quarta-feira, outubro 03, 2007

A miraculosa asa voadora de Sharov

Na década de 1960 um senhor chamado Alexander Sharov estudava fósseis do Triásico na então República Soviética da Quirguízia. Sharov estava interessado sobretudo em invertebrados, mas, nos sedimentos finos, capazes de guardar os detalhes dos insectos, encontrava de vez em quando pequenos vertebrados, extraordinariamente bem preservados, com impressões da pele e tudo. Um desses fantásticos achados é a criatura da imagem, inicialmente chamada de Podopteryx, e que seria mais tarde baptizada como Sharovipteryx mirabilis. É de facto um pequeno milagre. Trata-se do mais antigo fóssil que se conhece com evidências de uma membrana entre as patas do animal, algo que nos animais modernos significa que deslizam pelos ares. Só que "a miraculosa asa voadora de Sharov" é única, pois, em vez de asas nos braços, o Sharovipteryx usava uma prega de pele apoiada nas patas traseiras. Esta parece uma forma estranha de voar, e os cientistas têm especulado sobre a forma como o Sharovipteryx o faria. [...ler mais]

O animal vivo seria semelhante a algo do género:

Esta pose parece pouco natural pois o centro de massa do animal estaria à frente do patágio. Mas esta é apenas uma entre várias possibilidades pois há muitas dúvidas quanto à vizinhança dos membros anteriores. É que essa parte do fóssil foi alterada durante a preparação e não há certeza quanto à forma do patágio nessa região, aliás não se sabe mesmo se existia um patágio nessa região. Recentemente, alguns cientistas procuraram reconstruir o aspecto do animal t
endo como base o desempenho aerodinâmico de várias configurações do Sharovipteryx. Os resultados são descritos num artigo de Gareth Dyke e colegas publicado na revista Journal of Evolutionary Biology (ref1). Numa tradução livre do resumo:

Sharovipteryx mirabilis, um réptil de há 225 milhões de anos, foi o primeiro planador de tipo asa-delta no mundo; este animal notável possuía um superfície de vôo composta inteiramente por uma membrana nos membros posteriores. Utilizamos teoria aerodinâmica padrão de asas-delta para reconstruir o vôo do S. mirabilis demonstrando que a forma da asa poderia ter sido controlada simplesmente pela protracção do fémur ao nível dos joelhos, e pela variação na incidência de uma pequena asa-canard nos membros anteriores. O nosso método permitiu-nos abordar a questão de como a identificação realista do desempenho no vôo planado pode ser utilizada para colocar limites na reconstrução aerodinâmica deste pequeno animal. A nossa interpretação inovadora do bizarro modo de vôo do S. mirabilis é a primeira baseada directamente na interpretação do fóssil e a primeira a ter como base a aerodinâmica.

A tal asa-canard é uma pequena asa que se coloca nalguns tipos de avião à frente das asas principais, e que apresenta nesse tipo de aviões vantagens em relação às tradicionais pequenas asas da cauda. O comentário quanto ao animal ser pequeno é adequado, os autores estimam que pesaria cerca de 4 gramas e meio.

Eis aqui algumas das configurações testadas pelos autores:

A configuração da esquerda (a) é a reconstrução original de Alexander Sharov, (b) é a reconstrução devida a um artigo de Gans et al. (1987), (c) a de um artigo de Wellnhofer (1991), e (d) é o modo que os autores do artigo de Dyke e colegas consideram o mais eficiente. O traço visível à direita da cauda de (b) representa dois centímetros. Os autores referem que o animal conseguiria voar mesmo sem a asa-canard, mas que a presença de uma tal estrutura aumentaria e muito a estabilidade.

Claro que este estudo não prova realmente que o Sharovipteryx voasse assim. É que, como referi, não se sabe se existiriam de facto patágios acima das pernas, e muito menos se existiria algo equivalente a uma asa-canard. É algo a que não se poderá responder sem descobrir mais fósseis deste animal. Quase de certeza que, algures na Quirguízia, existem outros exemplares destes répteis por descobrir. Ou mesmo de outros animais igualmente fascinantes. É que o Sharovipteryx não foi o único vertebrado enigmático descoberto por Alexander Sharov: ele deparou-se com um animal tão ou ainda mais estranho. Mas essa é uma história que terá que ficar para outra contribuição.

Ficha técnica
Imagem de fóssil de Sharovipteryx a partir do trabalho de Alexander Sharov, obtida nas páginas do seu filho Alexei Sharov.
Ilustração cortesia de Arthur Weasley via Wikimedia Commons.

Referências
(ref1) Dyke, G. J., Nudds, R. L. & Rayner, J. M. V. (2006) Flight of Sharovipteryx mirabilis: the world’s first delta-winged glider. Journal of Evolutionary Biology 19, 1040-­1043. doi: 10.1111/ j.1420-9101.2006.01105.x.

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