segunda-feira, dezembro 11, 2006

Passeio a dois

Esta é uma imagem que vem do Mar Vermelho. O peixe grande e robusto é uma garoupa, da espécie Plectropomus pessuliferus. O peixe menor e escondido num buraco na rocha é uma moreia, da espécie Gymnothorax javanicus. A garoupa está com fome, fome essa que a levou a procurar a moreia. Curiosamente o desfecho da história não é o que estamos à espera, a moreia não está prestes a virar uma refeição. A fantástica história de garoupas e moreias de que vou falar hoje mostra que nunca se devem subestimar as capacidades dos animais, por muito "primitivos" que nos possam parecer. [... ler mais]

A aproximação da garoupa não representa perigo para a moreia. A garoupa passeia-se simplesmente por cima da moreia, mas sem se mostrar agressiva.

Após esta curta visita a garoupa abandona simplesmente o local. Não se trata contudo apenas de uma visita de cortesia destinada a manter relações de boa vizinhança.

A garoupa parte de facto, só que não vai sozinha. Nas sombras movimenta-se uma forma esguia, que se percebe melhor nas imagens tiradas a seguir.

A moreia abandona a protecção da sua toca para seguir a garoupa. O que estará por trás desta estranha amizade? A resposta a essa questão é dada num artigo de Redouan Bshary e colegas na revista PLoS Biology (ref1). Numa tradução livre do resumo:

A caça em grupo intraspecífica tem recebido atenção considerável por causa dos laços íntimos entre o comportamento cooperativo e as suas exigências cognitivas. De igual modo, comparações entre espécies têm focado os comportamento que podem distinguir entre os diferentes níveis de complexidade cognitiva potencialmente envolvidos, tais como comunicação entre parceiros por forma a iniciar uma caçada em conjunto, a adopção de diferentes papéis durante uma caçada comum (quer de forma consistente ou de forma alternada), e o nível de partilha de alimento na sequência de uma caçada com sucesso. Relatamos aqui observações no Mar Vermelho da caçada interspecífica, altamente cordenada e comunicativa, entre a garoupa, Plectropomus pessuliferus, e a moreia gigante, Gymnothorax javanicus. Fornecemos evidência do seguinte: (1) as associações não são ao acaso, (2) as garoupas fazem sinais às moreias para iniciar a busca em conjunto e levam as moreias para locais onde se escondem presas, (3) o assinalar é dependente do nível de fome da garoupa, e (4) ambos os parceiros retiram benefícios da associação.

As garoupas caçam bem em espaços abertos, mas não conseguem seguir presas que se escondam em fendas ou recantos das rochas. As moreias por seu lado não são grande coisa em espaço aberto mas não têm dificuldade em se meter por buracos estreitos. Isso significa que qualquer animal que tenta fugir de uma delas é uma presa potencial para a outra. A caça conjunta faz todo o sentido.

O que torna esta história ainda mais interessante é que a garoupa não se limita a comunicar à moreia que vai iniciar uma caçada. Quando detecta algum animal escondido, à medida dos dotes da moreia, assinala a presença do animal com uma postura específica.

A garoupa persiste neste comportamento durante algum tempo.

O objectivo é chamar a atenção da sua parceira da outra espécie. Quando o consegue pára este tipo de movimentações e fica numa posição de expectativa. A moreia é muito mais esguia e consegue enfiar-se nos buracos e recantos a que a garoupa não tem acesso.

Curiosamente esta associação funciona bem porque não partilham as presas que apanham. Tal como os investigadores indicam no final do resumo:
Os benefícios da caça conjunta parecem ser devidos a hábitos de caça complementares, reflectindo as estratégias evolutivas de cada espécie, mais do que a especialização de papéis durante caçadas em conjunto. Para além disso, a espécie que apanha uma presa engole-a inteira imediatamente, tornando o monopólio agressivo da carcaça impossível. Propomos que o potencial para monopolizar as carcaças por parte de uma das espécies numa parceria representa o constrangimento maior na evolução da caça cooperativa na maioria das combinações de predadores potencialmente mais adequadas.

O que os autores referem aqui é a possibilidade de que num processo de parceria entre espécies, após a captura da presa, um dos animais consiga roubar a presa na maioria das vezes, deixando para o outro apenas os restos. Segundo eles nesse caso as parcerias não evoluem (ou pelo menos não passam de parasitismo). No caso da garoupa e da moreia isso não sucede pois a captura significa engolir imediatamente, não há possibilidade roubo. Ambos os animais ganham com a parceria. Por exemplo, no caso da garoupa solitária, uma presa escondida é uma presa perdida. Tendo a moreia por perto há sempre a possibilidade de que a presa tente fugir da moreia para campo aberto. Com a moreia sucede algo semelhante: uma presa que fuja para campo aberto não está necessariamente perdida desde que haja uma garoupa por perto. Para fugir da garoupa o animal caçado pode voltar a tentar esconder-se.

Para mim o mais notável nesta história é ver os peixes a comunicarem uns com os outros. É algo que não se encaixa na ideia que que fazia dos peixes.

Ficha técnica
Imagens retiradas dos filmes que acompanham o artigo indicado como ref1 abaixo.

Referências
(ref1) Bshary R, Hohner A, Ait-el-Djoudi K, Fricke H (2006). Interspecific Communicative and Coordinated Hunting between Groupers and Giant Moray Eels in the Red Sea. PLoS Biology Vol. 4, No. 12, e431. Laço DOI.

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