quarta-feira, abril 18, 2007

Partilhar os frutos e a morte

Estes filamentos na imagem são de um vírus, mas não um vírus qualquer. Esse vírus tem o nome de um rio na agora chamada República Democrática do Congo (antigo Zaire), pois foi aí que os seus efeitos foram pela primeira vez identifcados em 1976. O nome desse rio? Ébola. A febre hemorrágica do Ébola é uma doença grave e quase sempre fatal em seres humanos. É daquelas coisas que nos faz pensar imediatamente em cenários apocalípticos. Tal como referi aqui e aqui, esta doença ataca também primatas não humanos, em particular gorilas e chimpanzés. A mortandade entre esses primatas é tão ou mais intensa que entre os humanos, e em cada surto da doença os cadáveres contam-se por milhares. Um estudo recente analisou o papel o tipo de interação social entre os vários grupos de gorilas e também entre grupos de gorilas e chimpanzés en regiões onde ambas as espécies coexistem em densidades populacionais elevadas. Tudo para compreender o carácter explosivo das incidências da doença e o grande número de animais mortos em cada ocorrência. [... ler mais]

O novo trabalho é da autoria de Peter Walsh e colegas e saiu na revista American Naturalist. Numa tradução livre do resumo.

Ao longa do último decénio a febre hemorrágica Ébola tem surgido repetidamente no Gabão e no Congo, causando um grande número de surtos humanos e uma vasta mortandade de gorilas e chimpanzés. A razão do surgimento tão explosivo do ébola permanece pouco compreendida. Estudos prévios tenderam a focar factores exógenos tais como perturbação do habitat e mudanças climáticas como os promotores da emergência do Ébola, ao mesmo tempo que minimizavam a contribuição entre grupos sociais de chimpanzés e gorilas. Relatamos aqui observações recentes de comportamentos que colocam um risco de transmissão entre grupos de gorilas ou chimpanzés. Estas observações apoiam uma reavaliação da transmissão de antropóide a antropóide como um amplificador dos surtos de ébola.

Na verdade os autores não observaram ocorrências da doença, mas sim os comportamentos de diferentes grupos de gorilas e chimpanzés, mais exactamente a frequência com que os diferentes grupos (unidades) entravam em contacto, durante épocas correspondentes à maturação dos frutos de algumas árvores. Como os autores referem no corpo do artigo, alguns grupos eram extraordinariamente sociáveis:
Uma das unidades visitou as árvores de Nauclea em 26 dos 36 dias de Setembro e Outubro em que os gorilas foram observados nas árvores de Nauclea. Essa unidade respondeu por 38% das sobreposições no mesmo dia, 49% das sobreposições em dias consecutivas, e 56% das sobreposições de dois dias. Essa unidade coexistiu com nove das outras 15 unidade em pelo menos um de três intervalos de tempo (quatro, sete, e nove unidades, respectivamente).

Os autores estabelecem aqui um curioso paralelo com o que se passa no caso do SIDA:
Estas observações sugerem que algumas unidades sociais de gorilas podem desempenhar um papel na transmissão da doença análogo ao das prostitutas na propagação da SIDA no sudoeste africano, disseminando rapidamente o Ébola entre redes de indivíduos que de outra forma interagiriam pouco. Mostrou-se recentemente que tais "super transmissores" desempenham um papel crítico na dinãmica de doenças emergentes explosivas, incluindo o Ébola em humanos.

O contacto social entre os grupos ultrapassa mesmo a barreira das espécies. Já se sabia que os chimpanzés e gorilas partilhavam alguns dos recursos alimentares, mas não que os exploravam em simultâneo. Isso foi observado pela primeira vez pelos autores:
De 2002 a 2004, observámos chimpanzés de quatro comunidades diferentes a alimentarem-se em árvores de fruto do género Ficus. Em 5 de 75 dias (isto é, uma vez em cada 5 dias de alimentação em figueiras) os chimpanzés ocuparam uma árvore simultaneamente com os gorilas. A co-ocupação durou em média 47 minutos, com uma média de 10.4 chimpanzés e 3.8 gorilas envolvidos. As taxas reais de co-ocupação são provavelmente mais elevadas porque os gorilas parecem ser demovidos pela presença de observadores.

Este tipo de comportamentos certamente potenciam a propagação da doença. Há ainda um aspecto que me escapou enquanto tirei notas deste artigo na biblioteca, mas que é referido no weblog de John Hawks. Os autores do artigo referem ter observado um grupo que se deparou com um cadáver ensanguentado de outro grupo a parar e observá-lo. Numa doença como o Ébola, a possibilidade de membros de um grupo se depararem com membros mortos de outros grupos é também um factor de risco.

Ficha técnica
Imagem da autoria de Cynthia Goldsmith e do Centers for Disease Control and Prevention (CDC), obtida através da Public Health Image Library (PHIL)

Referências
(ref1) Peter D. Walsh, Thomas Breuer, Crickette Sanz, David Morgan, and Diane Doran-Sheehy (2007). Potential for Ebola Transmission between Gorilla and Chimpanzee Social Groups. Am. Nat. 2007. Vol. 169, pp. 684-689. Resumo.

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