quinta-feira, maio 03, 2007

As patas também exageram

Esta fotografia de uma encantadora mãe pata mailos seus patinhos, uma imagem encantadora, tem que ver com o tema para hoje. Pode parecer fixação minha mas vou voltar ao tema da sexualidade dos patos e animais afins. Um dos aspectos que foquei numa contribuição anterior foi o tamanho inusitado dos orgãos intromitentes de algumas espécies, em que os machos possuem genitais maiores que eles próprios, com dimensões que fariam envergonhar uma avestruz macho. Ora, por incrível que pareça, ninguém tinha investigado as características dos ovidutos das fêmeas das espécies com machos avantajados. Isto sugere um certo fundo de machismo nos investigadores das aves aquáticas, que abordavam a questão sob uma perspectiva de competição entre machos. Teve que ser uma investigadora a examinar o outro lado da questão, mostrando que a evolução da genitália das aves aquáticas resulta de uma espécie de guerra dos sexos. [... ler mais]

O trabalho que lida com a genitália feminina nas aves aquáticas é da autoria de Patricia Brennan e colegas, e encontra-se disponível para consulta livre na revista PLoS One (ref1). Numa tradução livre do resumo:

A maioria das aves possui genitália simples; os machos não possuem genitália externa e as fêmeas possuem vaginas simples. Contudo, os machos das aves aquáticas possuem um falo cujo comprimento (de 1.5 a mais de 40 centímetros) e morfologia elaborada variam entre espécies e que estão correlacionados de forma positiva com a frequência de cópulas forçadas entre as espécies de aves aquáticas.

Este último aspecto é particularmente importante no que se refere aos patos. O tamanho do orgão intromitente dos machos poderia estar ligado ao grau de promiscuidade da espécie mas num cenário "simples" de competição entre machos, sobretudo num cenário de violações mais ou menos generalizadas. Numa das referências dadas pelos autores vem um número assombroso: cerca de 30% das cópulas nalgumas das espécies são forçadas pelos machos contra a vontade das fêmeas. Só que esse cenário não explica o que se observa nas fêmeas:
Relatamos aqui a complexidade morfológica na morfologia genital das fêmeas de aves aquáticas e descrevemos uma variação da morfologia vaginal sem precedentes nas aves. Esta variação consiste em duas novidades anatómicas: (i) sacos sem saída, e (ii) roscas no sentido horário. Estas estruturas vaginais parecem funcionar para excluir a intromissão, sem a cooperação da fêmea, dos falos dos machos que espiralam no sentido anti-horário.

Eis aqui um exemplo de variações morfológicas na genitália de aves aquáticas. Temos à esquerda (A) uma espécie com machos "respeitadores", Histrionicus histrionicus, em que o nível de acasalamentos forçados é muito reduzido. O asterisco indica um testículo, a estrela o orgão intromitente, cuja extensão é marcada pelo "]". Acima, entre as setas mostra-se o oviduto de uma fêmea. A escala são dois centímetros. Notem que o oviduto é um tubo direito. Comparem com o que se vê à direita (C) para o Clangula hyemalis, uma espécie em que os machos forçam os acasalamentos com alguma frequência. Notem o tamanho bastante apreciável do orgão intromitente masculino e estrutura espiralada do oviduto feminino. Os autores do artigo fizeram uma análise de muitas outras espécies de aves aquáticas, e testaram várias hipóteses. Por exemplo, consideraram que a forma elaborada do oviduto poderia ser uma adaptação ao facto de estes animais acasalarem dentro de água. A hipótese que favorecem é no entanto a seguinte:
Uma análise comparativa controlada filogeneticamente de 16 espécies de aves aquáticas mostra que o grau de elaboração vaginal se encontra correlacionado de forma positiva com o comprimento do falo, demonstrando que a complexidade morfológica das fêmeas co-evoluiu com o comprimento do falo dos machos. A selecção intersexual é o responsável mais provável pela coevolução observada, embora a identificação do mecanismo específico seja difícil. Os nossos resultados mostram que as fêmeas desenvolveram um mecanismo anatómico críptico de escolha como resposta a copulações forçadas.

Ou seja, a genitália destas aves resulta de uma "guerra" evolutiva entre machos que querem forçar as fêmeas a conceber com eles, e fêmeas que querem fazer prevalecer a sua escolha de parceiro. Ou seja, embora as fêmeas não consigam deter muitas vezes os acessos amorosos dos machos que não lhes interessam, conseguem no entanto ter uma palavra a dizer no que respeita a quem gera as crias. Nas espécies em que há os tais 30% de acasalamentos forçados, apenas 3% das crias resultam desses acasalamentos. A análise filogenética mostrou aliás algo surpreendente: este tipo de adaptações na genitália das fêmeas, e a contrapartida nos machos, evoluiu de forma independente em três linhagens de patos e afins.

Embora os qualificativos destinados a comportamentos humanos não sejam em geral adequados ao comportamento animal, no caso dos patos abro uma excepção. São criaturas viciosas, os tarados do mundo das aves, por vezes violadores compulsivos que não perdoam sequer os cadáveres de outros membros da sua espécie. Quando leio sobre este tipo de coisas fico sempre estupefacto com a existência de pessoas que conseguem ver desígnios inteligentes na natureza.

Ficha técnica
Imagem da pata e patinhos cortesia de Al e Elaine Wilson, no www.naturespicsonline.com. Pode ser obtida também a partir da Wikimedia Commons.

Referências
(ref1) Brennan PL, Prum RO, McCracken KG, Sorenson MD, Wilson RE, et al. (2007). Coevolution of Male and Female Genital Morphology in Waterfowl. PLoS ONE 2(5): e418. Laço DOI.

2 comentários:

João Carlos disse...

Raios me partam, Caio! Será que o Daniel já leu este artigo?...

É um exemplo gritante de "quebra espontânea de simetria" devida à "helicidade uterina" das patas!...

Anónimo disse...

Que houve que desapareceste, amigo Cais?