quinta-feira, setembro 20, 2007

Quando o tubarão ataca

Este tubarão a ser retirado da água e pesado pelos humanos sorridentes é ironicamente um dos famigerados "comedores de homens". Como podemos ver a designação é enganadora pois estas criaturas têm muito mais a temer dos humanos do que os humanos delas. Trata-se de um tubarão tigre, de seu nome científico Galeocerdo cuvier, espécie em que os adultos podem ultrapassar os 4 metros de comprimento e os 900 kg de peso. O tubarão tigre não é esquisito com o que come, e se não despreza um ser humano de vez em quando, peixes, tartarugas, aves e mamíferos marinhos também fazem parte da sua dieta. Na verdade, chega mesmo a ingerir coisas que de alimento não têm nada, tais como latas e botas, o que leva a que por vezes seja designado como o caixote de lixo do mar. Embora os roazes corvineiros não façam parte da dieta habitual destes tubarões, os golfinhos têm que ter alguma cautela quando eles estão nas redondezas. Aviso desde já que o que se segue é uma história triste, envolvendo um tubarão, um golfinho bebé, e a dor de uma mãe.[...ler mais]

O artigo que descreve o ataque de um tubarão tigre a um golfinho bebé é da autoria deMann e Barnett e foi publicado na revista Marine Mammal Science (ref1). Vamos então aos factos:

Entre as 15:30 e as 15:35 no dia 19 de Março de 1994, Hobbit, um golfinho com 110 dias foi atacado por um tubarão perto da costa de Monkey Mia (uma estância de pesca) em Shark Bay, no oeste da Austrália. Hobbit era a filha de Holeyfin, uma das fêmeas que visitavam diariamente a costa em busca de sobras de peixe e para contacto com os pescadores e turistas.

Cerca de hora e meia após o ataque os autores recolheram o cadáver de Hobbit para uma autópsia e dedicaram-se a reconstituir o ataque recolhendo informações das pessoas presentes:
Pelo menos uma dúzia de pessoas testemunharam o ataque inicial, que ocorreu a aproximadamente 70 metros da costa em 5 metros de água. Cinco testemunhas, escolhidas por causa da sua capacidade em identificar todos os golfinhos que visitam a praia, (um operador turístico, dois funcionários das estância, e dois turistas) foram entrevistados separadamente durante o período de um dia que se seguiu ao acontecimento.

Estavam presentes na praia mais quatro golfinhos, Nic (filha adulta de Holeyfin), Nak (filho de Nic com 108 dias), Sur (uma fêmea adulta), e Fin (filho de Nic com 47 meses). A partir dos relatos das testemunhas foi possível reconstituir a sequência de acontecimentos.
Por volta das 15:35 Holeyfin saiu a grande velocidade da praia na direcção de Hobbit. Foi seguida poucos segundos depois por Sur, Nic, e Fin. Todas as cinco testemunhas concordaram em que esses golfinhos rapidamente sairam disparados na direcção de Hobbit. Dois observadores estavam seguros que Nak, a cria, ficou perto da costa. Calcula-se que Holeyfin estivesse a pelo menos 70 metros de Hobbit quando o ataque começou. Ninguém viu sangue ou evidência do ataque até Holeyfin e os outros chegarem ao local onde Hobbit foi atacada. Momentos depois, as testemunhas viram os golfinhos a debaterem-se e uma barriga de golfinho ou de tubarão arqueada e a rolar para fora da água. Foi abservado que pelo menos um golfinho adulto e a Hobbit tiveram contacto corporal com o presumível tubarão. Hobbit foi lançada para fora de água a esguichar sangue, do que resultou uma enorme mancha na água. A comoção cessou e Hobbit ficou a flutuar à superfície.

Os autores do artigo observaram então o comportamento da mãe, que permaneceu junto à cria, já morta.
Holeyfin permaneceu a menos de 2 metros de Hobbit até às 15:59. Ela tocou e empurrou, a aproximadamente cada 30 segundos, repetidamente para cima a Hobbit que flutuava na água. Às 15:56 ela empurrou Hobbit para o fundo marinho e manteve-a lá durante alguns segundos. Apesar de termos hidrofones na água, podíamos ouvir o assobiar alto e contínuo pela Holeyfin cada vez que ela aparecia à superfície ou passava perto do barco.

Mas a mãe não se encontrava sozinha. O tubarão pelos vistos não tinha desistido, e uma barbatana surgia de vez em quando nas imediações.
Às 16:21 um tubarão nadou na direcção de Hobbit e Holeyfin rapidamente perseguiu o tubarão, permanecendo menos de um metro atrás do tubarão durante aproximadamente 20 metros.
O tubarão era um pouco mais pequeno que a Holeyfin que tinha cerca de 2 metros de comprimento e os autores identificaram-no como sendo um tubarão-tigre. A Holeyfin manteve-se perto da cria descrevendo círculos a menos de 20 metros do corpo até que os autores do artigos o retiraram da água às 17:07 para determinarem a causa da morte. Não é uma imagem bonita:

Aquela ferida na barriga é arrepiante. As marcas dos dentes indicam que o tubarão tigre que a Holeyfin perseguiu podia muito bem ser o assassino. A partir das dimensões da mordida na barriga foi possível determinar que o autor da dentada seria um tubarão tigre de 170 a 200 centímetros de comprimento. Os autores sugerem que o tubarão começou por arrancar a barbatana caudal da Hobbit, cujos assobios alertaram a mãe e os outros golfinhos. Só quando os outros golfinhos chegaram é que o tubarão teria mordido a barriga, o que explicaria só então ter sido visto o sangue. O ataque pode ter sido facilitado pelo estado de saúde da pequenita. A Hobbit era bastante mais franzina que o seu sobrinho Nak, apesar de ser uns dias mais velha, e apresentava já há algum tempo algumas chagas e padrões de comportamento que indicavam que estaria em condições algo precárias. A autópsia revelou que ela tinha broncopneumonia.
Estas observações fornecem evidência clara de que os golfinhos selvagens tentam defender outros contra os ataques de tubarões. Observações do ataque inicial sugerem que vários golfinhos intervieram, apesa de demasiado tarde. Após o ataque, Holeyfin permaneceu com a Hobbit e perseguiu e expulsou do local o mesmo ou um outro tubarão.

O comportamento da mãe, empurrando a cria para a superfície é comum nos golfinhos como resposta a ferimentos ou morte de crias e voltarei a falar nisso em contribuições futuras. A perda da cria teve repercussões no comportamento posterior Holeyfin. Depois disso, passou grande parte do tempo com o seu neto Fin (50% quando comparado com 3% antes da morte da Hobbit). Além disso, ela que quase não assobiava antes da morte da Hobbit, assobiou de forma quase contínua no dia do ataque e no que se seguiu.

Apesar de no caso da Hobbit o estado debilitado ter possivelmente propiciado a morte da cria, os autores do artigo referem estudos que mostram que as mães, que têm por hábito procurar sobras de peixe junto de humanos, apresentam taxas de mortalidade mais elevadas das crias com menos de um anos. A companhia dos seres humanos em geral só traz problemas às criaturas selvagens.

Ficha técnica
Fotografias do tubarão tigre tiradas por James P. McVey do NOAA Sea Grant Program, obtidas aqui e aqui.

Referências
(ref1) Mann J., Barnett H. (1999). Lethal tiger shark (Galeocerdo cuvieri) attack on bottlenose dolphin (Tursiops sp.) calf: defense and reactions by the mother. Marine Mammal Science 15(2):568-575.

1 comentários:

João Carlos disse...

Sabe o que estive observando?... Que os golfinhos (e os cetáceos, em geral) têm uma certa propensão a se tornarem "domésticos", a exemplo do cães.

Deixados quietos em seus ambientes naturais, são bichos ferozes que trabalham em bandos ("cardumes", se é que é o termo certo, e "matilhas"). E ambas as espécies, mesmo quando "domesticadas" têm comportamentos surpreendemente "selvagens". Eu já criei uma matilha de Huskies que, com humanos, eram cães adoravelmente mansos. Mas costumavam fugir todas as noites e atacavam galinheiros e rebanhos de cabras.

Eu sempre gostava de saber o que se passa nas idéias desses animais...