sábado, outubro 20, 2007

A semana do corvo: as escolhas dos humanos

Nem sempre os corvos da Nova Caledónia parecem assim tão espertos. Mesmo a Betty, perita em improvisar ganchos, continua frequentemente a tentar primeiro com o arame direito, mesmo depois de ter sido submetida à mesma experiência várias vezes. Outras vezes a Betty, depois de fazer um gancho, agarra-o pelo lado errado. Seria fácil encarar isso como evidência de que os corvos não possuem uma compreensão de tipo humano das tarefas que executam. Mas o que é exactamente essa compreensão humana? Como é que os Homo sapiens se comportam no tipo de tarefas que temos visto os Corvus moneduloides a executarem? É aqui que entra a experiência dos chimpanzés de que falei ontem. Quando foi repetida, usando humanos adultos, estes mostraram as mesmas preferências que os chimpanzés. [... ler mais]

O artigo que analisa o lado humano da questão é da autoria de Francisco Silva, Dana Page e Kathleen Silva e foi publicado na revista Learning & Behavior (ref1). Numa tradução livre do resumo:

Examinámos em três experiências a física do dia-a-dia dos humanos (isto é, um conhecimento do mundo físico espontâneo e que ocorre naturalmente ), usando variações de problemas usados para estudar a física do dia-a-dia dos chimpanzés. Confrontados com o problema do tubo e armadilha em duas experiências, os adultos humanos mostraram uma preferência desnecessária para inserirem um pauzinho na extremidade do tubo mais afastada da recompensa, para a empurrarem para fora pela outra extremidade. Quando confrontados com problemas da mesa e armadilha os humanos evitaram, de forma desnecessária, o lado com o buraco. A semelhnaça entre o comportamento de humanos e chimpanzés nestas tarefas ilustra problemas metodológicos e conceptuais nos estudos de física do dia-a-dia dos chimpanzés e sugere explicações alternativas para o seu comportamento.

Neste estudo os investigadores analisaram muitas variantes do problema to tubo, variando a posição relativa do buraco e da recompensa. Isto porque uma explicação para o comportamento observado nos chimpanzés é que eles estariam simplesmente a recorrer à opção que significava deslocar a recompensa pela menor distância possível. Os autores consideraram três variáveis: (1) a presença de uma armadilha ou armadilhas, (2) a presença de uma armadilha ou armadilhas não funcionais, (3) a distância da recompensa à ponta do tubo.

A primeira experiência foi feita com 10 alunos de licenciatura. Em vez de bolachas a recompensa eram M&M's, os tubos eram opacos e nalguns casos nem sequer havia maneira de tirar o M&M. Eis aqui todas as configurações usadas, agrupadas de acordo com as características.

No grupo 1, ou não há armadilha ou a armadilha não interfere na progressão do M&M, que é colocado mais perto de uma das extremidades. No grupo 2 é possível extrair o M&M, colocado no centro do tubo, a partir de qualquer um dos lados. No grupo 3 as armadilhas funcionam, sendo o M&M colocado em várias posições na vizinhança de diferentes extremidades. No grupo 4 o M&M era colocado no meio, num tubo com uma armadilha funcional. O grupo 5 era uma maldade, pois o M&M cairia no buraco, de onde quer que fosse empurrado.

Obviamente que ao contrário dos chimpanzés os humanos não tiveram problemas em retirar os M&M nos grupos 3 e 4. Uma das coisas mais curiosas neste estudo foi que no grupo 5, nove dos dez indivíduos testados empurraram o M&M a partir do lado direito. Isso pode ser talvez explicado porque 8 dos indivíduos eram destros. Mas o que estava realmente em jogo era a estratégia em relação à distância à recompensa. No grupo 2, onde as armadilhas não funcionavam e a recompensa estava no meio, os testandos tentaram tantas vezes de um lado como do outro. No grupo 1 os indivíduos a serem testados escolheram preferencialmente empurrar a partir do lado mais afastado. Esse é o comportamento que a chimpanzé Megan adoptou no estudo de que falei ontem.

Os autores repetiram o teste, só que em vez de tubos e M&M usaram esquemas no papel, e pediram a 24 alunos de licenciatura para os resolverem. À partida não havia razões para resultados diferentes, à excepção talvez do grupo 5. De facto nos grupo 1 o tal comportamento à chimpanzé também se verificou. Curiosamente, no Grupo 2, onde a recompensa estaria no meio, houve uma tendência significativa de empurrar a partir da esquerda, algo que se verificou também no grupo 5. Uma das hipótese que os autores referem, e que é aquela que me ocorreu de imediato, tem a ver como a forma como estes indivíduos estariam habituados a ler, da esquerda para a direita.

Os autores fizeram ainda uma experiência com uma mesa, em que se podia transportar uma recompensa, através de um lado onde havia um buraco, mas demasiado pequeno e onde a recompensa passava sem cair, ou de um lado onde não havia buraco. Em princípio não havia razão para escolher um lado em detrimento do outro, mas em 19 alunos de licenciatura testados, 15 preferiram sempre o lado sem buraco. Isto mais uma vez não significa que os humanos não tenham percebido o problema, significa apenas que em geral somos naturalmente cautelosos. Nós sabemos que as coisas caem dentro de buracos, o buraco parece pequeno, mas para quê arriscar quando do outro lado não há buraco nenhum?

Este estudo mostra que é precisa muita cautela ao interpretar o resultado de experiências com animais. É óbvio que todos aqueles estudantes percebiam como funcionava a armadilha. Isso significa que ao contrário do que assumiram os autores do estudo dos chimpanzés, o comportamento da Megan não pode ser usado como evidência de que ela não percebe o mecanismo causal que faz com que a armadilha funcione (a gravidade).

Ora já falámos de chimpanzés, humanos, e que tal gatos? Amanhã há mais.

Referências
(ref1) Silva, Francisco J.; Page, Dana M.; Silva, Kathleen M. (2005). Methodological-conceptual problems in the study of chimpanzees' folk physics: How studies with adult humans can help. Learning & Behavior 33: 47­58

4 comentários:

João Carlos disse...

E não é que o raio do gato me fugiu pela janela?!... :D

paulu disse...

Estou fascinado com esta série de artigos sobra o corvus moneduloides. Permitam-me que felicite o vosso trabalho.

Não é a primeira vez que sou surpreendido com relatos em torno da inteligência dos corvídeos, mas é a primeira vez que vejo estar envolvido o fabrico de instrumentos. Custa a acreditar.

Reparei que chamam corvo a esta ave em lugar de gralha. Não seria mais correcto chamar-lhe gralha (da Nova Caledónia)? Aliás, corvus moneduloides é um nome aparentemente derivado de corvus monedula, a nossa mais conhecida gralha-de-nunca-cinzenta.

Caio de Gaia disse...

Corvo já tinha sido usada em literatura portuguesa. Poderia perfeitamente ser gralha, que serve para designar qualquer corvídeo em português, mesmo alguns que não pertencem ao género Corvus.

Anónimo disse...

Olha aí, os homens esqueceram-se de um truque no grupo 5... Primeiro empurram o M&M cautelosamente, até ficar perto do buraco, mas não demasiado perto. Depois dão-lhe depressa para que salte para o outro lado. Simples, não (claro, que para os chimpanzés e para os corvos não é, mas eles podem estar a caminhar para tal)?