domingo, outubro 07, 2007

Uma escama longa, insigne mas controversa

De volta ao Triásico e às descobertas de um senhor chamado Alexander Sharov. Se um réptil capaz de vôo planado usando as pernas parece extraordinário, que tal uma criatura do tamanho de um rato, de corpo semelhante a um lagarto, com cabeça com um formato que faz lembrar uma ave, e com estruturas em forma de haste, de 12 centímetros de comprimento, a sairem-lhe do dorso? Pois bem, Sharov encontrou um animal desses, que baptizou de Longisquama insignis. Nos últimos sete anos este animal passou de uma relativa obscuridade para as luzes da ribalta, sendo o pomo de intensa discórdia, com interpretações completamente antagónicas da mesma evidência, e resvalando inclusive para o insulto pessoal mais ou menos velado. É que há quem veja nas estruturas no dorso deste animal os precursores das penas das aves, há quem veja apenas escamas longas, e até há quem diga que seriam hastes de fetos preservadas junto com um réptil. Enfim, quando os cientistas estão em desacordo as coisas podem ficar feias. [... ler mais]

O campo que vê as estruturas como penas publicou o seu ponto de vista num artigo de Terry Jones e colegas na Science em 2000 (ref1). Numa tradução livre do resumo:

Longisquama insignis era um arcossauro pouco usual do Triásico Tardio da Ásia central. Ao longo do seu eixo dorsal o Longisquama apresentava uma série de apêndices integumentares que se assemelhavam em muitos detalhes às penas das aves, em especial na anatomia da região da base. Esta era de tal forma semelhante ao cálamo das penas modernas que cada uma representa provavelmente o culminar de processos morfogenéticos virtualmente idênticos. A relação exacta do Longisquama às aves é incerta. Apesar disso, interpretamos os longos apêndices integumentares do Longisquama como sendo penas não avianas e sugerimos que eles são provavelmente homólogos com as penas avianas. Se assim for, eles precdem as penas do Archaeopteryx, a primeira ave conhecida a partir do Jurássico Tardio.

Eu já referi aqui por diversas vezes que há um certo consenso em que as aves serão dinossauros. Ora consenso não quer dizer unanimidade, há quem não esteja convencido, e algumas das vozes discordantes mais famosas, Alan Feduccia e John Ruben, são coautores deste artigo. Em declarações em comunicados de imprensa na sequência do artigo, Alan Feduccia, e outros autores, defendem que as aves fazem parte de uma linhagem de arcossauros que incluiria o Longisquama, e as semelhanças com os dinossauros terópodes seriam fruto de convergência.

O artigo de Terry Jones e colegas foi obviamente controverso e foi recebido de forma particularmente hostil pelo campo que defende que as aves são dinossauros terópodes. Num artigo de acompanhamento no mesmo número da Science (ref2) Erik Stokstad escreve este parágrafo que resume bem as reacções dos dois campos:
A minoria de cientistas que rejeitam a origem dinossauriana das aves está radiante com a nova descrição do Longisquama. «É quase demasiado bom para ser verdade,» diz Storrs Olson, curador das aves no Smithsonian, e que não contribuiu para o artigo. «Este é um passo maior para compreender a origem das aves que o Archaeopteryx» -- o fóssil com 145 milhões de anos cujos dentes, escamas, e outras características primitvas estabeleceram um laço inequívoco entre as aves e os répteis. A resposta dos defensores dos dinossauros a este novo antepassado não terópode das aves? «Sem sentido.» «Loucura.» «disparate» -- para não mencionar alguns comentários que não se podem reproduzir.

Parte do problema com a hipótese do Longisquama como parente das aves tem a ver com problemas filogenéticos. As afinidades do animal não são claras. Sharov classificou-o originalmente como arcossauriano (como as aves e crocodilos), mas o diagnóstico não é seguro e alguns aspectos do animal sugerem que poderia ser um lepidossauro (como as cobras e lagartos). O texto de Erik Stokstad refere mais adiante algo a este respeito:
Para Padian, o Longisquama é a última gota. "Se pensam que é daqui que as aves vêm, onde está a vossa análise cladística?" pergunta ele. »Onde está a vossa falsificação das dezenas de cladogramas que colocam as aves no meio dos dinossauros terópodes?»

Ao que o outro campo responde:
Não é preciso, diz Martin. «Não temos que fazer nenhum cladograma. Podemos dizer-vos desde já que todas as características que encontrámos no exemplar são consistentes com o parentesco com as aves.» E quanto aos muitos cladogramas que demonstram a origem dinossauriana das aves, Martin defende que eles estão semeados de características baseadas em anatomia errónea, ou noutras palavras, «se entra lixo, sai lixo» numa escala gigantesca.

Como podem ver não há entendimento possível entre estes senhores. Mesmo a identificação das estruturas como penas permanece controversa. Voltarei a este tema na próxima contribuição. Para já deixo-vos com o último parágrafo do artigo de Erik Stokstad, que corresponde ao que eu penso sobre toda esta questão:
Mas mesmo os paleontólogos que recusam qualquer ligação entre o Longisquama e a origem das aves continuam a considerá-lo um fóssil intrigante. «Onde quer que o Longisquama caiba na árvore da vida, é um réptil notável de um período extremamente interessante na história dos vertebrados», diz Holtz. Prum salienta que nenhum animal moderno possui semelhante escamas membranosas e longas. Mesmo que não tenham nada que a ver com penas, diz ele, «estas estruturas são bastante bizarras e fascinantes. Quero saber o que são.»

Podem ver uma reconstituição da cabeça deste animal da autoria de Matt Celeskey nestas páginas do Hairy Museum of Natural History.

Ficha técnica
Imagem de fóssil de Longisquama a partir do trabalho de Alexander Sharov, obtida nas páginas do seu filho Alexei Sharov.

Referências
(ref1) Terry D. Jones, John A. Ruben, Larry D. Martin, Evgeny N. Kurochkin, Alan Feduccia, Paul F. A. Maderson, Willem J. Hillenius, Nicholas R. Geist, and Vladimir Alifanov (2000). Nonavian Feathers in a Late Triassic Archosaur. Science Vol. 288. no. 5474, pp. 2202 - 2205. DOI: 10.1126/science.288.5474.2202.
(ref2) Erik Stokstad (2000). Feathers, or Flight of Fancy? Science Vol. 288. no. 5474, pp. 2124 - 2125. DOI: 10.1126/science.288.5474.2124

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