quinta-feira, abril 26, 2007

As proteínas das galinhas tirânicas

Abril de 2007 é o mês em que a paleoproteómica, ou seja o estudo das proteínas de organismos extintos, algo que se julgava possível apenas até um milhão de anos atrás, se estendeu ao Cretácico. Trata-se de uma novidade excitante no mundo da Paleontologia. Tem tudo a ver com tecidos recuperados num Tyrannosaurus rex, que teria morrido há cerca de 68 de milhões de anos. Não é a primeira vez que surge uma notícia deste tipo, mas se nos outros casos havia sempre mais ou menos escondida a possibilidade de contaminação (que se veio a comprovar), desta vez tudo indica que é mesmo a sério. O tecido recuperado é colagénio, cujas sequências de aminoácidos puderam ser determinadas e comparadas com animais modernos. Da comparação não vieram grandes surpresas, os tiranossauros mostraram-se mais próximos das aves; tratou-se para já apenas da validação da técnica. O grande passo será quando se puder comparar entre grupos de dinossauros, e entre dinossauros e outros arcossauros, ou ainda entre toda uma míriade de vertebrados extintos.[... ler mais]

A Science tem na dois artigos sobre o assunto, o primeiro de Mary Higby Schweitzer e colegas (ref1) é sobre a descoberta do tecido. Numa tradução livre do resumo:

Efectuámos várias análises de tecidos fibrosos corticais e medulares de Tyrannosaurus rex (exemplar MOR 1125) que restaram após desmineralização. Os resultados indicam que colagénio de tipo I, o principal constituinte orgânico do tecido ósseo, se encontra preservado em baixas concentrações nestes tecidos. A descoberta foi confirmada de forma independente por espectroscopia de massa. Propomos um possível cadeia de processos químicos que possam contribuir para esta preservação. A presença de uma proteína endógena em osso de dinossauro pode validar hipóteses sobre relações evolutivas, taxas e padrões de mudança molecular e degradação, bem como sobre a estabilidade química das moléculas ao longo do tempo.

Este é um resultado surpreendente. O processo de fossilização acarreta em geral a destruição ou alteração do material orgânico de origem, num processo que se supunha terminado ao fim de cerca de um milhão de anos. Só que neste tiranossauro, descoberto debaixo de uma camada de sedimentos de um antigo leito fluvial, houve uma série de coisas que chamaram a atenção dos investigadores. Após usarem procedimentos químicos para removerem os minerais de fragmentos do fémur e da tíbia, notaram a presença de material fibroso e flexível, e ainda o que pareciam ser células e vasos sanguíneos. Os autores identificaram o material fibroso como sendo colagénio de tipo I com base, entre outras coisas, na sua aparência (estrutura ordenada em tripla hélice), um conteúdo de 33% num aminoácido chamada glicina, e um tipo de reacção que permite distinguir entre os vários tipos de colagénio. A identificação parece absolutamente fiável, e permitiu um segundo artigo (ref2), de John Asara e colegas, que comparam este colagénio com o de um outro animal extinto, e com organismos ainda existentes. Numa tradução livre do resumo:
Os ossos fossilizados de organismos extintos guardam em si o potencial para a obtenção de sequências de ADN ou proteínas que poderiam revelar os laços evolucionários a espécies existentes. Utilizámos espectroscopia de massa para obter sequências de proteínas de ossos com 160,000 a 600,000 anos de um mastodonte extinto (Mammut americanum) e de um dinossauro com 68 milhões de anos (Tyrannosaurus rex). A presença das sequências de T. rex mostram que as ligações dos seus peptídeos eram notavelmente estáveis. A espectroscopia de massa pode assim ser utilizada para determinar sequências de carácter único de organismos antigos a partir dos padrões de fragmentação dos peptídeos, uma ferramenta útil para estudar a evolução e adaptação de grupos taxonómicos antigos a partir dos quais é pouco provável que se obtenham sequências genómicas.

O ênfase a negrito é meu e é para clarificar alguma confusão que possa resultar deste estudo. O que os cientistas fizeram no tiranossauro foi identificar sequências de aminoácidos (peptídeos são cadeias de aminoácidos constituintes das proteínas) existentes numa substância que identificaram com colagénio. Isto não nos vai permitir reconstruir um um tiranossauro, não se recuperou material genético. O ADN, que forma o material genético, é uma molécula muito longa e bastante frágil que tem que ser reparada constantemente nos organismos vivos. Quando um organismo morre a maquinaria celular que repara o ADN deixa de funcionar e as moléculas começam a fragmentar-se. O importante a reter é que mesmo em condições favoráveis é pouco provável que se consigam recuperar fragmentos de ADN com mais de cem mil anos. As coisas são muito diferentes com o colagénio, que serve de apoio estrutural nos vertebrados. Essa proteína sofreu pressões evolutivas para ser estável, robusta e relativamente inerte.

O colagénio é uma proteína muito "conservadora". As sequências de colagénio mostram muito pouca variação mesmo quando se consideram animais com parentesco bastante distanciado, há muito poucas regiões que não alinham, e mesmo nesses casos estamos a falar de diferenças de apenas um a dois aminoácidos. Assim por exemplo, no artigo Asara e colegas, é referido que se compararmos as sequências humanas (Homo sapiens) com as de uma rã (Xenopus laevis) a semelhança é de 81%, enquanto entre humanos e bovinos (Bos taurus) se obtém 97%, que é uma semelhança notável. Infelizmente as bases de dados dos organismos existentes são ainda muito incompletas, e muitos organismos não possuem sequências catalogadas. Para já, as poucas sequências obtidas a partir do T. rex foram comparados com a galinha e com a rã, mostrando-se mais próximas da galinha. Isto era esperado, afinal a maioria dos autores admite que as aves são dinossauros, mas aqui não se procuravam surpresas, apenas testar a fiabilidade. Uma das coisas que me surpreendeu é que não foi possível comparar com outros animais filogeneticamente próximos dos dinossauros, os crocodilos e jacarés, porque não existiam sequências deste animais na base de dados. Há muito trabalho a fazer neste domínio.

Os resultados destes dois estudos são notáveis. Se a paleogenómica, ou seja o estudo do genoma de organismos extintos, está limitada a uma dezenas de milhares de anos, a paleoproteómica poderá levar-nos a centenas de milhões de anos atrás. Claro que há aspectos deste estudo que apareceram de forma pouco rigorosa na imprensa, com frases do tipo: "as galinhas são os parentes mais próximos do tiranossauro". Entre os animais estudados, isso é de facto verdade, mas qualquer outra ave daria o mesmo resultado. Por outro lado, quaisquer duas aves modernas deveriam aparecer mais próximas uma da outra que qualquer uma delas do tiranossauro. Eu era para escrever a propósito disto, mas o Luís Azevedo Rodrigues, que é um paleontólogo de profissão, já tratou disso no seu blogue, o Ciência ao Natural.

Ficha técnica
Foto de esqueleto de T. rex no Smithsonian museum of Natural History cortesia de Quadell/Wikimedia Commons.

Referências
(ref1) M. H. Schweitzer, Z. Suo, R. Avci, J. M. Asara, M. A. Allen, F. T. Arce, and J. R. Horner (2007). Analyses of Soft Tissue from Tyrannosaurus rex Suggest the Presence of Protein. Science 316, 277-280. Laço DOI.
(ref2) J. M. Asara, M. H. Schweitzer, L. M. Freimark, M. Phillips, and L. C. Cantley (2007). Protein Sequences from Mastodon and Tyrannosaurus Rex Revealed by Mass Spectrometry. Science 316, 280-285. Laço DOI.

2 comentários:

João Simões disse...

Simplesmente sensacional este blog. Já está na minha lista de Favoritos.

Abraços do Brasil,
www.universogerminante.net

Anónimo disse...

Incrível como q a tecnologia vem evoluindo!