terça-feira, abril 24, 2007

Quando o refúgio não chega para todos

A Malla que viaja pelo Mundo referiu, nas suas contribuições sobre o aquecimento global, o interesse que o animal maior nesta fotografia, o urso polar, desperta junto de pelo menos uma estrela do cinema norte-americano. A mim parece-me estranho que se dedique tanta atenção ao urso quando existe no ártico um animal muito mais fotogénico e igualmente interessante, a raposa do ártico, de seu nome científico Alopex lagopus, a coisinha felpuda junto do carnívoro maior e mais ameaçador. As raposinhas não são propriamente novatas nestas coisas de alterações do clima. Há uns poucos milhares de anos, durante a última época glacial, o seu habitat estendia-se bastante mais a sul, incluindo partes do que é agora a França, Alemanha e Rússia. Ora qual a relação das zorrinhas do pleistoceno com as zorrinhas árticas que subsistem na Escandinávia? Para onde foram essas raposas quando o gelo recuou? [... ler mais]

Como já referi aqui por diversas vezes tenho uma certa má vontade em relação aos pandas e bebés focas, e outros animais fofinhos e abracáveis. Devo no entanto confessar que não resisto às zorrinhas com a sua pelagem de um branco imaculado. Daí que tenha forçosamente que mostrar mais uma imagem destes adoráveis animais.


O artigo que descreve o destino das zorrinhas árticas europeias é da autoria de Love Dalén e colegas e foi publicado na revista Proceedings of the National Academy of Sciences (ref1). Numa tradução livre do resumo:

A forma como as espécies respondem a uma maior disponibilidade de habitat, por exemplo no final da última glaciação, encontra-se bem estabelecida. Contrastando com isso, pouco se sabe sobre o processo oposto, quando a quantidade de habitat diminui. A hipótese de seguimento do habitat prevê que as espécies devem ser capazes de seguir quer o aumentar quer o diminuir na disponibilidade de habitat. A hipótese alternativa é que as populações fora dos refúgios se extinguem durante os períodos de clima não adequado.

Este estudo não poderia ter sido feito poucos anos atrás. Agora estas coisas parecem corriqueiras, uns ossos antigos, um pouco de ADN mitocondrial, umas técnicas de sequenciação sofisticadas e já está.

Antes de passar ao resto do resumo, é tempo para mais uma imagem. As raposinhas árticas não são sempre brancas e felpudas, possuem também uma pelagem de verão, bastante mais curta, mas que não tira encanto ao animal. Eis aqui mais uma pose sonolenta:

Retomando então o texto:

Para testar essas hipóteses, usámos técnicas de ADN antigo para examinar a variação genética na raposa ártica (Alopex lagopus) durante um ciclo de expansão/contracção. Os resultados mostram que a raposa ártica das latitudes médias da Europa se extinguiu no fim do Pleistoceno e não seguiu o seu habitat quando ele se deslocou para norte. Em vez disso, a grande semelhança genética entre as populações actuais na Escandinávia e na Sibéria sugere uma origem oriental para a população escandinava no final da última glaciação. Este resultados fornecem novas perspectiva sobre a forma como as espécies respondem às mudanças climáticas, pois sugerem que as populações não são capazes de seguir as diminuições na disponibilidade do habitat. Isto implica que as espécies árticas podem ser particularmente vulneráveis a aumentos na temperatura global.

As raposas árticas da Escandinávia vivem naquilo que se chama um refúgio, um resto bastante pequeno de um habitat que se estendia mais além. O que os autores mostram é que as raposas que existiam no resto da Europa ficaram fora desse refúgio. O material genético nas mitocôndrias conta esta história de certa forma surpreendente.

Esta coisa de uma população de criaturas europeias da era glacial que não deixaram vestígios no ADN mitocondrial de populações modernas tem um certo paralelismo com os seres humanos. O ADN mitocondrial que se recuperou a partir de ossadas do homem de neandertal apresenta sequências que não se encontram nos humanos anatomicamente modernos. Claro que os padrões populacionais e de mobilidade dos humanos serão bem diferentes dos das raposas, mas poderia ter acontecido algo semelhante: a cada recuo dos glaciares, as populações do sul "invadiam" as áreas do norte então disponíveis, mas a cada avanço dos glaciares, o habitat das populações de neandertais contraía-se, levando à extinção das populações a norte. John Hawks no seu Anthropology Weblog, discute esse ponto com um pouco mais de detalhe.

Para terminar, não resisto a colocar mais uma foto de raposa ártica na sua pelagem de verão. Gosto particularmente desta fotografia, com a raposinha com um ar compenetrado e de desafio, numa postura defensiva:


Ficha técnica
Foto da raposa e urso no Wapusk National Park, em Manitoba, no Canadá, cortesia de Ansgar Walk, obtida desta página da Wikimedia Commons.
Foto da sonolenta raposa de pelagem branca cortesia de Marcel Burkhard, obtida desta página da Wikimedia Commons.
Foto da raposinha a dormir em cima do poste, no parque natural de Silz na Alemanha, cortesia de Traroth, obtida desta página da Wikimedia Commons.
Foto da zorrinha ártica numa postura defensiva na ilha de Nizke cortesia de John Sarvis e do U.S. Fish & Wildlife Service, obtida desta página da Wikimedia Commons.

Referências
(ref1) Love Dalén, Veronica Nyström, Cristina Valdiosera, Mietje Germonpré, Mikhail Sablin, Elaine Turner, Anders Angerbjörn, Juan Luis Arsuaga, and Anders Götherström (2007). Ancient DNA reveals lack of postglacial habitat tracking in the arctic fox. PNAS 2007 104: 6726-6729. Laço DOI.

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