A paleontologia é um daqueles ramos da ciência em que convém não ser impaciente. Por vezes é preciso esperar muito tempo pelo fóssil certo, nalguns casos mais de um século. Isso vem a propósito da minha revisão da literatura sobre o Homo floresiensis. Quando me sentia um pouco desapontado por pouco se ter avançado desde a descoberta, lembrei-me de um senhor chamado Christian Heinrich Pander (1794-1865). É que Pander descreveu, em 1856, um grupo de fósseis extraordinariamente abundantes, encontrados em quase todos os sedimentos marinhos do Paleozóico, os conodontes, dos quais mostro um exemplo na imagem. Estas coisas, que parecem pequenas mandíbulas, com uns poucos milímetros de comprimento, foram durante muito tempo um dos grandes verdadeiros mistérios da paleontologia. Os dentículos eram a única parte dura dos conodontes, e a verdadeira forma dos organismos a que pertenciam permaneceu no domínio da especulação durante quase 130 anos. [... ler mais]
O desconhecimento da biologia dos conodontes não interferiu com o trabalho da maioria dos conodontólogos, mais interessados em bioestratigrafia. É que estes dentículos, os chamados elementos conodontes, são de tal forma comuns que podem ser utilizados como ferramenta geológica de datação. São particularmente utilizados na exploração de petróleo, pois a matéria que os constitui altera a cor com a temperatura a que se formou a rocha que os acompanha, pelo que permitem também reconstruir a história dos sedimentos. Retêm ainda informações importantes para caracterizar os oceanos em que viviam, sendo importantes na reconstrução dos ambientes marinhos do passado. Na verdade, são tão úteis como indicadores que se publicam todos os anos centenas de artigos usando informação obtida a partir dos elementos conodontes. Contudo, no que se refere ao conhecimento das criaturas propriamente ditas, durante muito tempo não se avançou grande coisa.
A biologia dos conodontes era um ramo com pouca expressão até há cerca de 20 anos atrás. Tudo mudou em 1983, com a descoberta por Briggs, Clarkson, e Aldridge (ref1) de um conjunto de fósseis, na Escócia, que mostravam impressões de tecidos moles aos quais estavam inequivocamente associados os dentículos típicos dos conodontes. A criatura que esclareceu finalmente o mistério foi este Clydagnathus windsorensis, com apenas cerca de 40 milímetros de comprimento.O C. windsorensis mostrava vestígios de uma protuberância, uma "cabeça", onde se encontravam os elementos conodontes, um tronco dividido numa série de segmentos musculares em forma de V, e uma região caudal que mostrava a presença de raios sugestivos de uma barbatana caudal. Eis aqui em baixo uma ampliação da região da cauda (topo) e do tronco (base).
O tronco apresenta duas linhas paralelas que são um pouco difíceis de interpretar. Não parecem estar relacionados com o tubo digestivo mas sim serem vestígios de uma notocorda. A notocorda é uma espécie de tubo flexível que existe nos embriões de todos os cordados. Nalguns cordados mais "primitivos", como o anfioxo, permanece ao longo da vida do animal, fornecendo apoio para os músculos. Nos vertebrados ditos superiores, é substituída pela coluna vertebral.
Uma das características importantes dos conodontes é a existência de uma cabeça que se distingue bem do corpo do animal.A cabeça é flanqueada por duas estruturas escuras que a maioria dos investigadores identificam como sendo olhos. Os dentículos encontravam-se em vida na frente da boca, isto é, eram um mecanismo de captura e aquisição de alimento. Mostra-se abaixo uma reconstrução possível do C. windsorensis:
A maioria dos investigadores assume hoje em dia que os conodontes pertençam aos cordados, embora a posição na filogenia seja algo incerta. Análises detalhadas dos dentículos, formados por apatite (fosfato de cálcio), mostraram no entanto uma clara analogia ao tecido ósseo celular dos vertebrados. Isto foi na altura uma grande surpresa pois admitia-se até então que o tecido ósseo dos vertebrados tivesse a sua origem nas couraças ósseas dérmicas que surgiram nalguns tipos de peixes sem mandíbulas. Neste momento tudo indica que os conodontes se incluam entre os vertebrados e as teorias para o aparecimento e evolução do esqueleto vertebrado têm vindo a ser revistas. A presença do tecido ósseo celular sugere que ou se trata de um traço ancestral dos vertebrados, perdido nos ciclóstomos (lampreias e mixinas) ou, mais provável, que os conodontes sejam parentes mais próximos dos vertebrados com mandíbulas do que dos ciclóstomos. Devo salientar, no entanto, que há contudo outros pontos de vista, quer quanto à reconstrução do animal (os "olhos" poderiam ser simples apoios cartilaginosos para o aparelho bucal), quer quanto às afinidades com os cordados.
Pander, na altura da descoberta, considerou os elementos conodontes como vestígios de um grupo de peixes até então desconhecido, e parece que afinal sempre tinha razão. Foram um grupo de animais com um sucesso incrível: duraram qualquer coisa como 300 milhões. Parte desse sucesso estaria seguramente relacionado com a função do seu dispositivo bucal, mas isso terá que ficar para uma outra contribuição.
Ficha técnica
Imagem do conodonte no início da contribuição retirada desta página da U.S. Geological Survey, do U.S. Department of the Interior.
Outras imagens e inspiração para o texto a partir do artigo de Sweet e Donoghue indicado abaixo como ref2.
Referências
(ref1) Briggs, D. E. G., Clarkson, E. N. K. & Aldridge, R. J. (1983). The conodont animal. Lethaia 16, 1-14.
(ref2) WALTER C. SWEET AND PHILIP C. J. DONOGHUE (2001). CONODONTS: PAST, PRESENT, FUTURE. J. Paleont., 75(6), pp. 1174-1184.
segunda-feira, dezembro 18, 2006
Os velhos conodontes não morrem, apenas perdem apatite
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Etiquetas: Paleontologia
quarta-feira, dezembro 13, 2006
Requiem por um golfinho
Esta é uma ilustração do golfinho fluvial chinês, conhecido localmente por baiji, de seu nome científico Lipotes vexillifer, um parente próximo do boto-vermelho do Amazonas. Alcunhado de "Deusa do Yangtzé", essa designação tem a ver com o facto de existir apenas nesse rio. Descobri hoje que o mais correcto na frase anterior teria sido dizer "que existia", porque muito provavelmente o baiji terá desaparecido da face da Terra nos últimos dois anos. [... ler mais]
A Fundação baiji.org anunciou hoje, dia 13 de Dezembro de 2006, nas suas páginas na internet a triste notícia. Esta é a conclusão de um levantamento exaustivo do Yantzé onde participaram mais de 30 investigadores de seis países. Não foram vistos animais nem foram escutadas vocalizações. Em 1950 existiriam cerca de 6,000 destes golfinhos. Em 1980 não restariam mais de 400 animais. Um censo em 1997 produziu apenas 13 avistamentos confirmados. Em 2006, veio então o momento temido, mas não inesperado. De acordo com um dos organizadores da expedição, August Pfluger, que dirige a Fundação baiji.org:É possível que nos tenham escapado um ou dois animais. Temos que aceitar o facto de que o baiji esteja funcionalmente extinto. É uma tragédia, uma perda não apenas para a China, mas para o mundo inteiro.
Ainda August Pfluger, numa nota mais emotiva, quando se referiu a um vídeo que observou de Qi Qi, um macho salvo em 1980 e que morreu no cativeiro em 2002:Considero-me um homem forte. Mas quando vi o filme chorei durante alguns minutos. É algo tão terrivelmente triste.
Adeus lindo golfinho.
Ficha técnica
Ilustração do baiji cortesia de Alessio Marrucci, desta página da Wikimedia Commons.
Uma das citações de August Pfluger, e alguma da informação referida neste texto, foram retiradas de um comunicado na Fundação baiji.org.
A outra citação foi retirada deste texto na National Geographic, onde se pode ver uma foto de Qi Qi.
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Etiquetas: Biologia
segunda-feira, dezembro 11, 2006
Passeio a dois
Esta é uma imagem que vem do Mar Vermelho. O peixe grande e robusto é uma garoupa, da espécie Plectropomus pessuliferus. O peixe menor e escondido num buraco na rocha é uma moreia, da espécie Gymnothorax javanicus. A garoupa está com fome, fome essa que a levou a procurar a moreia. Curiosamente o desfecho da história não é o que estamos à espera, a moreia não está prestes a virar uma refeição. A fantástica história de garoupas e moreias de que vou falar hoje mostra que nunca se devem subestimar as capacidades dos animais, por muito "primitivos" que nos possam parecer. [... ler mais]
A aproximação da garoupa não representa perigo para a moreia. A garoupa passeia-se simplesmente por cima da moreia, mas sem se mostrar agressiva.Após esta curta visita a garoupa abandona simplesmente o local. Não se trata contudo apenas de uma visita de cortesia destinada a manter relações de boa vizinhança.
A garoupa parte de facto, só que não vai sozinha. Nas sombras movimenta-se uma forma esguia, que se percebe melhor nas imagens tiradas a seguir.
A moreia abandona a protecção da sua toca para seguir a garoupa. O que estará por trás desta estranha amizade? A resposta a essa questão é dada num artigo de Redouan Bshary e colegas na revista PLoS Biology (ref1). Numa tradução livre do resumo:
A caça em grupo intraspecífica tem recebido atenção considerável por causa dos laços íntimos entre o comportamento cooperativo e as suas exigências cognitivas. De igual modo, comparações entre espécies têm focado os comportamento que podem distinguir entre os diferentes níveis de complexidade cognitiva potencialmente envolvidos, tais como comunicação entre parceiros por forma a iniciar uma caçada em conjunto, a adopção de diferentes papéis durante uma caçada comum (quer de forma consistente ou de forma alternada), e o nível de partilha de alimento na sequência de uma caçada com sucesso. Relatamos aqui observações no Mar Vermelho da caçada interspecífica, altamente cordenada e comunicativa, entre a garoupa, Plectropomus pessuliferus, e a moreia gigante, Gymnothorax javanicus. Fornecemos evidência do seguinte: (1) as associações não são ao acaso, (2) as garoupas fazem sinais às moreias para iniciar a busca em conjunto e levam as moreias para locais onde se escondem presas, (3) o assinalar é dependente do nível de fome da garoupa, e (4) ambos os parceiros retiram benefícios da associação.
As garoupas caçam bem em espaços abertos, mas não conseguem seguir presas que se escondam em fendas ou recantos das rochas. As moreias por seu lado não são grande coisa em espaço aberto mas não têm dificuldade em se meter por buracos estreitos. Isso significa que qualquer animal que tenta fugir de uma delas é uma presa potencial para a outra. A caça conjunta faz todo o sentido.
O que torna esta história ainda mais interessante é que a garoupa não se limita a comunicar à moreia que vai iniciar uma caçada. Quando detecta algum animal escondido, à medida dos dotes da moreia, assinala a presença do animal com uma postura específica.A garoupa persiste neste comportamento durante algum tempo.
O objectivo é chamar a atenção da sua parceira da outra espécie. Quando o consegue pára este tipo de movimentações e fica numa posição de expectativa. A moreia é muito mais esguia e consegue enfiar-se nos buracos e recantos a que a garoupa não tem acesso.
Curiosamente esta associação funciona bem porque não partilham as presas que apanham. Tal como os investigadores indicam no final do resumo:
Os benefícios da caça conjunta parecem ser devidos a hábitos de caça complementares, reflectindo as estratégias evolutivas de cada espécie, mais do que a especialização de papéis durante caçadas em conjunto. Para além disso, a espécie que apanha uma presa engole-a inteira imediatamente, tornando o monopólio agressivo da carcaça impossível. Propomos que o potencial para monopolizar as carcaças por parte de uma das espécies numa parceria representa o constrangimento maior na evolução da caça cooperativa na maioria das combinações de predadores potencialmente mais adequadas.
O que os autores referem aqui é a possibilidade de que num processo de parceria entre espécies, após a captura da presa, um dos animais consiga roubar a presa na maioria das vezes, deixando para o outro apenas os restos. Segundo eles nesse caso as parcerias não evoluem (ou pelo menos não passam de parasitismo). No caso da garoupa e da moreia isso não sucede pois a captura significa engolir imediatamente, não há possibilidade roubo. Ambos os animais ganham com a parceria. Por exemplo, no caso da garoupa solitária, uma presa escondida é uma presa perdida. Tendo a moreia por perto há sempre a possibilidade de que a presa tente fugir da moreia para campo aberto. Com a moreia sucede algo semelhante: uma presa que fuja para campo aberto não está necessariamente perdida desde que haja uma garoupa por perto. Para fugir da garoupa o animal caçado pode voltar a tentar esconder-se.
Para mim o mais notável nesta história é ver os peixes a comunicarem uns com os outros. É algo que não se encaixa na ideia que que fazia dos peixes.
Ficha técnica
Imagens retiradas dos filmes que acompanham o artigo indicado como ref1 abaixo.
Referências
(ref1) Bshary R, Hohner A, Ait-el-Djoudi K, Fricke H (2006). Interspecific Communicative and Coordinated Hunting between Groupers and Giant Moray Eels in the Red Sea. PLoS Biology Vol. 4, No. 12, e431. Laço DOI.
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Etiquetas: Biologia
sábado, dezembro 09, 2006
Morrer na selva
Esta imagem de uma fêmea de Gorilla gorilla com a sua pequena cria foi tirada num jardim zoológico. Gorilas semelhantes a este continuam a deambular pelas selvas africanas. Infelizmente talvez não o façam durante muito mais tempo. Acossados pelos seres humanos, as populações já algo reduzidas de gorilas talvez não consigam sobreviver a uma outra ameaça: o Ébola. Eu tinha referido há algum tempo o facto de gorilas e chimpanzés serem afectados pelos surtos de ébola, e que se suspeitava que a doença fosse transmitida por morcegos frugívoros. Na altura não avancei números. Pois bem, os valores acabam de sair, e são devastadores. [... ler mais]
O trabalho de Magdalena Bermejo e colegas é descrito num artigo de apenas uma página na revista Science (ref1) . Numa tradução livre do resumo:Ao longo do último decénio, a estirpe zairense do vírus do ébola (ZEBOV) tem aparecido repetidamente no Gabão e no Congo. Cada surto entre os seres humanos tem sido acompanhado por relatos de cadáveres de gorilas e chimpanzés nas florestas vizinhas, mas quer a extensão da mortalidade entre os antropóides quer o papel causal do ZEBOV têm sido debatidos de forma acalorada. Apresentamos aqui dados que sugerem que em 2002 e 2003 o ZEBOV matou cerca de 5,000 gorilas na nossa área de estudo. O atraso entre o começo da mortalidade entre grupos vizinhos de gorilas era semelhante ao ciclo da doença do ZEBOV, evidência de que a transmissão grupo-a-grupo amplificou a mortandade entre os gorilas.
Se os números totais são um pouco difíceis de interpretar, os números relativos não deixam dúvidas: 90 a 95% dos animais na área. Os cientistas estavam a estudar, desde 1995, um conjunto de dez grupos sociais, que em 2002 incluiam 143 indivíduos. Pois bem, no seguimento de um surto de ébola nos seres humanos no final de 2001 e início de 2002, foi detectado um cadáver de gorila em Junho de 2002 a poucos km do santuário onde os cientistas efectuavam os estudos. Em Outubro do mesmo ano apareceram os primeiros cadáveres dentro do santuário. De Outubro de 2002 a Janeiro de 2003, desapareceram 130 dos 143 gorilas no grupo de estudo, ou seja 91% dos indivíduos. Algo semelhante sucedeu alguns meses depois. Os cientistas estavam a seguir então sete novos grupos. Um cadáver apareceu em Junho de 2003 a sul do santuário, e cadáveres começaram a surgir no santuário em Setembro do mesmo ano. O ébola espalhou-se de forma progressiva de norte para sul, matando, entre Outubro de 2003 a Janeiro de 2004, 91 dos 95 animais nestes novos grupos, ou seja 95% dos indivíduos. A estimativa dos 5,000 gorilas mortos tem a ver com a contagem dos ninhos de gorilas. Os autores notaram uma redução de 96% nas taxas de ocupação antes e depois dos surtos de ébola. Uma contagem semelhante de ninhos de chimpanzés mostrou uma queda de 83%, embora nesse caso haja uma incerteza maior.
Os autores notaram algo que ajuda a estabelecer o mecanismo de transmissão. O tempo que a doença demorava a passar de um grupo de gorilas a outro (11.2 dias) era quase exactamente igual ao período típico de incubação da doença que anda por volta dos 12 dias. Isto sugere claramente que não se trata simplesmente de uma fonte comum da doença que tenha afectados os diferentes grupos. A doença mostra um padrão que sugere que os animais se infectaram uns aos outros, não apenas dentro de um grupo, mas também de um grupo para outro grupo.
Os autores terminam o curto artigo com uma conclusão nada animadora:Esperamos que este estudo dissipe quaisquer dúvidas quanto ao facto de que o ZEBOV tenha causado uma mortalidade imensa de gorilas. Os surtos de Lossi mataram tantos gorilas como os que sobrevivem na espécie oriental (Gorilla beringei). Contudo, as perdas em Lossi representam apenas uma pequena fracção dos gorilas ocidentais mortos pelo ZEBOV no último decénio, ou mesmo do número em risco para os próximos cinco anos. Se juntarmos a caça comercial a esta mistura, temos a receita para uma rápida extinção ecológica. Espécies de antropóides que eram abundantes e amplamenta distribuídas um decénio atrás estão a ser reduzidas rapidamente a pequenas populações remanescentes.
Ficha técnica
Imagem da gorila e sua cria retirada da Wikimedia Commons.
Referências
(ref1)Magdalena Bermejo, José Domingo Rodríguez-Teijeiro, Germán Illera, Alex Barroso, Carles Vilà, and Peter D. Walsh (2006). Ebola Outbreak Killed 5000 Gorillas. Science, Vol. 314. no. 5805, p. 1564. Laço DOI.
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Etiquetas: Biologia
quarta-feira, dezembro 06, 2006
O Mundo do Hobbit: descendentes de marinheiros?
Esta imagem mostra o relevo na região do Sudoeste-asiático e Austrália. Os tons de azul escuro são regiões de fundos oceânicos profundos, abaixo dos 3000 metros, as regiões a azul mais claro vão até à superfície, correspondendo os tons ciano quase esverdadeados a regiões que hoje se situam desde o nível do mar a 100 ou 150 metros de profundidade. Os verdes correspondem a regiões de pequena altitude, os amarelos e vermelhos a regiões de altitudes elevadas. A região de baixa profundidade é uma extensão natural dos continentes, e constitui aquilo que se designa por plataforma continental. Notem que eu usei a palavra hoje ao referir-me à região azul-clara. É que durante as eras glaciais o nível do mar encontrava-se mais de 100 metros abaixo do que está hoje, e grande parte dessa zona era terra firme. Isso significa que as ilhas de Samatra, Java, e Bornéu, estavam então directamente ligadas ao continente asiático, e a Nova-Guiné ao continente australiano. Estamos a falar de um período algo recente em termos geológicos: a última glaciação terminou apenas há coisa de 10,000 anos. [... ler mais]
Para ilustrar melhor os aspectos relativos à Ilha das Flores eis abaixo uma ampliação de parte do mapa.Como podemos ver as Celebes e um conjunto de ilhas a este de Java não ficam directamente ligadas aos continentes mesmo durante os períodos de mar mais baixo durante as glaciações. Este conjunto de ilhas é conhecido colectivamente pela designação de Wallacea. O nome vem do naturalista Alfred Russel Wallace, que notou uma diferença entre as faunas deste conjunto de ilhas relativamente às faunas de ilhas como Java, Bornéu, Samatra e Bali. Enquanto as ilhas como Java partilham essencialmente a fauna asiática, com rinocerontes, felinos e antropóides, as ilhas da Wallacea possuem um grande número de espécies endémicas. As Flores são parte desta Wallacea:
Mesmo durante as épocas glaciares existiriam sempre extensões mais ou menos longas de mar que a fauna teria que atravessar, em particular uma que separa Bali da ilha a este (Lombok), com um fosso de 25 km de largura, e outra entre as Flores e a ilha a oeste (Sumbawa) com 9 km de separação mínima. Apenas animais terrestres com boa capacidade como nadadores, como os elefantes, ou capazes de viajarem em jangadas, como pequenos reptéis e roedores, conseguiriam atingir a Ilha das Flores. Não foram assim tantas espécies a fazerem a travessia, e a frequência das travessias deve ter sido suficientemente baixa para permitir aos animais da ilha evoluirem para formas distintas quer das espécies do continente, quer das ilhas à volta.
Esta presença de grandes extensões de mar aberto, que seria preciso atravessar para ir da Ásia até às Flores, tornam a presença dos hobbits na ilha ainda mais notável. É pouco provável que tenham atravessado toda a região por acaso durante alguma catástrofe natural, pois mais nenhum animal de porte intermédio, excepto os elefantídeos estogodontes, o fizeram durante todo esse tempo. Tudo aponta para que os antepassados destes seres tenham construído algum tipo de jangadas. Se bem que esse tipo de sofisticação não seja de esperar em criaturas com um cérebro não maior que o de um chimpanzé, não seria de todo inesperado se os primeiros ocupantes da ilha fossem Homo erectus típicos, cuja estatura e capacidade craniana só tenham diminuído no curso das gerações subsequentes a se terem estabelecido na ilha. Há no entanto uma outra indicação de que o Homo floresiensis seria bastante mais capaz do ponto de vista cognitivo do que o tamanho do seu cérebro deixaria antever: utensílios de pedra. Falarei disso na próxima contribuição.
Ficha técnica
Mapas de relevo feitos usando informação da base de dados ETOPOv2 da NOAA.
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Etiquetas: Geologia
O Mundo do Hobbit: humanos minúsculos, ratos gigantes
O garboso caçador das Flores, que mostrei na contribuição anterior sobre este tema, levava ao ombro um animal de razoável tamanho, que apesar das orelhas curtas se reconhecia bem como algo da família dos ratos e ratazanas. Um animal semelhante, que partilhou a ilha com o hobbit, e que provavelmente seria uma das iguarias apreciadas pelo pequeno povo da ilha, existe ainda hoje em dia. Pode parecer estranho mas a ilha que produziu os mais pequenos entre os humanos é o lar de ratazanas enormes. As duas criatura da imagem são ratazana-gigantes das Flores, de seu nome científico Papagomys armandvillei. O gigante no nome é relativo aos outros membros da família: é que para ratazana ter 45 centímetros de comprimento do corpo e cabeça não é nada mau. O tamanho da P. armandvillei corresponde a cerca do dobro da ratazana comum, Rattus norvegicus. Trata-se de um animal endémico das Flores, isto é, que não existe naturalmente em mais nenhum lugar do mundo. [... ler mais]
Encontrei algumas referências à fauna presente e extinta da ilha num excelente artigo de Guy Musser no Bulletin of the American Museum of Natural History (ref1). É um bocado detalhado demais para citar aqui como costumo fazer, mas para aqueles que gostam de ver crânios e dentes de ratos recomendo-o vivamente, Tem tudo o que sempre quiseram saber sobre as ratazanas das Flores. Guy Musser refere lá que das 32 espécies de mamíferos não humanos das Flores, incluindo fósseis e subfósseis, 13 são habitantes "recentes", muito provavelmente trazidos pelos agricultores humanos que se estabeleceram na ilha nos últimos 5,000 anos. Uma grande fatia das espécies de mamíferos que habitam, ou habitaram algures no passado as Flores, são ratos ou ratazanas, num total de 12 espécies. Cinco dessas espécies são endémicas e uma sexta practicamente também o é, conhece-se também das ilhas de Komodo. Dessas seis espécies endémicas ou quase, cinco são representadas apenas por fragmentos fósseis e subfósseis. Resta apenas a P. armandvillei.
Para compreender a relativa raridade de espécies de mamíferos nas Flores, e o número razoável de espécies endémicas, é preciso tecer algumas considerações sobre a geografia da região. Falarei disso na próxima contribuição.
Ficha técnica
(ref1) Musser, G.G (1981). The Giant Rat of Flores and its Relatives East of Borneo and Bali. Bulletin of the American Museum of Natural History 169:67-176.
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Etiquetas: Biologia
terça-feira, dezembro 05, 2006
Navegar num mar de pedra
Fredrik Fransson tinha este sonho de agarrar num barco e atravessar o Pacífico. Tanto sonhou que um dia lá se decidiu, despediu-se do emprego, convenceu o tio Hakan e uma amiga chamada Jenny a irem com ele como tripulação, e pronto, lá partiram de São Francisco em direcção à Austrália. A viagem já terminou. Pelo caminho, para lá das vicissitudes normais nestas coisas, viram nascer uma ilha e navegaram num mar de pedra. Mas nada melhor do que as palavras dos que viveram a experiência. [... ler mais]
Talvez já tenham ouvido falar daquela superstição entre marinheiros que diz que "nunca se deve partir numa sexta feira". Pois bem, nós partimos e o mar transformou-se em pedra.
Este texto algo lacónico foi retirado do blog que Fredrik Fransson manteve durante a viagem, o Fredrik and Crew on Maiken, A fotografia vem daí. Escolhi esta porque aparece um pouco por toda a parte na internet, mas há muitas mais nesta página do blog, incluindo algumas da nova ilha vulcânica. Como certamente adivinharam esta é a jangada de pedra-pomes ao largo de Tonga de que falei ontem.
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Etiquetas: Geologia
segunda-feira, dezembro 04, 2006
A jangada de pedra
Esta é uma imagem tirada em Setembro de 2005 pelo instrumento Moderate Resolution Imaging Spectroradiometer (MODIS) a bordo de um satélite da NASA chamado Aqua. A imagem mostra um conjunto de ilhas no Oceano Pacífico, mais especificamente o arquipélago de Tonga. Trata-se uma paisagem bonita, mas o que me levou a mostrá-la foi um fenómeno que sucedeu cerca de um ano depois, em Agosto de 2006. Nessa data o arquipélago ganhou mais uma ilha. Uma nova ilha vulcânica a nascer das profundezas é sempre algo interessante, mas neste caso foi acompanhada de um fenómeno curioso, algo de que eu já tinha ouvido falar mas que nunca tinha visto em imagens. [...ler mais]
Comecemos por ampliar a região do pequeno quadrado junto ao canto superior direito da imagem.Comparem agora essa imagem com uma imagem tirada em 2006, no dia 10 de Agosto. Há duas coisas novas na imagem mais recente.
Uma delas é a ilha vulcânica, ligeiramente abaixo e à esquerda da ilha de Late. Acima da ilha de Late há uma massa acastanhada que flutua sobre as águas do Pacífico. Do que se trata? Pois bem, nada mais nada menos do que rocha vulcânica. Calhaus que flutuam, e que retiram significado à expressão "afundar-se como uma pedra". Nem todas as pedras se afundam, algumas pelos vistos nadam muito melhor do que eu. Só agora descobri as imagens e tinha que partilhá-las. Trata-se de um fenómeno que já tinha sido descrito mas que ganha outro tipo de espectacularidade quando se vêm imagens como estas. Gosto particularmente da língua de rocha flutuante que liga o grosso da jangada à ilha de Late. Esta jangada de pedra-pomes foi mesmo notícia nos noticiários de Tonga porque entupiu o sistema de refrigeração de um iate que inadvertidamente cruzou aquelas águas e teve que voltar para trás.
Ficha técnica
Imagens e inspiração para o texto obtidas a partir desta página do NASA Earth Observatory.
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Etiquetas: Geologia
O Mundo do Hobbit: foi há tão pouco tempo
Como referi na contribuição anterior, o crânio e o esqueleto, razoavelmente completo, de Homo floresiensis, encontrados na gruta de Liang Bua, eram de uma mulher. Uma senhora que teria vivido até cerca dos 30 anos. Não deixa de ser por isso estranho que a ilustrução que acompanhou quase todas as referências ao achado seja de um homem, um caçador. Acho que isso diz muito sobre a forma como ainda hoje encaramos o mundo. Eis aqui essa ilustração, mostrando o garboso caçador, do alto do seu imponente um metro de altura, carregando num dos ombros uma das ratazanas gigantes da Ilha das Flores. A cena não é apesar de todo despropositada, os floresienses foram encontrados com ossadas de animais que apresentavam marcas consistentes com cortes feitos com instrumentos de pedra. Esta seria talvez uma cena comum na época em que os floresienses viveram na ilha. Mas quando foi exactamente essa época? A resposta a essa pergunta foi uma das maiores surpresas dos achados das Flores. Falei neste blog por diversas vezes do homem de neandertal, que se supunha ter sido o último hominíneo a partilhar a Terra com os humanos modernos, tendo-se extinguido há pouco menos de 30,000 anos. Ora pelos vistos isso não é verdade, o homem floresiense terá partilhado o planeta com os humanos modernos durante uns largos milhares de anos após o desaparecimento dos neandertais. Tudo indica que até há muito pouco tempo atrás coexistia connosco uma espécie de pequenos caçadores bípedes com cérebros não maiores que os dos chimpanzés. [... ler mais]
O artigo que trata dos aspectos relativos à idade dos achados é de Mike Morwood e colegas, e foi publicado na revista Nature (ref1). Numa tradução livre do resumo:Excavações em Liang Bua, uma grande caverna calcária na Ilha das Flores na Indonésia oriental, revelaram vestígios de uma populaçãos de hominines diminutos, distintos o suficiente do ponto de vista anatómico para serem atribuídos a uma nova espécie, Homo floresiensis. Os achados incluem o crânio e alguns restos pós-cranianos de um indivíduo, bem como um pré-molar de outro indivíduo em depósitos mais antigos. Descrevemos aqui o seu contexto, implicações e as restantes incertezas arqueológicas. Datação por métodos de radiocarbono (14C), luminescência, séries de urânio, e ressonância de spin de electrões indicam que o H. floresiensis existiu desde antes de 38,000 anos atrás até 18,000 anos atrás. Depósitos associados contêm alguns utensílios de pedra e restos de animais, incluindo dragões de Komodo e uma espécie anã endémica de Stegodon. O H. floresiensis originou-se a partir de uma dispersão inicial do Homo erectus (incluindo exemplares referidos como Homo ergaster e Homo georgicus) que atingiu as Flores, e então sobreviveu nesta ilha refúgio até tempos relativamente recentes. Coexistiu significativamente com o Homo sapiens na região, mas não sabemos se ou como as duas espécies interagiram.
Os restos encontrado na escavação não pertenciam apenas à pequena senhora das Flores. Havia vestígios, bastante incompletos, de outros indivíduos. O que os autores fizeram foi datar restos de carvão, ossos de animais e outros materiais encontrados na vizinhança dos ossos de floresienses, usando quatro métodos diferentes. Encontraram assim evidências de que a gruta teria sido ocupada pelo menos durante 20,000 anos, com o esqueleto mais recente datando de há 18,000 anos atrás. É provável que o último esqueleto não corresponda ao fim da espécie, que poderá ter sobrevivido pelo menos uns poucos milhares de anos mais. Quem sabe, talvez tenha conseguido sobreviver até tempos históricos. Talvez ainda existissem hobbits na ilha quando os navegadores portugueses passaram pela primeira vez naquelas paragens, no século XVI.
Um dos pontos mais enigmáticos da presença destes seres nas Flores tem a ver com a geografia da ilha. Falarei nisso numa próxima contribuição. Antes disso vou falar da criatura que o caçador leva nos ombros.
Ficha técnica
Hesitei um pouco antes de colocar a imagem. Trata-se de uma "Cortesia do artista Peter Schouten e da National Geographic Society", que aparece um pouco por toda a parte na internet mas os direitos não são claros. Uma imagem de muito maior resolução pode ser obtida a partir da University of Wollongong na Austrália.
Referências
(ref1) Morwood M. J., et al (2004). Archaeology and age of a new hominin from Flores in eastern Indonesia. Nature 431, 1087-1091. Laço DOI.
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domingo, dezembro 03, 2006
O Mundo do Hobbit: a pequena senhora das Flores
Esta é a capa da revista que espantou o mundo. Aquele pequeno crânio esteve na origem de um certo frenesim noticioso que percorreu todo o globo. A surpresa tinha na verdade começado um pouco antes, no seio da equipa de descobridores. Como explicaram os membros da expedição que encontrou os vestígios na caverna de Liang Bua, ninguém ficou mais surpreendido que eles mesmos. Um dos membros da equipa, Peter Brown, disse mesmo que teria ficado menos espantado se tivesse descobrido um extra-terrestre. Originalmente, a expedição destinava-se a investigar uma descoberta algo controversa feita uns quantos anos antes na Ilha das Flores: artefactos em pedra que teriam sido feitos há 840,000 anos. O presumível autor desses utensílios seria o Homo erectus, e eram restos dessa espécie que o grupo de cientistas indonésios e australianos buscava na ilha. Ninguém estava à espera daquilo que se descobriu em 2003, no meio de ossadas de elefantes estegodontes anões, ratos gigantes, e lagartos predadores enormes: vestígios do que poderá ser uma nova espécie de seres humanos. [... ler mais]
A descoberta foi anunciada ao mundo num artigo de Peter Brown e colegas na revista Nature (ref1). Numa tradução livre do resumo:Hoje em dia aceita-se geralmente que um único género de hominines, o Homo, estava presente no Pleistocénico da Ásia, representado por duas espécies, Homo erectus e Homo sapiens. Ambas as espécies são caracterizadas por um maior tamanho do cérebro, maior altura corporal e dentes menores relativamente ao Australopithecus do Pliocénico da África. Relatamos aqui a descoberta, do Pleistocénico das Flores, Indonésia, de um hominíneo adulto com estatura e capacidade craniana de respectivamente 1 metro e 380 centímetros cúbicos, iguais aos mais pequenos austrolopitecíneos conhecidos. A combinação de características primitivas e derivadas coloca este hominíneo numa nova espécie, Homo floresiensis. A explicação mais provável para a sua existência nas Flores é o isolamente prolongado, com o subsequente nanismo insular endémico, de uma população ancestral de H. erectus. O H. floresiensis mostra que o género Homo é mais variado do ponto de vista morfológico e mais flexível nas suas respostas adaptativas do que se julgava anteriormente.
Na verdade tratava-se de uma hominínea, adulta, com o tamanho de uma criança moderna de cerca de 3 anos de idade. O mais espantoso nesta pequena senhora das Flores até nem é a altura, o que surpreende mesmo é a capacidade craniana. As populações humanas modernas de pequena estatura, como os pigmeus, têm um cérebro com tamanho comparável ao de populações de maior estatura. Isso tem a ver com a forma como se dá a redução de tamanho, por paragem do crescimento durante a puberdade. Com um cérebro cerca de três vezes menor que o do um H. erectus, o H. floresiensis não pode ser simplesmente o equivalente de um pigmeu para o erectus. Os autores propõem um outro mecanismo, o chamado nanismo insular. Muitas espécies de animais de grande porte mostram uma evolução para formas menores, ao longo do tempo, quando ficam restringidos a ilhas. Por exemplo, muitas das ilhas do Mediterrâneo albergaram até recentemente populações de elefantes que, quando adultos, eram mais pequenos que um burro.
Mesmo admitindo que se trata de nanismo insular, a redução de tamanho é apesar de tudo demasiada. Um ser humano moderno tem aquilo a que se chama um coeficiente de encefalização de 6, ou seja um cérebro que é cerca de 6 vezes maior do que o esperado para um mamífero do seu tamanho. O Homo erectus tinha 4 como coeficiente de encefalização. Ora o Homo floresiensis tinha uma encefalização entre 2.5 e 3, comparável aos chimpanzés e hominídeos primitivos como o Australopithecus. Ou seja, admitindo uma origem relacionada com o H. erectus, o H. floresiensis teria seguido algo não anteriormente observado na evolução humana: a diminuição das capacidades cerebrais. Este é um dos aspectos significativos da história e está em grande parte por detrás da polémica que abordarei em contribuições posteriores.
A pequena senhora das Flores tinha um tamanho e uma capacidade craniana comparáveis ao Australopithecus. Por que razão é então incluída no nosso género? Porque não num género próprio, sei lá, Floresianthropus? Os autores notam alguns aspectos do esqueleto que parecem apontar a pertença ao género Homo. Para além disso há a capacidade de cruzar o oceano para chegar à ilha. Na gruta onde foram encontrados os ossos dos floresiensis existem também vestígios de fogo, e utensílios de pedra contemporâneos desses mesmos ossos. Há ainda a questão da idade dos vestígios, e essa foi também uma enorme surpresa. Abordarei todos esses aspectos nas contribuições que se seguem, a começar pela questão da datação dos vestígios.
Referências
(ref1) Brown P., et al (2004). A new small-bodied hominin from the Late Pleistocene of Flores, Indonesia. Nature 431, 1055-1061. Laço DOI.
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sábado, dezembro 02, 2006
A força de uma dentada ou a importância de consultar as referências originais
Mas o tubarão pode respirar aliviado, pois o Dunkleosteus terrelli está extinto há 400 milhões de anos. Os cientistas sabiam que o antigo animal foi um predador dominante, mas não tinham noção de sua força. Um novo estudo, feito nos Estados Unidos, destaca a característica mais notável do antigo peixe: a mordida, que descobriram tão forte quanto a do tiranossauro.Esta é uma foto do fóssil de um peixe do género Dunkleosteus. Pertencia a uma linhagem já extinta de peixes couraçados, com mandíbulas, os placodermes, que espalharam o terror nos mares do Período Devónico. Eram animais pesados e provavelmente algo lentos, com uma espessa armadura feita de osso na região da cabeça e pescoço. Este animal foi notícia recentemente devido a um trabalho relativo à maior espécie conhecida deste género, o Dunkleosteus terrelli, que tería vivido há cerca de 400 milhões de anos. Enfim, não foi notícia em toda a parte, em Portugal passou despercebido, como é costume, mas no Brasil alguns jornais de grande circulação referiram-no. Quando li os comunicados de imprensa fiquei algo perplexo com os valores avançados para a força da dentada do animal. Eu em geral não acredito em nada na imprensa que obrigue os jornalistas a fazerem contas, mesmo quando se trata da aritmética mais simples, e este exemplo serviu para reforçar a minha desconfiança. [... ler mais]
O curioso neste caso foi verificar que a coisa se propagou além das páginas de jornais. O Dunkleosteus é referido, por exemplo, nesta página da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo. Devo notar que não se trata de algo exclusivamente brasileiro, encontrei a mesma coisa nas páginas da BBC e do Times. Eis aqui o excerto problemático tal como vem na página da FAPESP:Imagine um peixe com 4 toneladas, 10 metros de comprimento e uma mordida forte o suficiente para partir um tubarão ao meio. Tinha uma força nas mandíbulas com a qual o atual rei dos mares nem poderia sonhar, capaz de exercer uma pressão equivalente ao peso de mais de 5,5 mil quilos.
O ênfase a negrito é meu, e marca as passagens problemáticas. Vejamos então o que diz o trabalho original, da autoria de Philip Anderson e Mark W. Westneat, publicado na revista Biology Letters (ref1). Numa tradução livre do resumo:Os placodermes eram um grupo diversificado de peixes couraçados que dominaram os ecossistemas aquáticos do Período Devónico, de 415 a 360 milhões de anos atrás. As mandíbulas em lâmina de predadores como o Dunkleosteus sugerem que estes animais foram os primeiros vertebrados a usarem a rápida abertura da boca e uma dentada poderosa para capturar e fragmentar presas fugidias antes da ingestão. Desenvolvemos aqui um modelo biomecânico da força e dos movimentos durante a alimentação no Dunkleosteus terrelli que revela um crânio altamente cinético guiado por um mecanismo de carácter único com quatro junções. O sistema de junções tem uma transmissão de alta velocidade para abertura das mandíbulas, produzindo uma fase de rápida expansão semelhante à dos peixes modernos que usam a sucção durante a captura de presas. Os músculos de fecho das mandíbulas impulsionam uma dentada extraordinariamente forte, com uma estimativa máxima para a força da dentada de 4,400 N na ponta da mandíbula e mais de 5,300 N nas placas dentárias da rectaguarda. Este valor da força de dentada é o maior de todos os peixes vivos ou fósseis e está entre as mais poderosas dentadas nos animais.
O N é o símbolo do Newton, uma unidade de força. Como qualquer estudante de física de liceu é suposto saber, um corpo de 1 kg de massa, em repouso sobre uma superfície, exerce sobre essa superfície uma força de 9.8 N, logo 4400 N correspondem a um peso de 449 kg, e 5300 N a um peso de 540 kg, Não é claro como isto se relaciona com o resumo da imprensa, pois eles falam de pressão, mas suponho que seja força, pois não é dada nenhuma unidade de área. Nesse caso, alguém se esqueceu de dividir por 10 (está bem, 9.8 mas vais dar ao mesmo).
A dentada do Dunkleosteus era forte mas não muito acima do que alguns animais modernos conseguem. Por exemplo, as hienas mordem com uma força de cerca de 4,500 N. Deve notar-se aliás que, contrariamente ao que aparece em alguns dos textos na imprensa, como mordida era bastante mais fraca do que aquilo de que o Tyrannosaurus rex era capaz. A análise directa de vestígios de dentadas em fósseis mostra que o T. rex seria capaz de gerar forças acima de 13,400 N num só dente, ou seja 1367 kg-força. Aqui é curioso notar que a versão do Times Online, que também erra pelo tal factor de dez, dando os tais 5,500 kg para o Dunkleosteus, usa a conversão correcta para o tiranossauro. Numa tradução da parte relevante desse comunicado de imprensa:Uma nova análise do crânio fossilizado da criatura mostrou que tinha a mais poderosa dentada registada. Como comparação os cientistas, estimam que a dentada do T. rex teria tido uma força de cerca de 1,360kg.
Aqui se vê a importância de um factor de dez, a primeira frase está completamente errada. Aliás, como eu referi, o valor de 1367 kg é para apenas um dente. Mesmo admitindo, numa estimativa conservadora, como faz Emily Rayfield (ver ref2), que numa dentada a força total se aplicaria fundamentalmente nos dois dentes maiores, e que nos restantes seria proporcional ao tamanho, o Tyrannosaurus rex seria capaz de gerar pelo menos 31,000 N, ou seja bastante mais que o Dunkleosteus. Esta é a estimativa mais baixa: dependendo de como a dentada era aplicada o T. rex poderia mesmo chegar a 156,000 N, ou seja 16,000 kg-força. O tiranossauro estava claramente num outro campeonato no que diz respeito às mordidas.
Apesar de tudo o Dunkleosteus mordia com força, e o método usado na captura de presas era realmente fabuloso. O Dunkleosteus conseguia abrir a boca numa fracção de segundo, aspirando literalmente as criaturas próximas, que eram então despachadas pelas lâminas nas suas mandíbulas.
Para lá do pescoço o animal não era couraçado e o aspecto era um pouco incerto. Eis uma possível reconstrução:Para uma reconstrução mais ameaçadora, e com direitos reservados pela autora, encontrei este trabalho de Karen Carr.
Já agora, o que é válido para a imprensa é ainda mais válido bara os blogues, incluindo este. De certeza que também devo ter uns enganos valentes a espreitarem algures nos arquivos. Daí a importância de citar as fontes e se possível visitar os originais.
Ficha técnica
Imagem no início da contribuição cortesia de Cas Liber, retirada da Wikimedia Commons.
Ilustração cortesia de Frederik Spindler, retirada da Wikimedia Commons.
Referências
(ref1) Philip S.L. Anderson and Mark W. Westneat (2006). Feeding mechanics and bite force modelling of the skull of Dunkleosteus terrelli, an ancient apex predator. Biology Letters. Laço DOI.
(ref2) Rayfield E. J. (2004). Cranial mechanics and feeding in Tyrannosaurus rex. Proceedings of the Royal Society of London, B. 271, 1451-1459. Laço DOI.
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sexta-feira, dezembro 01, 2006
O Mundo do Hobbit
Há pouco mais de dois anos foi anunciada ao mundo uma descoberta feita na gruta de Liang Bua, na ilha das Flores, no sudoeste asiático. Tratava-se de algo supreendente: uma equipa de investigadores da Austrália e da Indonésia tinha descobrido os vestígios de um hominíneo, com apenas cerca de 106 centímetros de altura, que teria vivido aí até há pelos menos 18,000 anos atrás. Dada a pequeníssima estatura não surpreende que esses antigos habitantes das Flores tenham sido alcunhados de hobbits, os habitantes diminutos das Terra Média das novelas de Tolkien, celebrizados pelos filmes do Senhor dos Anéis. A designação até tem o seu quê de adequado pois esses minúsculos humanos teriam vivido num mundo repleto de dragões (de Komodo), ratos gigantes e elefantes estegodontes anões. Uma fotografia da caverna onde tudo começou ilustra a capa do livro que eu gostaria de receber pelo Natal: The Discovery of the Hobbit: The Scientific Breakthrough that Changed the Face of Human History, da autoria de Mike Morwood e Penny van Oosterzee, a ser lançado antes do final do ano na Austrália. [... ler mais]
Classificados no artigo da descoberta como uma nova espécie, o Homo floresiensis, as coisas não se apresentam neste momento tão certas quanto à relação dos humanos modernos com os seres descobertos na gruta. Dois anos após o anúncio da descoberta, ainda se sabe muito pouco sobre os hobbits, que estão envolvidos numa controvérsia científica, o que é sempre salutar, mas também política, o que é menos. Curiosamente uma das contribuições que coloquei no primeiro dia de existência do Cais de Gaia foi exactamente sobre o hobbit, relacionada com uma hipótese "meio-louca", saída numa revista de divulgação, de que o hobbit seria um quadrúpede. Não voltei durante todo este tempo ao tema porque tenho esperado um pouco pelo assentar da poeira, que não parece para breve. No entanto, agora que uma obra está prestes a aparecer nos escaparates, talvez seja uma boa ideia fazer um apanhado da situação. Sendo assim, a semana que vem vai será a semana do hobbit. A primeira contrbuição será já no sábado, sobre a descoberta original.
Ficha técnica
Notícia da publicação e imagem da capa via CriptoMundo, onde se encontra uma versão de bastante melhor resolução.
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Etiquetas: Antropologia