domingo, janeiro 27, 2008

As cobras do leite

Esta cobra é uma Lampropeltis triangulum syspila, um animal que, apesar das cores berrantes, é relativamente inofensivo para os humanos. Possui no entanto uma má reputação junto aos agricultores que enveredam pela pecuária, que é extensiva a outras cobras. Essa má reputação provém de uma crendice, que existia já na idade média. Por estranho que pareça, os manuscriptos mais populares na período medieval, a seguir à Bíblia, eram tratados de biologia animal, os bestiários. Os autores dos bestiários deixavam de fora dos seus livros as criaturas fantásticas dos pagãos: os animais descritos eram supostamente criaturas reais, e os hábitos relatados eram considerados como comportamento de facto das criaturas. Algumas das coisas referidas nos bestiários são claramente fantasiosas, e levam-nos muitas vezes a esboçar um sorriso. Mas não nos podemos esquecer que os autores deste livros limitavam-se a aceitar o testemunho de pessoas mais autorizadas do que eles: caçadores e camponeses, que lidavam directamente com os animais, ou relatos de viajantes que os teriam visto em primeira mão. Ora o que é que isso tem a ver com a Lampropeltis triangulum? Bem, é que esta cobra é conhecida nos Estados Unidos da América como red-milk-snake, ou seja, a cobra-do-leite vermelha, e a razão para o nome poderia ser decalcada de um bestiário com mais de 800 anos. [... ler mais]

Eis então uma tradução para português, de um excerto de uma tradução do latim para inglês da autoria de Terence Hanbury White, de um bestiário do século XII:

A BOA é uma cobra italiana que persegue manadas de vacas ou grandes grupos de búfalos, e se agarra aos seus úderes plenos com muito leite. Destrói-os ao mamar. Assim, pela devastação do gado (Boves), a Boa retira o seu nome.

A cobra-do-leite dos Estados tem exactamente a mesma reputação. Quando as vacas aparecem com os úderes vazios a culpa é das cobras. O facto das cobras aparecerem nos estábulos das vacas não tem grandes segredos: procuram roedores, não leite. Mas, mesmo que se desse importância ao facto de aparecerem nos estábulos com as vacas sem leite, a associação causal não faz sentido, é que uma cobra destas não possui capacidade para secar uma vaca. Para lá das cobras não possuirem um aparelho bucal adequado a mamar nas tetas duma vaca, trata-se de animais relativamente pequenos. O volume de leite ingerido pela cobra seria sempre diminuto em relação à capacidade da vaca. Mas esse tipo de considerações não detém os agricultores. De acordo com as crendices locais, uma só cobra-de-leite consegue sugar, de uma assentada, leite capaz de saciar quarenta homens.

O mesmo mito existe, ou pelo menos existia quando eu era miúdo, nas aldeias portuguesas. Quando uma cabra aparecia com as tetas vazias, dando muito menos leite do que era costume, a culpa era invariavelmente de alguma cobra. Pelo menos era o que meu avô me dizia, e eu acreditava na história. Claro que nenhuma das cobras nativas portuguesas se presta a este tipo de actividades, mas as histórias do apetite das cobras por leite abundam em Portugal, e possuem mesmo versões mais tenebrosas. Uma outra história, que me lembro da minha infãncia, é a da cobra que entra em casa atraída pelo cheiro do leite humano, e apanhando a mãe adormecida com o filho ao colo, aproveita para mamar em vez da criança. Com requintes de malvadez, o animal chegaria ao ponto de tapar a boca da criança com a cauda à laia de chupeta, para a manter sossegada. Nalgumas versões, as cobras procuram crianças pequenas que tenham acabado de mamar, e entram-lhes pela garganta abaixo para irem buscar o leite, sufocando-as.

Enfim, contos de terror das aldeias, mas que as pessoas juram a pés juntos terem acontecido ao avô do tio do primo de um vizinho. Não adianta tentar argumentar acerca da impossibilidade do fenómeno. A maioria das pessoas reage de forma irracional às cobras, e mesmo os meus parentes mais próximos continuam a julgar-me louco por agarrar nas cobras, que me entram em casa, e por largá-las no campo, em vez de simplesmente lhes esborrachar a cabeça.

Os bestiários eram levados muito a sério pelas pessoas da época, e o facto de muitas das histórias persistirem são reveladoras. Na próxima contribuição descreverei mais algumas curiosidades destes bestiários. Sabiam, por exemplo, que para assustar um leão basta mostrar-lhe um galo, em especial se for branco?

Ficha técnica
Imagem de Lampropeltis triangulum syspila cortesia de Mike Pingleton via Wikimedia Commons.

Referências
The book of beasts. Editor Terence Hanbury White. New York: Putnam, 1960. Páginas na Universidade de Wisconsin.

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