terça-feira, julho 25, 2006

Os comedores de frutos e o vírus mortífero

A imagem do morcego pelado que o Osame colocou no SEMCIÊNCIA fez-me recordar que eu tinha visto há relativamente pouco tempo um artigo sobre morcegos com um aspecto igualmente estranho. Após procurar um pouco nas revistas do ano passado encontrei os tais morcegos. Apesar do aspecto pouco usual, a criatura na imagem é um morcego frugívoro, da espécie Hypsignathus monstrosus. O artigo que trata destes animais não discute a sua beleza, ou falta dela, mas sim a possibilidade de que estes morcegos sejam reservatórios naturais do vírus do Ébola. [... ler mais]

O artigo de Eric M. Leroy e colegas na Nature (ref1) tem o subtítulo:

Morcegos consumidos por pessoas na África Central mostram evidências de infecção assintomática pelo Ébola.
O resumo é curto mas contém o essencial do estudo:
O primeiro caso registado de um surto do vírus do Ébola foi em 1976, mas o reservatório natural deste vírus é ainda desconhecido. Testamos aqui o Ébola em mas de mil pequenos vertebrados que foram recolhidos durante surtos de Ébola em humanos e grandes símios durante 2001 e 2003 no Gabão e na República do Congo. Encontramos evidências de infecção assintomática pelo vírus do Ébola em três espécies de morcegos frugívoros, indicando que estes animais podem actuar como reservatórios deste vírus mortal.

Uma criatura que transporta o agente da doença sem sintomas é exactamente o que se espera de um reservatório natural da doença. Sabia-se que entre os surtos da doença o vírus tem que existir nalguma criatura não humana, a questão ao longo destes anos tinha sido sempre qual seria essa criatura. Outros animais como chimpanzés e gorilas contraem a doença e pensa-se que a maioria dos surtos de Ébola provêm do manuseamento de carcaças infectadas destes grandes símios. O problema é que os antropóides quando infectados têm taxas de mortalidade muito elevadas e não poderiam ser os reservatórios naturais do vírus.

Em todas as epidemias anteriores os cientistas tinham sempre recolhido milhares de pequenos vertebrados e invertebrados das regiões infectadas. O artigo de Eric M. Leroy e colegas foi feito na sequência de surtos que ocorreram entre 2001 e 2005 no Gabão e no Congo, e que vitimaram não apenas seres humanos mas também gorilas e chimpanzés. É claro que os membros das expedições científicas tomaram todas as precauções necessárias mas o tipo de estudo não deixa de ser um pouco arrepiante:
Para identificar o reservatório viral, levámos a cabo três expedições com armadilhas em regiões nas proximidades de carcaças de gorilas e chimpanzés, logo após a sua descoberta. No total, foram capturados 1,030 animais, incluindo 679 morcegos, 222 aves e 129 pequenos vertebrados terrestres, e testados para evidências de infecção pelo vírus do Ébola.

Três espécies de morcegos frugívoros mostraram a presença de anticorpos específicos para o Ébola e ainda fragmentos do material genético viral no fígado e baço. Para lá do Hypsignathus monstrosus, que se mostra no alto desta contribuição, o vírus encontrava-se também nas espécies Epomops franqueti, e Myonycteris torquata, que se mostram aqui ao lado. É claro que este estudo não vai encerrar a busca pelo reservatório natural do vírus. Há ainda a questão de como os morcegos são infectados, e se existirá um outro reservatório. Mas ao identificar a doença nos morcegos os cientistas têm um conjunto de hipóteses testáveis com que podem trabalhar. Esta identificação é importante também devido ao facto de estes animais serem consumidos pelas populações locais. Poder-se-á assim diminuir o risco de novos surtos entre humanos. Por outro lado, poder-se-ão desenvolver estratégias para limitar a ocorrência também entre os gandes símios. Os autores sugerem que o contágio de chimpanzés e gorilas poderá ocorrer em períodos de escassez alimentar durante a estação seca, em que os morcegos frugívoros e os antropóides poderão entrar em contacto enquanto competem pelo alimento.

Nota: Tara C. Smith, uma especialista nestes temas, costuma discutir as descobertas sobre o Ébola no seu blog Aetiology, e após procurar um pouco encontrei esta contribuição (em inglês) sobre o estudo de que falei acima. Ela refere aí dados de outros estudos que dão entre outras coisas os números de animais testados após cada surto. Por exemplo, após um surto em 1995 na República Democrática do Congo, os cientistas estudaram 1759 roedores, 539 morcegos, 114 insectívoros, 184 aves, e 127 répteis e anfíbios. Foram ainda estudados 15,118 mosquitos, 124 moscas sugadoras de sangue, 6538 percevejos hematófagos, 144 pulgas, 103 piolhos, e 5816 carraças.

Ficha técnica
As imagens foram retiradas do artigo indicado pela ref1 abaixo. Embora haja bastantes imagens destes morcegos, incluindo algumas muito boas do Hypsignathus monstrosus, na internet, nenhuma delas foi lançada no domínio público.

Referências
(ref1) Eric M. Leroy, Brice Kumulungui, Xavier Pourrut, Pierre Rouquet, Alexandre Hassanin, Philippe Yaba, André Délicat, Janusz T. Paweska, Jean-Paul Gonzalez and Robert Swanepoel (2005). Fruit bats as reservoirs of Ebola virus. Nature 438, 575-576. Laço DOI.

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