segunda-feira, maio 08, 2006

É sempre difícil mudar de casa

Chega uma altura na vida de um enxame de abelhas domésticas, Apis mellifera, em que o grupo tem que encontrar um novo local onde viver, construir uns favos, e criar uns quantos milhares de larvas. À raínha convém preservar as forças para pôr ovos, e enviar todos os membros do enxame numa busca de habitações seria um desperdício da energia da colónia. A solução mais óbvia é enviar umas quantas obreiras como batedores, e depois escolher entre os locais que elas encontrem, minimizando o tempo de busca e os recursos dispendidos pela colónia. Neste processo as abelhas beneficiam da peculiar forma de comunicar informações entre os membros do grupo, a famosa dança das abelhas, que as obreiras utilizam para informar os outros membros da colónia acerca da localização de campos de flores. [... ler mais]

Esta dança é também importante na escolha da habitação. O processo de tomada de decisão é descrito num artigo no American Scientist, da autoria de Thomas D. Seeley e colegas. Numa tradução livre do resumo:

Um dos pontos de viragem na vida de uma abelha melífera é quando a abelha-raínha abdica da sua colmeia a favor da sua raínha filha, e leva consigo metade das obreiras partindo para começar um novo ninho. O processo de escolha de uma nova casa pelas abelhas que partem parece levar algum tempo. Com uma pesquisa cuidadosa, Thomas Seeley e colegas revelaram a forma como um enxame chega a uma decisão. Não se trata exactamente de uma democracia, mas sim de uma questão de atingir um limiar de abelhas que favorecem um determinado local utilizando a sua dança. Num grupo de 10,000 abelhas, algumas centenas buscam locais para ninho, mas bastam apenas 10 a 20 abelhas num local para que o enxame se movimente nessa direcção. Através de experimentação e modelação matemática, o grupo de Seeley mostrou que o método das abelhas é eficiente a pesar entre a necessidade de escolher uma casa rapidamente e entre escolher o ninho ideal.

O processo de escolha pode ser descrito em três passos, que funcionam desde que a abelha batedora seja "honesta" quanto ao que achou. A qualidade do abrigo é definida em função da abertura da entrada, que não deve ser demasiado estreita, nem demasiado larga, e do volume que deve ser capaz de acolher eficientemente o enxame e futura colmeia. Quando encontra um local adequado para um ninho, a batedora volta ao enxame e inicia uma dança, executando uma série de oitos, que indica a direcção até ao ninho potencial. O factor determinante para o processo de escolha é que as abelhas ajustam a intensidade da dança em razão da qualidade do abrigo que encontraram. Quanto melhor o abrigo, mais vigorosa é a dança e mais tempo dura. Ora outras abelhas vão inspecionar estes locais e quando voltam executam a sua própria dança, que reflecte o seu próprio "julgamento" quanto ao local. Isto evita erros de apreciação individuais e, como o número de novas recrutas que vão ver um determinado local depende da duração e vigor da dança, faz com que os locais indicados como bons sejam progressivamente visitados por uma maior fracção de abelhas. O resultado é que ao fim de algumas horas os locais menos bons são efectivamente excluídos da "competição" e o enxame parte na direcção de um local que em geral não foi visitado por mais de 20 abelhas.

Esta forma de escolha é rápida e eficiente e tende a produzir bons resultados. As abelhas que voltam estão no fundo a formar correntes de opinião baseadas no seu "julgamento" de quão bom é o abrigo. É claro que estamos a falar de animais com um número reduzido de neurónios e os conceitos de escolha e decisão não são de todo equivalentes aos humanos. O que o estudo mostra é que em sistemas complexos, com um grande número de indivíduos, o caminho para tomar uma escolha acertada nem sempre passa pela consulta a todos os indivíduos. O sistema é apesar de tudo "democrático" num certo sentido, pois os indivíduos que levam o enxame a optar por um rumo não formam nenhum grupo com interesses particulares, mas são obreiras como as outras, e o enxame segue estas abelhas sem ser coagido. É no entanto muito diferente do critério "democrático" adoptado pelas baratas, que vivem em pequenas comunidades, e de que falámos aqui há algum tempo. Em relação à forma incipiente de gregarismo das baratas, que vivem em grupos de poucas dezenas de indivíduos, as abelhas são bastante diferentes. Trata-se de insectos eussociais que vivem em colónias de milhares de indivíduos, e o critério de escolha visa economizar os recursos da colónia. O algoritmo que dita este comportamento é muito simples e ao alcance de animais com um poder mental relativamente reduzido, e é isso que o torna tão interessante.

Uma vez estabelecidas no novo local, as abelhas podem começar a tratar de outros aspectos do futuro da nova colónia. A imagem abaixo, mostra um grande plano de uma destas criaturas, um dos poucos insectos apreciados pelos seres humanos.



Aquilo que eu considero particularmente fascinante neste tipo de estudos são os aspectos relativos à dança das abelhas. Há claramente a transmissão de informação, mas o comportamento vai para além disso, em particular há transmissão de um "juízo" que visa influenciar o comportamento futuro do grupo. Não resisto por isso a indicar uma contribuição no blog de John Hawks, que cita um artigo de Lestel de 2002 (ref2), que por sua vez discute um artigo de Haldel de 1953, sobre o significado da dança das abelhas na busca de alimento. Numa tradução livre de uma parte que eu considero particularmente interessante:
Na colmeia, as abelhas fazem indubitavelmente movimentos que originam respostas noutras abelhas; mas as primeiras não estão necessariamente a comunicar informação acerca da nova fonte de alimento. Alguns desses movimentos podem ser encarados como formas de transmitir a próxima acção. Haldane chegou à conclusão lógica que a distinção entre comunicação e acção não é tão clara como tinha parecido. Não só podem os animais transmitir movimentos indicando intenção, como podem também responder a eles. Quanto mais ritualizados os movimentos, mais fácil é responder-lhes. Haldane sugeriu então que mais que a comunicação de uma mensagem, a dança das abelhas era um movimento de intenções altamente ritualizado que se realizava antes de abandonar a colmeia e que levava outras abelhas a partir da mesma forma. A dança da abelha melífera pode assim ser interpretada como a previsão dos seus movimentos futuros em vez da descrição dos seus movimentos passados. Haldane considerava que as danças das abelhas eram interessantes devido à sua "ambiguidade temporal", que as torna simultaneamente profecias e histórias (Lestel 2002:45-46).

"Simultaneamente profecias e histórias" é uma expressão particularmente feliz.

Referências
(ref1) Thomas D. Seeley, P. Kirk Visscher, Kevin M. Passino (2006). Group Decision Making in Honey Bee Swarms. When 10,000 bees go house hunting, how do they cooperatively choose their new nesting site? American Scientist, Volume 94, Number 3, Page 220. Laço DOI
(ref2) Lestel D. (2002). The biosemiotics and phylogenesis of culture. Soc Sci Information 41:35-68. Resumo

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