sexta-feira, setembro 21, 2007

A dor de uma mãe


Numa ocasião foi visto um cardume de golfinhos, grandes e pequenos, e dois dos golfinhos ligeiramente atrás foram vistos a nadar por baixo de um pequeno golfinho morto quando este se estava a afundar, e a suportarem-no nas suas costas, tentando por compaixão prevenir que fosse devorado por um qualquer peixe predador.

Este é um excerto do livro nono da «História dos Animais» de Aristótoles (384 AC - 322 AC). É a primeira referência escrita que se conhece ao chamado comportamento epimelético nos golfinhos. Este termo complicado significa que prestam ajuda a indivíduos doentes ou feridos. A forma mais comum de assistência é apoiar um animal por forma a que ele chegue à superfície. Tal como no caso descrito por Aristóteles, muitas vezes os golfinhos prestam assistência a golfinhos que estão mortos. Eu referi na minha última contribuição um exemplo, no roaz-corvineiro (Tursiops truncatus), envolvendouma mãe e a sua cria morta por um tubarão. Esta imagem mostra um outro caso descrito na literatura. O animal a flutuar de barriga para cima, um roaz corvineiro com cerca de dois anos, está morto. À direita na imagem vê-se uma coisa escura na região da axila do animal morto. É a barbatana dorsal de um outro roaz-corvineiro, atarefado a empurrar o cadáver contra a corrente. [... ler mais]

Este exemplo é descrito num artigo de Fernando Félix num dos volumes do Investigations on Cetacea (ref1).
No dia 4 de Dezembro de 1991, acompanhado pelo Senhor Jake León, estava a observar um grupo de roazes corvineiros que se alimentavam na baía do canal de Puná Vieja, na Ilha de Puná no estuário do rio Guayas, no Equador. Após permanecer duas horas com o mesmo grupo de golfinhos que observámos de perto, chamou-nos a atenção um golfinho morto a flutuar a cerca de 200 metros de distância. Deixámos o grupo para inspecionar o animal. Quando nos dirigíamos a ele, vimos outro golfinho que o estava a empurrar contra a corrente de maré e na nossa direcção. O golfinho morto era uma fêmea imatura de cerca de 2 metros de comprimento, talvez com 2 a 3 anos de idade.

A imagem no início da contribuição refere-se a esta cena. Os autores descrevem em seguida o estado do cadáver:
O corpo estava completo mas ligeiramente inchado e emanava o cheiro de decomposição. Partes dos intestinos pendiam da fenda anal-genital. A barbatana dorsal, as barbatanas laterais e as barbatanas da cauda estavam presentes. Em vários locais onde a pele tinha desaparecido era visível a camada de gordura. Não eram visíveis ferimentos externos. Julgando a partir da condição externa presumimos que o golfinho teria morridos dois a três dias antes.

Os outros golfinhos nas redondezas não prestavam grande atenção ao esforçado animal nem ao cadáver, e nenhum tentou ajudá-lo. O apego do animal em questão, um adulto que os autores designam por No. 271, ao cadáver eram extraordinário:
Desde o início que tentámos não interferir, pensando que o golfinho morto teria possivelmente vindo a flutuar, e que teria atraído o curioso No. 271 e que seria abandonado em breve. Contudo, o No. 271 continuou a carregar o golfinho morto e decidimos olhar de mais perto para examinar o corpo com mais atenção. Mas, de cada vez que tentávamos aproximar-nos do corpo, o No. 271 interferia, colocando-se entre a lancha e o corpo, frequentemente com a cabeça fora de água, olhando e virando-se rapidamente, batendo com a cauda, possivelmente um comportamento de ameaça; voltava então ao corpo, empurrando-o para baixo com força, para lá do nosso alcance.

Eis aqui uma imagem do golfinho a tentar afastar o corpo do animal morto dos incómodos seres humanos:

O autor e o seu acompanhante tentaram pelo menos dez vezes apossar-se do cadáver mas o defensor reagiu sempre da mesma forma e eles acabaram por desistir. Após 50 minutos em que observaram o animal persistir nos seus esforços, transportando o cadáver contra a corrente, acabaram por partir. Voltaram no dia seguinte mas não havia golfinhos no local.

O autor não conseguiu determinar a partir das suas observações o sexo do animal que estava a empurrar a fêmea morta, nem o grau de parentesco. As crias dos roazes corvineiros permanecem junto às mães de 3 a 6 anos, pelo que dada a idade provável do animal morto seria possível que se tratasse da mãe. A agressividade dirigida aos humanos que tentavam aproximar-se, e as tentativas de afastar o corpo da jovem fêmea, mostram um comportamento protector bem desenvolvido em relação à suposta cria. O impressionante nesta história é que continuou a prestar cuidados ao cadáver mesmo quando a decomposição já ia avançada, mas mesmo isso não é caso único.

Encontrei na internet uma descrição algo semelhante à anterior, se bem que o artigo ainda não tenha sido publicado. Existe no entanto um rascunho da autoria de Giovanni Bearzi do Tethys Research Institute. Neste caso, observado nos dias 3 e 4 de Julho de 2007, observado por Joan Gonzalvo Villegas e Zsuzsanna Pereszlenyi no golfo de Amvrakikos na Grécia, os intervenientes foram uma fêmea e a sua cria nascida morta. Estes autores são bastante mais emotivos na forma como descrevem a experiência. Nas palavras de Giovanni Bearzi:
Embora os investigadores devam evitar ser guiados pelos seus sentimentos e devam evitar fazer interpretações arbitrárias, neste caso era bastante claro que a mãe estava angustiada. Ela parecia incapaz de aceitar a morte,e comportava-se como se houvesse uma esperança de salvar a sua cria.

O autor refere que os gritos da mãe e o desespero aparente na forma como tocava na cria com o rosto e com as barbatanas peitorais foram uma experiência chocante para os tripulantes da embarcação. Mais uma vez os outros golfinhos não prestaram grande atenção à ocorrência. A mãe estava só no seu desgosto, e nos dois dias em que a observaram os investigadores não a viram a alimentar-se. Os autores referem que a cria estava já a entrar num estado avançado de decomposição, mas por respeito pelo sofrimento evidente da mãe não tentaram recolher o corpo para uma eventual autópsia. Algumas imagens destas observações pode ser encontradas aqui.

Referências
(ref1) Félix, Fernando (1994). A case of epimeletic behaviour in a wild bottlenose dolphin Tursiops truncatus in the Gulf of Guayaquil, Ecuador. Investigations on Cetacea. Ed. by G. Pilleri. Vol. 25:227-234.

1 comentários:

João Carlos disse...

Será que qualquer semelhança com Dona Inez de Castro seria mera coincidência?...