segunda-feira, outubro 15, 2007

A semana do corvo: a ferramenta certa com o tamanho certo

Como foi referido na contribuição anterior, os corvos da Nova Caledónia, da espécie Corvus moneduloides, fabricam e utilizam ferramentas mesmo sem terem sido expostos a tais comportamentos. O comportamento é assim em parte instintivo, e só por si não significa que estes corvos sejam particularmente inteligentes. As teias de aranha, os ninhos de barro de certas vespas, algumas termiteiras muito elaboradas, são alguns exemplos, entre muitos outros, de que os animais são capazes de fazer coisas elaboradas sem que isso exija capacidades cognitivas avançadas. Para avaliar a inteligência animal um dos testes é colocar os animais em situações novas, e verificar se conseguem adaptar o seu desempenho para lá de qualquer padrão inato que possam possuir. No caso dos corvos neocaledónicos os cientistas resolveram executar a experiência que se mostra na imagem. Os cientistas forneceram pauzinhos de vários tamanhos e colocaram comida a várias distâncias dentro dos tubos transparentes. O que se procurava ver com esta experiência era se os corvos testavam pauzinhos ao acaso, ou se escolhiam de forma sistemática a ferramenta mais adequada. [... ler mais]

O trabalho que testa as escolhas dos corvos é da autoria de Jackie Chappell e Alex Kacelnik, e foi publicado na revista Animal Cognition (ref1). Os corvos usados nesta experiência não nasceram em cativeiro, trata-se de animais que foram capturados na natureza, um macho e uma fêmea, de seu nome Betty, que se pode ver na imagem no iníco da contribuição. Os animais são mantidos numa gaiola onde podem voar livremente, e durante o dia têm acesso a um pátio, com brinquedos, bebedouros onde podem tomar banho, cascalho, locais com terra onde podem escavar, e mesmo brinquedos de cachorro. Os autores referem que, poucas horas depois de terem sido colocados neste local, os corvos arrancaram pauzinhos dos troncos de árvore que lhes serviam de poleiro, e desataram a pesquisar todos os buracos e fendas das imediações, incluindo as tomadas de electricidade e os alarmes de incêndio, que tiveram que ser vedados. Embora não fosse esse o objectivo do estudo, os autores notam ainda que os animais aparentavam explorar e brincar com os vários objectos que tinham à disposição. Noto ainda que é referido que, durante as experiências que se irão descrever em seguida, os animais não foram privados nem de água nem de comida.

Ora quais foram então os resultados da experiência? Numa tradução livre do resumo:

Descrevemos uma experiência que mostra que os corvos neocaledónicos são capazes de escolher ferramentas de tamanho adequado para uma nova tarefa, sem aprendizagem por tentativa e erro. Esta espécie é quase única entre todas as espécies animais (juntamente com alguns primatas) no grau de uso e manufactura de ferramentas polimórficas na seu ambiente natural. Contudo, a flexibilidade do seu uso de ferramentas não tinha sido testada até agora. A flexibilidade, incluindo a habilidade de selecionar a ferramenta adequada a uma tarefa, é considerada como o paradigma das adaptações cognitivas complexas para o uso de ferramentas.

Os autores fizeram na verdade duas experiências, ambas com resultados interessantes.
Na experiência 1, testámos a habilidade de dois animais cativos (um macho e uma fêmea) de selecionarem um pau (de um intervalo de comprimentos providenciado) que igualasse a distância à comida colocada num tubo horizontal transparente. Ambos os animais escolheram ferramentas que igualavam a distância ao seu alvo significativamente mais vezes do que se esperaria pelo acaso.

Isto é interessante, pois significa que os animais conseguem projectar o alcance da ferramenta. Os autores notam que os corvos repartiam as escolhas entre as duas possibilidades: «ou se escolhe a ferramenta que mais se aproxima da distância ou ,em caso de dúvida, se opta pela que tem o maior tamanho.» Esta dupla estratégia foi usada 70% das vezes, quando se fosse por acaso teria sido usada apenas 19% das vezes. A fêmea cometeu mais erros que o macho (escolheu por vezes uma ferramenta mais curta do seria necessário) mas numa amostra tão pequena isso não é significativo.

A segunda experiência envolvia um teste à distância. Esta situação corresponde mais ao que se passa na natureza, em que os utensílios são fabricados longe dos orifícios a pesquisar.
Na experiência 2 usámos uma tarefa semelhante, mas com as ferramentas colocadas fora da vista do tubo de comida, de forma a que os pássaros tinham que recordar a distância à comida antes de selecionarem uma ferramenta. A tarefa foi completada apenas pelo macho, que escolheu uma ferramenta de tamanho suficiente bastante mais vezes do que se esperaria pelo acaso, mas que não mostrou uma preferência por igualar a distância.

Na verdade a fêmea não "falhou", ela nem sequer tentou. Mas não ficou inactiva, simplesmente andou pelo resto da gaiola em busca de comida, chegando mesmo a usar alguns dos pauzinhos destinados a esta experiência noutros locais da gaiola. O macho, no entanto, não mostrou grandes problemas nem hesitou muito, assim que decidia que queria aquela comida levava sensivelmente o mesmo tempo a completar a tarefa que no teste anterior. A tarefa era claramente mais difícil que a anterior, em que o macho só se enganou uma vez em vinte tentativas. Na experiência 2, em vinte tentativas, houve quatro situações em que o macho escolheu uma ferramenta demasiado curta, mas em duas delas recuperou a comida à mesma: agarrou no pauzinho pela ponta e meteu parte do bico dentro do tubo. Nos outros dois casos voltou à pequena bancada com os pauzinhos, escolheu um maior, e recuperou então a comida.

Pode parecer estranho que os animais, pelo menos na primeira experiência, tentassem por vezes escolher uma ferramenta do tamanho certo e não agarrassem logo na ferramenta maior. Os autores especulam um pouco a esse respeito. Eles notam que uma ferramenta maior pode ser mais difícil de manobrar e logo levar a que a tarefa demore mais tempo. Se nesta experiência o tempo não é um factor importante, na natureza, com competidores, e presas vivas e capazes de se moverem, pode ter alguma influência.

Alguns de vocês poderão estar a pensar que a fêmea em questão era relativamente pouco esperta, mas não desdenhem já das capacidades da Betty. Esse pássaro fez uma das coisas mais espantosas que já vi um animal não humano fazer. Falarei disso daqui a duas contribuições. Para a próxima continuarei nas questões de escolha. Os corvos neocaledónicos sabem escolher bem o tamanho, mas e quanto à espessura?

Referências
(ref1) Chappell, J., & Kacelnik, A. (2002). Tool selectivity in a non-mammal, the New Caledonian crow (Corvus moneduloides). Animal Cognition, 5:71-78. DOI:10.1007/s10071-002-0130-2.

0 comentários: