sexta-feira, outubro 12, 2007

A candura das presas

A imagem ao lado mostra dois cavalheiros vestidos com uma fantasia animal. Não se trata de nenhum jogo, nem de nenhuma partida, trata-se de trabalho científico muito sério. Eu falei aqui, há algum tempo atrás, do trabalho que investigadores de uma universidade brasileira faziam para habituar emas, criadas em cativeiro, aos predadores que iriam encontrar se libertadas num meio natural. Vou voltar a essa questão mas de um outro prisma: o que sucede quando predadores voltam a áreas de onde tinham desaparecido? Uma situação desse tipo está a acontecer no Parque de Yellowstone, no Estados Unidos, com a reintrodução dos lobos e com a expansão da população de ursos pardos. Uma das espécies afectadas é o alce (espécie Alces alces) e é dessa criatura que Joel Berger e colega estão disfarçados. O disfarce permitia-lhes aproximarem-se dos animais e lançarem-lhes bolas de neve ensopadas em urina humana, de lobo, e de urso. Claro que a imprensa pegou sobretudo no aspecto algo folclórico e deu pouca importância à investigação em si. Os investigadores chegaram a ser convidados a aparecer, vestidos de alce, em programas televisivos, mas recusaram, pois não lhes era dado tempo suficiente para estabelecerem a seriedade do trabalho que faziam. [... ler mais]

Esta pesquisa foi publicada num artigo de Joel Berger, Jon Swenson, e Inga-Lill Persson na revista Science (ref1). Numa tradução livre do resumo:

A extinção actual de muitos dos grandes carnívoros terrestres deixou muitas das espécies-presa existentes sem conhecimento de predadores contemporâneos, uma situação que tem paralelo à de 10,000 a 50,000 anos atrás, quando animais ingénuos encontraram pela primeira vez caçadores humanos coloizadores. Ao longo das frentes modernas de recolonização por carnívoros, os ursos castanhos (também chamados pardos) matam alces adultos ingénuos a taxas desproporcionalmente elevadas na Escandinávia, e mães alces que perderam crias para os lobos recolonizadores na região de Yellowstone na América do Norte desenvolveram hipersensibilidade aos uivos dos lobos. Embora as presas, que não tinham tido contacto com predadores durante a 50 a 130 anos, fossem altamente vulneráveis aos encontros iniciais, ajustes comportamentais para reduzir a predação surgiram apenas numa única geração. O facto de pelo menos uma espécie-presa ter aprendido rapidamente a ter cuidado com os carnívoros reintroduzidos deve mitigar medos relativos à extinção localizada de presas.

Há vários pontos neste estudo que merecem um tratamento mais detalhado. Os autores escolheram locais na Escandinávia, Alasca e na região do Yellowstone, onde podiam encontrar três tipos de populações: (i) populações livres de predadores, (ii) populações não habituadas a predadores mas que enfrentavam uma recolonização nos seus territórios por predadores, e (iii) populações em locais onde alces e lobos coexistiam há muito tempo.

Os autores submeteram os alces a toda uma série de estímulos, por exemplo os auditivos. Vestidos de alce, os autores passavam gravações de vários sons aos animais. Como controlo, verificaram que ao passarem ruído de água a correr não havia diferenças no comportamento de alces habituados e não habituados. Contudo, quando passavam sons de lobos, havia um aumento de 250% nos comportamentos de vigilância nos alces do Alasca habituados a predadores, relativamente a grupos, também do Alasca, mas habituados a viverem em regiões sem lobos. Curiosamente, os alces das regiões onde coexistem há muito com predadores são sensíveis a um outro estímulo auditivo: os crocitares de chamamento dos corvos quando encontram carcaças de animais mortos. Os alces que viviam em regiões com experiência prolongada no contacto com predadores mostravam uma resposta seis vezes maior a esses chamamentos em relação aos animais ingénuos. Faz sentido pois os bandos de corvos estão muitas vezes ligados a ursos e lobos.

A diferença entre animais ingénuos e habituados era também patente na resposta a estímulos olfativos. Aqui entra mais uma vez aquela história do disfarce de alce. Os autores fizeram 70 tentativas em que lançavam urina de lobo no meio de alces ingénuos, e em nenhuma delas os animais abandonaram o local. Aliás em 16% dos casos os alces ingénuos aproximavam-se mesmo dos odores. Os alces habituados nunca o faziam. Quando enfrentam lobos ou ursos, os alces baixam a cabeça, recolhem as orelhas, e erguem os pêlos do pescoço. Os alces habituados reagiam desta forma em 47% das vezes em que eram confrontados com os odores. Apenas em 11% dos casos é que os alces ingénuos mostraram comportamento agressivo quando confrontados com estímulos olfativos.

Como dá para perceber a resposta dos alces aos predadores é em grande parte aprendida, não é uma coisa inata. As populações sem contacto "esquecem" o que devem fazer. Isso vê-se claramente nas taxas de predação. Nas regiões em que entram em contacto com populações ingénuas os ursos têm um sucesso muito maior no que se refere à captura de alces adultos. Os autores referem, por exemplo, que numa região de Yellowstone, onde alces e ursos coexistem desde 1880, não há registos de alces adultos mortos por ursos de 1959 a 1992. Noutra região de Yellowstone, onde só recentemente começaram a aparecer ursos, 10 alces adultos foram mortos por ursos entre 1996 e 2000.

Mas após a fase vulnerável do impacto inicial, os alces mostraram ser capazes de reagir. As mães alces, em zonas onde a presença de predadores era algo recente, e que tinham perdido crias para lobos, mantinham-se muito mais vigilantes (aumento de 500%) no ano seguinte e escolhiam outros locais para darem à luz as suas crias. Desenvolviam também uma sensibilidade extrema aos uivos dos lobos, muito mais que animais de zonas onde os alces e lobos nunca deixaram de coexistir. Uma geração não foi no entanto tempo suficiente para os animais aprenderem a recear o cheiro a urina dos lobos e ursos, nem o crocitar dos corvos. Mas a reacção dos alces é encorajadora, pois os autores receavam um cenário de extinção generalizada, tal como tinha sucedido quando os caçadores humanos invadiram continentes como a Austrália e as Américas onde os animais não os temiam.

A situação no caso dos alces é apesar de tudo algo diferente da que sucedeu com os seres humanos. Os homens caçavam tudo, machos e fêmeas, juvenis e adultos. Embora lobos e ursos matem alces adultos, os alvos primordiais são sobretudo os juvenis e as crias. Isso permite aos adultos, após um contacto inicial com mortalidade elevada, ajustarem os comportamentos de uma época de procriação para a seguinte. Claro que os alces mostraram também serem animais relativamente adaptáveis e espertos, e é possível que os animais que se extinguiram no contacto com os humanos tivessem mais dificuldade nesses aspectos.

Um artigo recente mostra um desenvolvimento curioso nesta adaptação dos alces aos predadores. É a tal referência às estradas que tinha anunciado na contribuição anterior, e de que falarei amanhã. Deixo-vos para já com uma imagem que ilustra bem o tamanho destes animais:

Ficha técnica
Imagem cortesia de Dieter Wirz via Wikimedia Commons.

Referências
(ref1) Berger, J., J. E. Swenson, and I. Per-Illson (2001). Re-colonizing Carnivores and Naive Prey; Conservation Lessons from Pleistocene Extinctions. Science 291:1036-1039. DOI:10.1126/science.1056466.

2 comentários:

João Carlos disse...

Ficou de fora a questão da proximidade com humanos... as rodovias, lembras?...

Quais as diferenças de comportamento entre os realmente selvagens e os re-introduzidos?...

Caio de Gaia disse...

Como digo no último parágrafo as rodovias ficam para amanhã. É um artigo do mesmo autor, só que quando me preparava para colocá-lo encontrei essa foto do disfarce de alce e decidi falar desse estudo mais antigo.

Todos os animais são selvagens. Só que nalgumas zonas lobos e ursos foram caçados até à extinção. Os animais que estão a ser reintroduzidos provêm de populações selvagens.