domingo, julho 16, 2006

O lado tenebroso das futuras mães

Falei numa contribuição recente nas criaturas da espécie Suricata suricatta, um grupo de animais aparentados aos mangustos que parecem gozar de um modo de vida pacífico e tranquilo: os adultos colaboram na defesa do grupo, todos contribuem para alimentar as crias, têm mesmo um sistema de ensino. Embora pareçam corresponder ao paradigma dos animais fofinhos e "abraçáveis" há aspectos do comportamento das suricatas que não são nem bonzinhos nem carinhosos. [... ler mais]

A sociedade das suricatas é bastante mais violenta do que se poderia antever. Não se trata apenas dos conflitos entre adultos como a luta que se mostra na figura. Os alvos são as crias muito jovens, e os perpetradores as fêmeas grávidas. As futuras mamãs são imbuídas de uma espécie de fúria sanguinária que as leva a procurar e matar as crias das outras fêmeas.

Andrew J. Young e Tim Clutton-Brock num artigo na revista Biology Letters (ref1) analisam o infanticídio nos bandos de suricatas. Embora o matar a prole de outras fêmeas não seja um comportamento assim tão raro nos mamíferos, esse comportamento nas suricatas apresenta um aspecto peculiar. Numa tradução livre do resumo do artigo:

Em espécies animais cooperativas, as fêmeas dominantes mostram tipicamente um sucesso reprodutor maior que os subordinados, e acredita-se usualmente que controlam a extensão da partilha reprodutiva.

A vida poderia assim parecer fácil para a fêmea suricata dominante: tem a maioria das crias e um grande número de babás para tomar conta delas. Mas as outras fêmeas podem engravidar a aí o futuro das crias é incerto.
Contudo, estudos de sociedades de insectos sociais mostram que os subordinados também podem interferir com as tentativas de reprodução dos outros, com importantes consequências para a distribuição de aptidão no interior da colónia. Mostramos aqui que fêmeas subordinadas num vertebrado, a Suricata suricatta exercem também uma influência substancial sobre as tentativas de reprodução dos outros. Nas sociedades de suricatas, sabe-se que as fêmeas dominantes matam as ninhadas das subordinadas, contudo mostramos que as subordinadas também matam crias; não apenas as de outras subordinadas mas também as da dominante. As ninhadas nascidas de fêmeas, qualquer que fosse o seu lugar na heirarquia, tinham apenas metade de possibilidade de sobreviver os seus primeiros 4 dias se uma subordinada estivesse grávida.

Esta futuras mães estão apenas a tentar aumentar a pequena fatia dos recursos que as suas crias poderão eventalmente obter. Não cabem aqui quaisquer juízos de valor. A fêmea dominante tem assim razões acrescidas para impedir que outras fêmeas da colónia fiquem grávidas. É que este comportamento só ocorre nas futuras mães, as fêmeas não grávidas não possuem estes impulsos infanticidas.
Contudo, as fêmeas dominantes tinham maior probabilidade que as subordinadas de dar à luz quando nenhuma das outras fêmeas estava grávida, e assim perdiam menos ninhadas devido ao infanticídio que as subordinadas. Isto é provavelmente devido em parte às fêmeas dominantes empregarem técnicas que contrariam a incidência de gravidez nas subordinadas.

Este artigo não foi realmente um choque para mim. As suricatas não são os únicos mamíferos que vivem em colónias em que os recém-nascidos estão em perigo. Nos cães-da-pradaria, por exemplo, a colónia é varrida por uma espécie de frenesim canibal aquando da época dos nascimentos. O que é nunca se tinha observado em mamíferos, numa sociedade com uma hierarquia bem definada, com uma fêmea dominante, foi a tentativa das subordinadas interferirem de forma activa no sucesso reprodutivo da fêmea dominante. Isso é mais típico dos insectos, onde foi observado por exemplo nas abelhas. É sempre perigoso tentar humanizar outras espécies, e o critério para "gostar" ou não de um animal não pode passar por nos identificarmos ou não com ele, ou inversamente por acharmos o seu aspecto ou comportamento repelente. As suricatas continuam a ser dos meus animais favoritos.

Ficha técnica
Imagem das suricata à luta, retirada de Wikimedia Commons, utilizador Sarefo, desta página aqui.

Referências
(ref1) Andrew J. Young and Tim Clutton-Brock (2006). Infanticide by subordinates influences reproductive sharing in cooperatively breeding meerkats. Biology Letters, no prelo. Laço DOI.


1 comentários:

Anónimo disse...

Caio, outro dia eu disse para os meus alunos que, se for levado em conta a taxa de agressão e assassinato per capita, infanticidio inclusive, o ser humano seria talvez o mamífero menos violento do mundo. Eles estranharam essa afirmação. Biologicamente ela está correta?