segunda-feira, julho 24, 2006

De salto em salto da Ásia até à América

A Europa é densamente povoada por primatas, mas quase todos pertencentes à mesma espécie, o Homo sapiens. A única espécie de primatas não humanos que vive em liberdade na Europa é o macaco berbere, Macaca sylvanus, da qual existem cerca de 300 indivíduos em Gibraltar, no pequeno enclave britânico no sul da Península Ibérica. Houve no entanto um período, milhões de anos atrás, em que primatas habitavam vastas zonas da Europa. Algumas dessas espécies de primatas pertenciam ao género Teilhardina. Eram pequenos animais semelhantes a társios e os cientistas pensam ter decifrado os mecanismos da sua dispersão. Segundo um artigo de Thierry Smith e colegas na revista Proceedings of the National Academy of Sciences USA (ref1), os Teilhardina ter-se-ão originado na Ásia e, saltando de árvore em árvore, em poucos milhares de anos, terão passado pela Europa e chegado mesmo à América, via Gronelândia. Isso mesmo, aquela massa de terra que hoje é uma grande ilha gelada. [... ler mais]

A figura que os autores escolhem para ilustrar o artigo é particularmente feliz:

Numa tradução livre do resumo do artigo:

Os primatas verdadeiros apareceram subitamente nos três continentes do norte durante os 100,000 anos que durou o Máximo Térmico do Paleocénico-Eocénico, aproximadamente 55 milhões de anos atrás. O aparecimento simultâneo ou quasi-simultâneo de euprimatas nos continentes boreais tem sido difícil de compreender porque a área de origem, os antepassados imediatos, e as rotas de dispersão eram todos desconhecidos. Agora, o omomiídeo haplorrino Teilhardina é conhecido nos três continentes em associação com a excursão de isótopos de carbono marcando o Máximo Térmico do Paleocénico-Eocénico.

Este máximo térmico corresponde a um curto período em que a quantidade de carbono e as temperaturas da atmosfera "dispararam" e florestas luxuriantes cobriram zonas hoje em dia geladas como o Canadá, a Gronelândia e a Escandinávia. O intervalo de tempo em que estas condições prevaleceram foi bastante curto em termos geológicos, e só nos últimos três anos é que os cientistas dispuseram das ferramentas e métodos para conseguirem datações relativas precisas nesse curto período. Isso permitiu investigar a questão da dispersão dos primatas. Os Teilhardina são importantes porque se trata de uma série de espécies aparentadas. Isso permitiu aos cientistas estudar a dispersão de duas formas: (1) através da datação muito precisa dos restos usando dados de estratigrafia, (2) através da análise filogenética a partir da dentição dos vários exemplares, que permite avaliar quando as espécies se terão separado de antepassados comuns.
As posições relativas dentro da excursão dos isótopos de carbono indicam que a espécie asiática Teilhardina asiatica é a mais antiga, a espécie europeia Teilhardina belgica é mais recente, e que as espécies norte americanas Teilhardina brandti e Teilhardina americana são sucessivamente, as mais novas. A análise das características morfológicas das quatro espécies apoia uma origem asiática e uma dispersão de este para oeste Ásia-para-Europa-para-América do Norte para os Teilhardina.

O acordo entre a datação e os dados da análise morfológica são importantes pois os cientistas nunca sabem se o fóssil mais antigo que encontraram é de facto o mais antigo de uma determinada espécie. O tempo que os cientistas estimam para o trajecto este-oeste é muitíssimo curto:
Estratigrafia de isótopos de alta resolução indica que esta dispersão ocorreu num intervalo de aproximadamente 25,000 anos. A dispersão geográfica rápida e a evolução das características morfológicas nos Teilhardina são consistentes com as taxas observadas noutros contextos.

Mas apesar de tudo é tempo suficiente para explicar o alcance destes pequenos primatas. Os animais teriam que expandir os seus domínios em apenas cerca de um km por ano, o que não é muito: os autores referem que certas espécies de mamíferos têm taxas de dispersão de cerca de dez km por ano. A expansão foi possibilitada também porque o mundo da época era um pouco diferente do que é hoje, e a Gronelândia estaria ligada ao norte da Europa e Canadá por pontes terrestres.

O mais curioso nesta análise é que o resultado não correspondeu a nenhuma das hipóteses que se assumiam para a origem dos primatas. Com efeito admitiam-se como possibilidades:
  1. Os primatas apareceram em África e dispersaram-se através da Europa e Gronelândia para atingir a América.
  2. Os primatas surgiram na América e dispersaram-se através da rota de Bering para atingir a Ásia e através da Gronelândia para atingir a Europa.
  3. Os primatas originaram-se na Ásia ou África e dispersaram-se através da América do Norte para atingirem a Europa.
  4. Os primatas originaram-se na Ásia e dispersaram-se para leste para a américa e oeste para a Europa.
Uma variante da última hipótese admitia que os primatas teriam aparecido na Índia, e passado para a Ásia aquando da colisão da Índia com a placa asiática. Como vemos, nem sempre as hipóteses que parecem mais razoáveis se mostram as correctas. Já agora, quanto aos macacos de Gibraltar, trata-se de imigrantes bastante mais recentes, possivelmente trazidos pelo homem, e com raízes claras em populações da mesma espécie em Marrocos e na Argélia.

O Máximo Térmico do Paleocénico-Eocénico é um acontecimento ainda algo misterioso. Os cientistas sabem que foram lançadas quantidades colossais de carbono na atmosfera, que poderão ter aumentado a temperatura média do globo em qualquer coisa próximo de dez graus Celsius, mas a origem desse carbono permanece ainda algo misteriosa. Hoje em dia os seres humanos estão a fazer algo semelhante embora a uma escala mais modesta. Não é assim de admirar que o Loom de Carl Zimmer discuta este mesmo artigo num contexto dirigido para os efeitos do actual processo de aquecimento global.

Ficha técnica
Imagem da Macaca sylvanus e cria cortesia de Davide Guglielmo, pode ser obtida através da Wikimedia Commons, nesta página.

Referências
(ref1) Thierry Smith, Kenneth D. Rose, and Philip D. Gingerich (2006). Rapid Asia-Europe-North America geographic dispersal of earliest Eocene primate Teilhardina during the Paleocene-Eocene Thermal Maximum. PNAS, no prelo. Laço DOI.

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