terça-feira, maio 02, 2006

Naturalmente resistentes

Tal como tinha prometido, discuto hoje um descoberta recente acerca do vector da malária, o mosquito Anopheles gambiae. Todos os avanços no conhecimento do vector desta terrível doença são importantes. Aliás, uma das formas de acabar com a malária seria erradicar o vector, mas isso tem-se mostrado difícil. Uma outra opção para acabar com a doença seria substituir o mosquito na natureza por uma estirpe imune à infecção pelo Plasmodium falciparum, e alguns investigadores trabalham exactamente nisso, utilizando engenharia genética. Ora um estudo recente mostra que pelos vistos formas dessas já existem na natureza, e na verdade os mosquitos susceptíveis ao plasmódio serão mesmo uma minoria. [... ler mais]

Esta surpreendente descoberta é descrita num artigo na Nature (ref1) de Michelle M. Riehle e colegas. Numa tradução livre do resumo:

Pesquisámos uma população de Anopheles gambiae, numa zona de transmissão de malária na África Ocidental, em busca de regiões nos genes capazes de controlar a infecção do mosquito com o parasita da malária, Plasmodium falciparum, que ocorram em condições naturais.

Os autores começaram por isolar fêmeas de mosquito em habitações humanas em áreas rurais no Mali, e utilizaram a prole dessas fêmeas como estirpes para os estudos genéticos. Como cada fêmea do Anopheles gambiae copula uma só vez, cada estirpe de mosquitos utilizada é a prole de um único par, o que é importante para mapear as variantes nos alelos que possam ter efeitos no desenvolvimento do parasita. Essas diferentes estirpes foram então alimentadas com sangue de um único aldeão de uma dessas vilas, aldeão essa que se encontrava infectado com malária.

Ao fim de 7 ou 8 dias os mosquitos que se tinham alimentado do sangue foram dissecados para contar o número de oocistos, uma das fases do desenvolvimento do parasita da malária, que se encontravam no interior de cada mosquito. Isso permitiu aos autores caracterizar cada uma das estirpes quanto à resistência à malária: quantos menos oocistos, mais resistente era a estirpe. Para além disso os autores sequenciaram o ADN de cada um dos mosquitos dissecados, o que permitiu identificar os alelos associados aos diferentes graus de infecção. Das 101 estirpes estudadas pelos autores, 27 foram alvo dos estudos genéticos por terem pelo menos 20 mosquitos, dos quais pelo menos 30% com oocistos. Os autores notam que, curiosamente, outras 20 estirpes não apresentaram qualquer indivíduo com oocistos, embora se tenham alimentado de sangue infectado, o que mostra que a resistência ao plasmódio é comum nos mosquitos. Através da análise genética das 27 estirpes os autores conseguiram então mostrar que a resistência ao plasmódio está localizada numa região relativamente pequena do genoma, num único cromossoma.
Os locais de maior resistência ao Plasmodium agrupam-se muma pequena região do cromossoma 2L e cada local explica pelo menos 89% dos mosquitos em estirpes independentes. Em conjunto, esse conjunto de locais formam uma ilha de resistência ao Plasmodium que explica a maior parte da variação genética para a infecção de mosquitos por parasitas da malária na natureza.

Esta segregação, e o elevado nível de resistência encontrado levam os autores a notar nas conclusões:
A mais notável característica da resistência observada nos mosquitos é que segrega como um traço mendeliano simples a frequências razoavelmente elevadas em genótipos naturais selecionados de forma aleatória. É interessante notar que muitas estirpes de mosquitos eliminaram completamente o parasita apesar de alimentadas com sangue infectado. Especulamos que o fenótipo-tipo do mosquitos selvagens é a forma resistente, e que a susceptibilidade deve ser atribuída a pontos específicos de falha ou perda de função no sistema imunitário do mosquito.

A existência de um mecanismo genético relativamente simples a controlar a variação natural de susceptibilidade nos mosquitos leva os autores a sugerir que uma forma de controlar a malária seria encontrar um agente que mate preferencialmente os mosquitos infectados com o plasmódio. Fazem então referência aos dois artigos de que falei numa contribuição anterior:
Fungos entomopatogénicos podem matar de forma desproporcionada mosquitos infectados com plasmódio quando comparados com não infectados, e podem assim ter as propriedades necessárias a um agente selectivo para transformar as populações do vector numa forma resistente ao Plasmodium. Uma tal estratégia de engenharia evolucionária não exigiria a introdução de nova informação genética em populações naturais do vector.

Ou, dito de outra forma, em vez de tentarmos introduzir uma nova variante do mosquito produzida em laboratório através da engenharia genética, talvez seja mais práctico utilizar os fungos para provocar a extinção das variantes susceptíveis ao plasmódio. Existe muita informação em português na Internet acerca da malária, incluindo algumas páginas de especialistas que descrevem trabalho em curso. Por exemplo, em Portugal estão a decorrer alguns projectos de investigação em malária, no Instituto de Medicina Molecular, sob a direcção de Maria Manuel Mota, em cujas páginas se pode encontrar alguma informação e os laços institucionais de referência.

Referências
(ref1) Michelle M. Riehle, Kyriacos Markianos, Oumou Niaré, Jiannong Xu, Jun Li, Abdoulaye M. Touré, Belco Podiougou, Frederick Oduol, Sory Diawara, Mouctar Diallo, Boubacar Coulibaly, Ahmed Ouatara, Leonid Kruglyak, Sékou F. Traoré, Kenneth D. Vernick (2006). Natural Malaria Infection in Anopheles gambiae Is Regulated by a Single Genomic Control Region. Science 28, Vol. 312. no. 5773, pp. 577-579. Laço DOI.

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