domingo, janeiro 07, 2007

O Natal é sempre que um grilo canta

Dia de Reis, altura de desarmar os presépios, comer bolo-rei ou pão-de-ló, e beber Vinho do Porto. Uma boa data também para voltar a falar de moscas. Descrevi numa contribuição anterior parte do ciclo de vida da Ormia ochracea, uma mosca parasítica cujas larvas encontram a felicidade nas entranhas dos grilos. Só que nessa história não há um Menino Jesus a colocar grilos no sapatinho das larvas. Compete à mãe mosca encontrar a prenda, e ela tem o equipamento adequado para isso: um par de orelhas de grilo. O que denuncia os grilos são os ardores amorosos dos machos, pois a mãe mosca tem os ouvidos afinados para a frequência a que cantam. [... ler mais]

O mecanismo que permite à O. ochracea capacidades auditivas notáveis foi desvendado por Robert, Amoroso e Roy, e publicado na revista Science (ref1), no já distante ano de 1992. Numa tradução livre do resumo:

O parasitismo é uma estratégia de vida diversificada e bastante espalhada que liga espécies no reino animal. As moscas fêmeas parasíticas do género Ormia devem encontrar um grilo hospedeiro específico no qual depositam as suas larvas parasitas. Para se reproduzirem, as moscas fêmeas têm que desempenhar a mesma tarefa que as fêmeas dos grilos: encontrarem um grilo cantor isolado. Estas moscas desenvolveram um orgão auditivo único que lhes permite detectarem e localizarem grilos machos cantores. Através de convergência evolutiva, estas moscas possuem um orgão auditivo que se assemelha muito mais a um ouvido de grilo que a uma ouvido típico de mosca, permitindo a estes parasitas aproveitarem o nicho ecológico sensorial do seu hospedeiro.

Para mostrar esses ouvidos tão especiais tenho primeiro que fazer algo de que os leitores habituais já estarão à espera. Das outras vezes em que falei aqui de moscas fêmeas isso envolveu decapitação e desta vez não vai ser diferente. Os ouvidos desta mosca estão nos ombros, o que significa que a linda cabeça da mosca tem que saltar para que lhe possamos ver as orelhas.

Notem os macabros verstígios do pescoço. Na imagem pós-decapitação as orelhas não são tão óbvias como isso. Eis aqui a mesma imagem com ajustes no contraste e com setas a indicarem algumas características importantes.

Os orgão auditivos da mosca são os dois tímpanos quitinosos indicados pelas setas. Estas orelhas minúsculas têm apenas cerca de 1 milímetro quadrado de área e estão ligadas entre si por uma pequena ponte semirrígida. À mosca não interessa apenas determinar que está um grilo a cantar, interessa-lhe também determinar a localização, isto é a direcção e a distância até ao cantor. Não se trata de uma tarefa muito complicada para quem tem dois ouvidos. A maioria dos animais localizam as fontes sonoras a partir de dois mecanismos: a diferença de tempo entre a chegada do som a cada ouvido, e a diferença de intensidade entre os sons que chegam a cada ouvido.

No caso da Ormia há contudo um problema ligado às dimensões. Os tímpanos da Ormia distam um do outro qualquer coisa como apenas 0.5 milímetros, e mesmo nas condições mais extremas (som que vem completamente da esquerda ou direita) o atraso é de apenas um microssegundo e meio, cerca de 400 vezes menos que num ser humano. Este tempo é demasiado curto para ser eficientemente processado pelo cérebro da mosca, que codifica sinais com uma precisão da ordem dos 70 milissegundos. Por outro lado, a diferença de intensidade numa distância tão curta é menos que um decibel, que é uma atenuação muitas vezes abaixo do necessário para ser percebida pela mosca. Ora, quer no laboratório, quer na natureza, as Ormias não têm problema em localizar grilos a vários metros de distância, mesmo quando eles se calam com a mosca a meio do caminho. A forma como estas moscas o conseguem não tem paralelo no reino animal e está relacionada com a pequena ponte semirígida que une os tímpanos. Discutirei isso em maior detalhe numa próxima contribuição, mas para já deixo-vos com uma imagem que ilustra um desconcertante aspecto desta investigação: estudar os parasitas dos grilos pode vir a auxiliar pessoas com problemas auditivos.

Os auxiliares auditivos para seres humanos existentes no mercado são todos muito maiores em tamanho que a Ormia, mas todos apresentam um desempenho muitíssimo inferior ao da mosca.

Ficha técnica
Imagens cortesia de Roy Hoy e Ronald Miles, obtidas a partir desta página da Neuronal Pattern Analysis, no Beckman Institute, University of Illinois em Urbana Champaign.

Referências
(ref1) D Robert, J Amoroso, and RR Hoy (1992). The evolutionary convergence of hearing in a parasitoid fly and its cricket host. Science Vol. 258. no. 5085, pp. 1135 - 1137. Laço DOI.

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