domingo, abril 01, 2007

Um mico-estrela carrega sempre algo do irmão dentro de si

Ela era de raça divina, não humana: leão pela frente, serpente por trás, cabra pelo meio do corpo terrível, ela soprava o ardor de um fogo flamejante.

Esta é uma passagem do canto VI da Ilíada em que se descreve a Invencível Quimera, uma criatura formada pela mistura de animais distintos. O termo adquiriu um significado um pouco mais vasto em português, mas continua a ser usado nesse contexto em biologia. As quimeras existem de facto, e um razoável número delas pulula nas matas brasileiras. Estas quimeras brasileiras não cospem fogo pelas ventas, nem possuem um ar terrível: são na verdade os simpáticos Callithrix kuhlii, os micos-estrela de que falei na contribuição anterior. Eu sei que hoje é o famigerado dia das mentiras, mas trata-se de verdade verdadeira. A sério. Os micos-estrela são aquilo a que se chama quimeras genéticas. [... ler mais]

Como referi na contribuição anterior sobre os micos-estrela, os machos ocupam-se dos jovens carregando-os durante o dia, para que a mãe se possa alimentar. O mais bizarro nestes animais, e algo que deveras me surpreendeu, é que as relações de parentesco entre os machos e as crias de que cuidam não são claras. Um exemplo: é possível que um macho que tenha de facto contribuído para a fecundação das crias não seja pai de nenhuma, apenas tio. Por outro lado, dependendo da relação de parentesco com os outros machos do grupo, é possível que um macho que não tenha acasalado com a fêmea seja, apesar de tudo, o pai genético de algumas crias. Confusos? Bem, tem tudo a ver com o que se passa na barriga da mãe.

Os micos-estrelas nascem aos pares, e sucede que durante a gestação as placentas dos dois irmão se fundem e eles partilham assim uma rede de vasos sanguíneos através da qual as células estaminais de um animal podem "colonizar" o outro. Ora os pequenitos servem-se disso com resultados surpreendentes, algo que é descrito num artigo de Ross, French e Ortí na revista Proc. Natl. Acad. Sci. USA (ref1). Numa tradução livre do resumo:
A formação de quimeras genéticas viáveis nos mamíferos, através da transferência de células entre irmãos no útero é rara. Mostramos aqui, utilizando marcadores de microssatélites de ADN, que os fenómenos quiméricos em micos gémeos (Callithrix kuhlii) não se limita aos tecidos hematopoiéticos derivados do sangue como tinha sido descrito anteriormente.

Na verdade já se sabia que algumas células passavam de um gémeo para outro através dos vasos sanguíneos que partilham. O que não se sabia era a extensão do fenómeno, em particular este aspecto que me deixou siderado:
Todos os tipos de tecidos somáticos revelaram ser quiméricos. Mais notável ainda, demonstrou-se que os tecidos da linha germinal eram quiméricos, algo nunca antes documentado como ocorrendo naturalmente num primata.

Os tecidos da linha germinal são os tecidos das gónodas que se convertem em gâmetas, ou seja que contêm material genético a passar à geração seguinte. Impressionante, os ovos ou esperma de um mico podem na verdade ser do irmão ou irmã. As implicações são óbvias:
De facto, verificámos que os micos quiméricos transmitem com frequência à sua própria descendência os alelos do irmão que adquirem no útero. Isso significa que um indivíduo que contribui gâmetas para a descendência não é necessariamente o pai genético dessa descendência.

Os autores discutem no artigo essencialmente os aspectos relativos ao cuidado cooperativo das crias nestes primatas, pois é claro que isto baralha completamente as relações de parentesco. Mas há outros aspectos, em particular um bastante sombrio que é discutido por Carl Zimmer no seu blog the Loom. Trata-se do velho problema de que o que serve os interesses da mãe nem sempre serve os interesses da cria. Carl Zimmer entrevistou um estudioso, David Haig, que tinha abordado esta questão em 1999, quando apenas se conheciam aspectos quiméricos no sangue. Segundo Zimmer, Haig sugere que os gémeos além de células estaminais poderiam também enviar celúlas dos mecanismos imunitários para se atacarem mutuamente. Isso poderia explicar porque razão os micos estrelas possuem tão poucos receptores para reconhecimento pelas células do sistema imunitário, o que os torna tão sensíveis a infecções virais. Isso faria sentido se se tratasse de uma defesa contra ataques do sistema imunitário do irmão. Este aspecto dos micos arrepia-me e faz-me pensar que afinal estas quimeras também têm o seu quê de feroz.

Ficha técnica
Imagem de mico-estrela obtida a partir das páginas do Callitrichid Research Center da University of Nebraska Omaha.
Imagem da quimera retirada desta página da Wikimedia Commons que mostra o fresco Bellerophon tötet die Chimäre no Neues Museum em Berlim na Alemanha.

Referências
(ref1) C. N. Ross, J. A. French, and G. Ortí. Germ-line chimerism and paternal care in marmosets (Callithrix kuhlii). Proc. Natl. Acad. Sci. USA, Laço DOI.

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