregando-se na zona epipelágica (<100m)

Estas Salpa aspera são também fotogénicas, quer no seu estádio solitário,


quer no seu estádio de aglomeração.


A zona acastanhada é o estômago da criatura, que é responsável por alguns números impressionantes:
As taxas de filtração, determinadas quer pela pigmentação das entranhas, quer por experiências de alimentação directas, indicaram que os estádios quer de agregado quer solitário filtraram a água a taxas variando entre 0.5 a 61 por hora por ml de biovolume.

Este número e alguns outros que vêm a seguir podem não dizer muito a quem não está dentro deste tema, por isso passo logo à parte surpreendente:
Dependendo do ano, calculamos que as populações de salpas estudadas limpam entre 5 a 74% dos 50 metros superiores durante 8 horas cada noite.

Este "limpam" significa que as salpas engolem aquela fracção do plâncton. São de facto aspiradores vorazes. Ora as salpas têm outra característica que partilham com o krill de que falei aqui algum tempo atrás. Produzem quantidades assombrosas de excrementos, que por sua vez caem para o fundo a velocidades elevadas. O que estas criaturas estão a fazer, de forma semelhante ao krill, é a transportar para as profundezas enormes quantidades de carbono da superfície do oceano, que por sua vez tinham sido extraídas da atmosfera. As salpas são assim um elo importante na regulação da quantidade de carbono na atmosfera.

Para termos uma ideia do quão abundantes estas criaturas podem ser, basta dizer que um dos "cardumes" estudados tinha cerca de 100,000 km quadrados de extensão (sim, cobria uma área maior que a de Portugal) e os autores calcularam que os excrementos dessa aglomeração enviariam cerca de 4,000 toneladas de carbono por dia para o fundo oceânico. Esses excrementos afundam-se depressa, cerca de 1000 metros por dia. Uma coisa que as salpas não partilham com o krill é o carácter nutritivo. São tão pouco apetecíveis que a maioria dos animais que consumem krill de bom grado não lhes pegam. Os próprios corpos das salpas representam outro importante sumidoiro de carbono, pois em grande parte as salpas mortas afundar-se-ão nos fundos oceânicos.

Ficha Técnica
Imagens retiradas do comunicado de imprensa que se pode encontrar aqui.

Referências
(ref1) L.P. Madin, P. Kremer, J.E. Purcell, E.H. Horgan and D.A. Nemazie (2006). Periodic swarms of the salp Salpa aspera in the Slope Water off the NE United States: Biovolume, vertical migration, grazing, and vertical flux. Deep Sea Research Volume 53, Issue 5, Pages 804-819. Laço DOI.