segunda-feira, dezembro 18, 2006

Os velhos conodontes não morrem, apenas perdem apatite

A paleontologia é um daqueles ramos da ciência em que convém não ser impaciente. Por vezes é preciso esperar muito tempo pelo fóssil certo, nalguns casos mais de um século. Isso vem a propósito da minha revisão da literatura sobre o Homo floresiensis. Quando me sentia um pouco desapontado por pouco se ter avançado desde a descoberta, lembrei-me de um senhor chamado Christian Heinrich Pander (1794-1865). É que Pander descreveu, em 1856, um grupo de fósseis extraordinariamente abundantes, encontrados em quase todos os sedimentos marinhos do Paleozóico, os conodontes, dos quais mostro um exemplo na imagem. Estas coisas, que parecem pequenas mandíbulas, com uns poucos milímetros de comprimento, foram durante muito tempo um dos grandes verdadeiros mistérios da paleontologia. Os dentículos eram a única parte dura dos conodontes, e a verdadeira forma dos organismos a que pertenciam permaneceu no domínio da especulação durante quase 130 anos. [... ler mais]

O desconhecimento da biologia dos conodontes não interferiu com o trabalho da maioria dos conodontólogos, mais interessados em bioestratigrafia. É que estes dentículos, os chamados elementos conodontes, são de tal forma comuns que podem ser utilizados como ferramenta geológica de datação. São particularmente utilizados na exploração de petróleo, pois a matéria que os constitui altera a cor com a temperatura a que se formou a rocha que os acompanha, pelo que permitem também reconstruir a história dos sedimentos. Retêm ainda informações importantes para caracterizar os oceanos em que viviam, sendo importantes na reconstrução dos ambientes marinhos do passado. Na verdade, são tão úteis como indicadores que se publicam todos os anos centenas de artigos usando informação obtida a partir dos elementos conodontes. Contudo, no que se refere ao conhecimento das criaturas propriamente ditas, durante muito tempo não se avançou grande coisa.

A biologia dos conodontes era um ramo com pouca expressão até há cerca de 20 anos atrás. Tudo mudou em 1983, com a descoberta por Briggs, Clarkson, e Aldridge (ref1) de um conjunto de fósseis, na Escócia, que mostravam impressões de tecidos moles aos quais estavam inequivocamente associados os dentículos típicos dos conodontes. A criatura que esclareceu finalmente o mistério foi este Clydagnathus windsorensis, com apenas cerca de 40 milímetros de comprimento.

O C. windsorensis mostrava vestígios de uma protuberância, uma "cabeça", onde se encontravam os elementos conodontes, um tronco dividido numa série de segmentos musculares em forma de V, e uma região caudal que mostrava a presença de raios sugestivos de uma barbatana caudal. Eis aqui em baixo uma ampliação da região da cauda (topo) e do tronco (base).

O tronco apresenta duas linhas paralelas que são um pouco difíceis de interpretar. Não parecem estar relacionados com o tubo digestivo mas sim serem vestígios de uma notocorda. A notocorda é uma espécie de tubo flexível que existe nos embriões de todos os cordados. Nalguns cordados mais "primitivos", como o anfioxo, permanece ao longo da vida do animal, fornecendo apoio para os músculos. Nos vertebrados ditos superiores, é substituída pela coluna vertebral.

Uma das características importantes dos conodontes é a existência de uma cabeça que se distingue bem do corpo do animal.

A cabeça é flanqueada por duas estruturas escuras que a maioria dos investigadores identificam como sendo olhos. Os dentículos encontravam-se em vida na frente da boca, isto é, eram um mecanismo de captura e aquisição de alimento. Mostra-se abaixo uma reconstrução possível do C. windsorensis:

A maioria dos investigadores assume hoje em dia que os conodontes pertençam aos cordados, embora a posição na filogenia seja algo incerta. Análises detalhadas dos dentículos, formados por apatite (fosfato de cálcio), mostraram no entanto uma clara analogia ao tecido ósseo celular dos vertebrados. Isto foi na altura uma grande surpresa pois admitia-se até então que o tecido ósseo dos vertebrados tivesse a sua origem nas couraças ósseas dérmicas que surgiram nalguns tipos de peixes sem mandíbulas. Neste momento tudo indica que os conodontes se incluam entre os vertebrados e as teorias para o aparecimento e evolução do esqueleto vertebrado têm vindo a ser revistas. A presença do tecido ósseo celular sugere que ou se trata de um traço ancestral dos vertebrados, perdido nos ciclóstomos (lampreias e mixinas) ou, mais provável, que os conodontes sejam parentes mais próximos dos vertebrados com mandíbulas do que dos ciclóstomos. Devo salientar, no entanto, que há contudo outros pontos de vista, quer quanto à reconstrução do animal (os "olhos" poderiam ser simples apoios cartilaginosos para o aparelho bucal), quer quanto às afinidades com os cordados.

Pander, na altura da descoberta, considerou os elementos conodontes como vestígios de um grupo de peixes até então desconhecido, e parece que afinal sempre tinha razão. Foram um grupo de animais com um sucesso incrível: duraram qualquer coisa como 300 milhões. Parte desse sucesso estaria seguramente relacionado com a função do seu dispositivo bucal, mas isso terá que ficar para uma outra contribuição.

Ficha técnica
Imagem do conodonte no início da contribuição retirada desta página da U.S. Geological Survey, do U.S. Department of the Interior.
Outras imagens e inspiração para o texto a partir do artigo de Sweet e Donoghue indicado abaixo como ref2.

Referências
(ref1) Briggs, D. E. G., Clarkson, E. N. K. & Aldridge, R. J. (1983). The conodont animal. Lethaia 16, 1-14.
(ref2) WALTER C. SWEET AND PHILIP C. J. DONOGHUE (2001). CONODONTS: PAST, PRESENT, FUTURE. J. Paleont., 75(6), pp. 1174-1184.

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