sábado, outubro 13, 2007

Segurança na estrada

Falei, na penúltima contribuição, de um trabalho de 2001, de um senhor chamado Joel Berger, que se disfarçava de alce para estudar o impacto da chegada de predadores, como ursos e lobos, em regiões onde os humanos os tinham exterminado dezenas de anos antes. Como referi, após um período inicial de desnorte, em que os alces tratavam os lobos como simples coiotes, e em que as mães os deixavam aproximarem-se a curta distância das crias, matando-as mesmo ao seu lado, os alces aprenderam a ser cuidadosos. Joel Berger continuou a estudar estas populações de alces, e acaba de documentar uma estratégia notável que as mães alces, como a da figura, usam para conseguirem um parto livre de ursos. Como descrevi, algumas contribuições atrás, as estradas são locais perigosos para os alces, mas pelos vistos também têm os seus benefícios, como as mães alces rapidamente descobriram. [... ler mais]

O novo artigo de Joel Berger foi publicado na revista Royal Society Biology Letters (ref1). Numa tradução livre do resumo:

As áreas protegidas são pontos de referência cruciais para aferir a mudança ecológica, contudo, certas áreas de África, Ásia e da América do Norte, que retêm grandes carnívoros, estão sob intensa pressão económica e política para acomodar uma quantidade imensa de visitantes e providenciar a infrastrutura adequada. Uma consequência indesejada é a forte modulação da interação tripartida envolvendo pessoas, predadores, e presas, uma dinâmica que coloca em questão até que ponto a interação e distribuição dos animais são independentes de influências humanas subtis.

Este é um aspecto que eu já referi a propósito das aves ciganas e dos golfinhos: o chamado ecoturismo é sobretudo turismo, e de ecológico tem muito pouco. O afluxo regular de visitantes tem sempre algum tipo de efeito pernicioso no ecossistema. No caso dos alces as modificações estão ligadas a infrastruturas construídas pelos humanos.
Aqui, eu recorro à notável sincronia dos nove dias em que nascem 90% do alces neonatos no ecossistema de Yellowstone, para demonstrar uma mudança substancial na forma como as presas evitam os predadores; os locais de parto deslocam-se das zonas com ursos pardos aversos ao tráfego, e na direcção de estradas pavimentadas. Este modificação ao longo de um decénio esteve associada com a recolonização dos carnívoros, mas nem as mães em zonas livres de ursos nem as mães fora dos períodos de parto alteraram os seus padrões de uso das paisagens.

O ênfase é meu e ilustra um ponto importante, os alces fêmeas continuam a alimentar-se nas suas áreas tradicionais, é só durante o período crítico do parto, e apenas em regiões com ursos, que se aproximam das estradas alcatroadas. Porque é que os alces o fazem? Os humanos são pouco tolerantes em relação a predadores de grande envergadura que se aproximem demasiado, daí que os ursos receiem as estradas, mantendo em geral pelo menos cerca de 500 metros de distância das bermas. É nesta "zona livre de ursos" que os alces fêmeas dão à luz. É um resultado curioso e muito interessante, com implicações que vão para além do caso dos alces.
Estas descobertas oferecem evidência conclusiva de que os mamíferos usam os humanos como escudo contra os carnívoros e levantam a possibilidade de que essa redistribuição ocorreu noutros grupos de mamíferos, devido à presença humana, tomando formas que temos ainda que adivinhar. Para interpretar o funcionamento ecológico dos sistemas dentro dos parques, temos também que levar em consideração os efeitos antropogénicos indirectos na distribuição e comportamento das espécies.

Pois é, os parques não são vitrinas em que se observa a dinâmica natural dos animais que lá vivem. São sistemas artificiais, fortemente influenciados pela presença humana. Neste caso, os humanos trazem benefícios a uma das partes (os alces), mas retiram aos ursos a possibilidade de uma refeição fácil, e inflacionam a taxa de sobrevivência dos alces jovens. Toda a dinâmica do parque, incluindo os tipos de vegetação e populações de aves é afectada, pois as populações de alces têm um impacto profundo no ecossistema. Não deixa no entanto de ser notável ver como as populações de alces se adaptaram em tão pouco tempo à presença dos predadores, e desenvolveram estratégias tão eficientes para os evitar.

Ficha técnica
Imagem via Wikimedia Commons.

Referências
(ref1) Joel Berger (2007). Fear, human shields and the redistribution of prey and predators in protected areas. Royal Society Biology Letters, no prelo. doi:10.1098/rsbl.2007.0415.

3 comentários:

João Carlos disse...

Eu faço uma ressalva quanto a sua afirmação sobre o eco-turismo. Ela é perfeitamente válida para sítios de conservação de espécies ameaçadas, mas não onde a natureza ainda preserva sua qualidade original. Cito como exemplo a Amazônia e o Pantanal. Nestas duas áreas, ainda é possível se fazer eco-turismo sem que a presença humana ameace fauna e flora.

Já não é o caso em Reservas Ambientais, como Poço das Antas (onde se tenta salvar o que restou dos micos-leões dourados), ou os Parques Marinhos de Abrolhos e dos Penedos de São Pedro e São Paulo (sobre este último, a Lúcia Malla trouxe notícias inquietantes...) Mas nestes, cá no Brasil, não é permitido turismo algum. O que, infelizmente, não impede que tipos sem consciência ecológica alguma causem estragos...

Mas estou a falar apenas de Brasil...

Caio de Gaia disse...

Aceito o ecoturismo quando equivale a "turismo rural". Incluo aí actividades como observação de aves desde que com regras (locais como estuários e zonas de colónias de nidificação devem ser acautelados). O Pantanal deve ser extraordinário a esse respeito.

João Carlos disse...

Se tiver a oportunidade, não perca!...