terça-feira, setembro 18, 2007

De canibal a caçador de crocodilos

Embora os museus e as revistas e livros de divulgação tenham respondido com entusiasmo à ideia de um Coelophysis bauri canibal, no meio científico reinou algum cepticismo desde o início. A dúvida começou a manifestar-se de forma mais visível já neste século, quando os dois exemplares foram reexaminados e alguns autores, em publicações para o grande público, e em apresentações em encontros científicos, colocaram em causa a interpretação dada por Colbert aos achados. Para que se possa falar em canibalismo, há um certo número de factores que têm que ser observados. Em primeiro lugar, os restos das presas têm que estar dentro da cavidade abdominal do animal que se assume ser o predador, ou pelo menos numa posição aproximada, e não podem exceder o volume provável do estômago. De preferência, esses restos deverão mostrar evidência da acção de sucos digestivos. Pará além disso, os vestígios das presas têm que possuir características que permitam um diagnóstico inequívoco. Os achados de Coelophysis bauri não cumprem estes requisitos, embora tenha sido necessário esperar até 2006 para que isso fosse mostrado de forma conclusiva num artigo científico. [... ler mais]

O artigo que desmistifica o canibalismo do Coelophysis bauri é da autoria de Nesbitt e colegas e foi publicado na revista Biology Letters (ref1). Numa tradução livre do resumo:

É rara no registo fóssil a evidência directa da escolha de presas em dinossauros carnívoros. O exemplo mais celebrado pertence ao suposto conteúdo do estômago do dinossauro carnívoro Coelophysis bauri, que para lá de revelar a escolha da presa também aponta para que o comportamento canibalístico seja uma ocorrência comum. Testamos aqui essa hipótese conduzindo exames anatómicos e histológicos detalhados dos famosos Coelophysis "canibais".

Os autores começaram por notar que num dos supostos canibais encontraram de facto restos de uma refeição dentro de cavidade abdominal do Coelophysis, que tudo leva a crer não se rompeu e assim permaneceu intacta antes e após o animal ter sido enterrado pelos sedimentos. Este exemplar cumpre assim um dos requisitos para que se possa eventualmente tratar de canibalismo. Para ver se os outros requisitos são cumpridos, é preciso então considerar o conteúdo dessa zona, indicada pelo tracejado na imagem abaixo:

A amarelo destacam-se alguns dos fragmentos ósseos que representarão uma provável refeição e que possuem carácter diagnóstico, isto é, que possuem detalhes que permitem distinguir os Coelophysis de outros vertebrados.
Os resultados mostram inequivocamente que o conteúdo do aparelho digestivo provém de crocodilomorfos primitivos e não de juvenis do Coelophysis. Estas descobertas sugerem que este táxon não é canibalístico e colocam em causa que este fosse um comportamento comum entre os dinossauros não avianos.

Como vimos na contribuição anterior o termo inequívoco pode causar equívocos, mas este trabalho é bastante convincente. Os autores compararam os fragmentos de ossos encontrados nas entranhas do Coelophysis com os do próprio e com os deste bicho, um crocodiliano, o Hesperosuchus gracilis.

Este animal viveu no mesmo local ao mesmo tempo que os Coelophysis. Ora eis aqui a comparação.

À esquerda temos vistas de três ângulos diferentes da mesma extremidade proximal de um fémur direito de um Hesperosuchus. À direita temos as correspondentes vistas para um Coelophysis. No meio mostra-se a estrutura equivalente encontrada no estômago do Coelophysis. Notem que não existe grande ambiguidade na escolha. A associação foi ainda confirmada por uma análise da estrutura do osso que não deixou grandes dúvidas. Este fóssil não é evidência de canibalismo mas sim de um caçador de crocodilos juvenis.

Será este o fim da Coelophysis Madonna? Talvez não. Demonstrar o canibalismo em espécies extintas é um pouco como ganhar na lotaria. Os Coelophysis bauri poderiam perfeitamente ser canibais, só que o canibalismo providenciaria seguramente uma parte muito pequena da sua dieta, o que significa que a probabilidade de encontrar um tal exemplo é muito reduzida. Mas se bem se lembram, coisas mais improváveis já aconteceram na paleontologia, afinal quem julgaria possível encontrar um fóssil de um réptil com duas cabeças?

Ficha técnica
Cabeça de Coelophysis bauri cortesia de John Conway via Wikimedia Commons.
Hesperosuchus gracilis cortesia de Arthur Weasley via Wikimedia Commons.

Referências
(ref1) Nesbitt, S. J., Turner, A. H., Erickson, G. M., and Norell, M. A. (2006). Prey choice and cannibalistic behavior in the theropod Coelophysis. Biology Letters. doi:10.1098/rsbl.2006.0524.

1 comentários:

João Carlos disse...

Demonstrar o canibalismo em espécies extintas é um pouco como ganhar na lotaria.

Ah!... Eu prefiro apostar na lotaria. Me parece bem mais fácil... Os números do bilhete, pelo menos, não estão apagados e enterrados debaixo de sei-lá-quantas camadas de sedimentos. Os indícios eram bem sugestivos, há que conceder...