sábado, setembro 15, 2007

Morrer em agonia

Posição do corpo em que a cabeça, o pescoço e a coluna vertebral formam um arco côncavo para trás, apoiando-se o doente na cabeça e nos calcanhares. Resulta da contracção sustentada dos músculos posteriores do pescoço e do tronco, por ex. em doentes com tétano ou na intoxicação pela estricnina.

Segundo o glossário dos Médicos de Portugal, esta é a definição de opistótono. Ora o opistótono não ocorre apenas nos humanos. É também muito comum em fósseis de aves e outros dinossauros, tal como o famosos fóssil articulado de Archaeopteryx lithographica na imagem. Notem a postura com o pescoço encurvado para trás. Pois é, trata-se de um opistótono. Embora a definição nos faça pensar em agonia, a quase totalidade dos autores atribuíam a curvatura dorsal do pescoço dos achados dinossaurianos, não aos estertores de um animal moribundo, mas sim a algum tipo de efeito após a morte. É até bastante comum livros de divulgação incluirem uma chamada de atenção para as "falsas poses de agonia". [... ler mais]

Esta postura é descrita numa exposição do Museu Americano de História Natural sobre a biomecânica dos saurópodes nestes termos:
Quando encontrados, muitos fósseis de dinossauros mostram uma pose estranha: os seus pescoços estão dobrados para trás de forma dramática. Vendo esta postura, os primeiros peritos em dinossauros concluiram que os animais poderiam manter os seus pescoços dessa forma em vida. Mas parece mais provável que a postura reflicta algo que aconteceu após a morte do animal.

E que coisa após a morte seria essa? Ainda do mesmo local:
Um cordão de tecido elástico ajuda a suportar os pescoços da muitos animais. Esta banda, ou ligamento, pode esticar até quase o dobro do seu comprimento quando o pescoço se estende, e relaxa quando o pescoço está no seu estado neutro. Após a morte do animal, os músculos do pescoço afrouxam, os ligamentos encolhem e o pescoço endireita-se ou dobra-se para trás.

Esta é a explicação com que eu estava familiarizado: o cadáver é exposto, os ligamentos secam e puxam os ossos. Como foi dito, esta postura é muito comum em fósseis de aves e dinossauros. Já que na última contribuição referi o Compsognathus longipes, eis aqui uma reprodução de um dos fósseis. da espécie, encontrado na mesma localidade de produziu o arqueopterix.

Este fóssil é também um opistótono. Ora alguém decidiu fazer uma série de experiências para ver se a tal coisa dos ligamentos secarem eram mesmo explicação para a chamada pose de morte. Alguns comunicados de imprensa classificaram esse trabalho como sendo "ciência de cozinha." As cozinhas desses repórteres serão de evitar já que uma das experiências consistiu em deixar duas aves apodrecerem em cima de uma bancada durante vários meses.

O trabalha sobre opistotonia foi levado a cabo por Cynthia Marshall Faux e por Kevin Padian, e foi publicado na revista Paleobiology (ref1). Numa tradução livre do resumo:
Uma postura extrema, com hiperextensão dorsal da coluna vertebral (opistótono), caracterizada pelo crânio e pescoço curvados para trás, e forte extensão da cauda, é observada em muitos esqueletos articulados e bem preservados de amniotas (aves e outros dinossauros, pterossauros, e pelo menos mamíferos placentários). Transporte após a morte num meio aquático pode explicar alguns casos de curvatura espinal em tetrápodes fósseis, mas nós mostramos como esses casos se podem distinguir das causas da postura opistótona, que é um síndroma biótico.

Uma pose muito comuns em fósseis, por exemplo de peixes e lagartos, é o arquear lateral. Essa outra postura tem também um nome complicado. É chamada de pleurotótono, e é explicada em muitos casos pelo movimento da água que arrasta as extremidades e leva ao arquear do corpo.
Explicações bióticas tradicionais envolvem quase sempre causas após a morte, que incluem o rigor mortis, a dessecação, e a contracção de tendões e ligamentos. Contudo, a examinação do processo de rigidez cadavérica e observações experimentais da salinidade e dessecação em carcaças de animais modernos mostram ques estas explicações da postura do "pássaro morto" (opistótono) explicam poucos ou nenhuns dos casos. A contracção diferencial dos ligamentos cervicais após a morte também não produz a postura opistótona. Não é a contracção após a morte mas sim os espasmos na proximidade da morte, que resultam de vários traumas do sistema nervoso central que causam estas posturas extremas. Isto é, o opistótono é o resultado dos "estertores da morte", não de processos após a morte, e os indivíduos assim afectados assumem a postura antes da morte, não depois.

As experiências consistiram em deixar apodrecer cadáveres de aves e verificar que após a morte os pescoços não se mexiam, e mesmo o uso de alfinetes em bifes deixados a secar. Em nenhum caso se observou contracção assimétrica devido ao secar de tendões e ligamentos. A tal "ciência de cozinha." Este é um corte radical com o saber tradicional.
A literatura clínica reconhece desde há muito tempo que os indivíduos afligidos dessa forma pereceram por asfixia, falta de alimento ou nutrientes essencias, toxinas ambientais, ou infecções virais, entre outras causas. Aceitar que as causas reais do opistótono são anteriores e não posteriores à morte fornece-nos um vislumbre nas causas de morte dos espécimes fossilizados, e permite rever interpretações das condições paleoambientais de muitos depósitos de fósseis. O opistótono diz-nos mais sobre as circunstâncias que cercaram a morte do que sobre o que sucedeu após a morte.

Sabe-se que muitos destes esqueletos articulados resultam de mortes na sequência de erupções vulcânicas e é asim razoável admitir um cenário de morte por asfixia devido a fumo ou cinzas. Os autores fazem um uso desta descoberta para inferir algo sobre a fisiologia dos dinossauros:
Finalmente, o opistótono parece ter um significado filogenético: até agora foi relatado na sua totalidade em arcossauros ornitodiranos (dinossauros e pterossauros) e nos mamíferos placentários, embora a distribuição nos mamíferos se possa expandir com estudos posteriores. Parece relevante que o opistótono só tenha sido observado extensivamente em clados de animais que se sabe ou se pensa possuirem taxas metabólicas elevadas: a hipóxia e doenças relacionadas afectariam mais provavelmente animais com elevado consumo de oxigénio.

O mecanismo que os autores propõem é que o cerebelo dos animais com elevado consumo de oxigénio, ou seja animais de sangue-quente (endotérmicos), é mais sensível à privação de oxigénio que o cerebelo de animais de baixo metabolismo, habituados a baixos valores de oxigénio de forma regular. A postura com o pescoço arqueado dorsalmente seria assim mais uma evidência de que os dinossauros e pterossauros seriam animais endotérmicos.

Devo confessar que se os autores me convenceram quanto a pose do pescoço encurvado dorsalmente ser devido aos estertores anteriores à morte, a relação com a taxa metabólica precisa de mais trabalho. Entre outras coisas há a questão da postura. Se eu matar um cavalo (não que o tenha feito) ele cai de lado, se matar um lagarto ele aterra de barriga. Os espasmos num lagarto terão assim, na maior parte das vezes, que lutar contra a gravidade. Os resultados quanto aos vários grupos de mamíferos são também um pouco ambíguos. Enfim, há ainda alguns aspectos por esclarecer mas o trabalho parece-me sólido.

Ficha técnica
Imagem do arqueopterix obtida a partir da publicação indicada como abaixo como ref2.
Compsognato cortesia de user:Ballista da Wikimedia Commons.

Referências
(ref1) Cynthia Marshall Faux and Kevin Padian (2007). The opisthotonic posture of vertebrate skeletons: postmortem contraction or death throes? Paleobiology, 33(2), pp. 201-226. DOI: 10.1666/06015.1
(ref2) Owen, Richard (1863). On the Archeopteryx of von Meyer, with a decription of the Fossil Remains of a Long-tailed species, from the Lithographic Stone of Solenhofen. Philosophical Transactions of the Royal Society of London, vol. 153 (1863), pp. 33-47.

1 comentários:

Bárbara disse...

Vim à net aflita tentando procurar algo que me dissesse o porquê da minha gatinha, que morreu há dois dias de queda após alguma agonia, dois ou três antes de ter parado de respirar ter tido um arqueamento enorme da coluna e do pescoço para trás, um espasmo enorme que se prolongou não mais do que dez segundos, tendo assumindo depois a sua posição normal! Através deste blogue descobri o opistótono que não mais nem menos o que aconteceuà minha gata poucos momentos antes de morrer!