terça-feira, fevereiro 26, 2008

O turismo não é para os engripados

A senhora com roupa adequada a um bloco operatório é o mote para a contribuição de hoje. É que vou falar de chimpanzés e de "ecoturismo." Quando se visitam locais onde se podem observar chimpanzés selvagens, há um certo número de regras a observar. É preciso conservar distâncias mínimas da ordem da dezena de metros, não se deve comer ou deixar restos de comida, não se deve tossir, espirrar, ou cuspir para o chão. Estas regras não se destinam apenas a evitar actos violentos por parte dos chimpanzés, destinam-se sobretudo a evitar a transmissão de doenças contagiosas. Aquilo que nos atrai tanto nos chimpanzés e gorilas é serem tão parecidos connosco. Essa parecença torna-os susceptíveis às nossas doenças. Pessoas que se mostrem adoentadas não são admitidas nos passeios, e mesmo os que são autorizados a aproximar-se dos antropóides têm obrigatoriamente que usar máscaras cirúrgicas, como a da imagem. Estes cuidados são absolutamente necessários, pois qualquer constipação ou gripe ligeira, transmitida pelos seres humanos, é capaz de matar um chimpanzé. Mesmo com todos estes cuidados, o ecoturismo, e mesmo a simples pesquisa, podem deixar marcas devastadoras nas populações deste antropóides. Esse é o resultado de um estudo efectuado entre 1996 e 2006 na Costa do Marfim, e que foi publicado recentemente. [... ler mais]

O artigo que analisa as mortes por doença respiratória dos chimpanzés é da autoria de Sophie Köndgen e colegas e foi publicado na revista Current Biology. Numa tradução livre do resumo:

A caça comercial e a perda de habitat são factores importantes para o rápido declínio dos grandes símios. O ecoturismo e a pesquisa têm sido há muito defendidos como uma forma de fornecer um valor alternativo para os antropóides e para os seus habitats. Contudo, o contacto próximo entre os humanos e os antropóides habituados durante a pesquisa e o turismo de antropóides têm despertado receios de que os riscos de transmissão de doenças se sobreponham aos benefícios. Apresentamos aqui a primeira evidência directa de transmissão de vírus de humanos para os antropóides selvagens.

A evidência proveio da análise de cadáveres.
Amostras de tecido de chimpanzés habituados que morreram durante três surtos de doenças respiratórias no nosso local de pesquisa, na costa do Marfim, continham dois paramixovírus humanos. As estirpes virais recolhidas dos chimpanzés estavam relacionadas de perto com estirpes contemporâneas que circulam em epidemias humanas com carácter global.

O que a última frase significa é que os animais que morreram tinham sido contaminados recentemente, por uma estirpe que só podia vir dos humanos.
Vinte e quatro anos de dados de mortalidade observada em chimpanzés mostram que este tipo de surtos respiratórios pode ter uma história longa. Contrastando com esse aspecto, dados de levantamentos mostram que a presença de investigadores tem um efeito positivo bastante forte na supressão da caça furtiva em torno do local de pesquida. Estas observações ilustram o desafio de maximizar os benefícios da pesquisa e do turismo dos grandes símios ao mesmo tempo que se minimizam os efeitos negativos colaterais.

Ecoturismo é um termo enganador, o que existe é turismo. O ideal seria não perturbar os animais e não os expor desnecessariamente aos seres humanos. Infelizmente, em muitos locais os esforços de protecção não são possíveis sem contrapartidas económicas. Daí ser necessário um compromisso. Ou seja, não fiquem com um peso na consciência se vos calhar ir a África, e decidirem visitar os chimpanzés. As visitas dos turistas aos chimpanzés selvagens reduzem a caça furtiva e, devido às receitas que geram, fornecem peso político às actividades de conservação. Os autores deste artigo mostram que essa protecção acrescida compensa e muito o número de mortes por doença, mas para manter esse balanço positivo o turismo tem que ser acompanhado de muito perto, e obedecer a regras muito severas. Ver chimpanzés na natureza é tão delicado como entrar num bloco operatório.

Voltarei a este tema relativamente ao turismo antártico e aos efeitos desastrosos que está a ter nos delicados ecossistemas da Antártida.

Ficha técnica
Imagem cortesia de Timely Medical Innovations via Wikimedia Commons.

Referências
(ref1) Sophie Köndgen et al (2008). Pandemic Human Viruses Cause Decline of Endangered Great Apes. Current Biology, Vol 18, 260-264.

1 comentários:

João Carlos disse...

E isso nem devia ser novidade... Sabemos bem o que as doenças trazidas pelos colonizadores europeus provocaram de razia entre as populações dos ameríndios...

Mas "Mamãe Natureza" não vai à loucura: vai à forra... Veja, por exemplo, a recente incidência de Febre Amarela Silvestre no Brasil, principalmente entre os "ecoturistas"...

E o raio da SIDA cuja origem ainda permanece por esclarecer...