sábado, dezembro 02, 2006

A força de uma dentada ou a importância de consultar as referências originais

Esta é uma foto do fóssil de um peixe do género Dunkleosteus. Pertencia a uma linhagem já extinta de peixes couraçados, com mandíbulas, os placodermes, que espalharam o terror nos mares do Período Devónico. Eram animais pesados e provavelmente algo lentos, com uma espessa armadura feita de osso na região da cabeça e pescoço. Este animal foi notícia recentemente devido a um trabalho relativo à maior espécie conhecida deste género, o Dunkleosteus terrelli, que tería vivido há cerca de 400 milhões de anos. Enfim, não foi notícia em toda a parte, em Portugal passou despercebido, como é costume, mas no Brasil alguns jornais de grande circulação referiram-no. Quando li os comunicados de imprensa fiquei algo perplexo com os valores avançados para a força da dentada do animal. Eu em geral não acredito em nada na imprensa que obrigue os jornalistas a fazerem contas, mesmo quando se trata da aritmética mais simples, e este exemplo serviu para reforçar a minha desconfiança. [... ler mais]

O curioso neste caso foi verificar que a coisa se propagou além das páginas de jornais. O Dunkleosteus é referido, por exemplo, nesta página da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo. Devo notar que não se trata de algo exclusivamente brasileiro, encontrei a mesma coisa nas páginas da BBC e do Times. Eis aqui o excerto problemático tal como vem na página da FAPESP:

Imagine um peixe com 4 toneladas, 10 metros de comprimento e uma mordida forte o suficiente para partir um tubarão ao meio. Tinha uma força nas mandíbulas com a qual o atual rei dos mares nem poderia sonhar, capaz de exercer uma pressão equivalente ao peso de mais de 5,5 mil quilos.

Mas o tubarão pode respirar aliviado, pois o Dunkleosteus terrelli está extinto há 400 milhões de anos. Os cientistas sabiam que o antigo animal foi um predador dominante, mas não tinham noção de sua força. Um novo estudo, feito nos Estados Unidos, destaca a característica mais notável do antigo peixe: a mordida, que descobriram tão forte quanto a do tiranossauro.


O ênfase a negrito é meu, e marca as passagens problemáticas. Vejamos então o que diz o trabalho original, da autoria de Philip Anderson e Mark W. Westneat, publicado na revista Biology Letters (ref1). Numa tradução livre do resumo:
Os placodermes eram um grupo diversificado de peixes couraçados que dominaram os ecossistemas aquáticos do Período Devónico, de 415 a 360 milhões de anos atrás. As mandíbulas em lâmina de predadores como o Dunkleosteus sugerem que estes animais foram os primeiros vertebrados a usarem a rápida abertura da boca e uma dentada poderosa para capturar e fragmentar presas fugidias antes da ingestão. Desenvolvemos aqui um modelo biomecânico da força e dos movimentos durante a alimentação no Dunkleosteus terrelli que revela um crânio altamente cinético guiado por um mecanismo de carácter único com quatro junções. O sistema de junções tem uma transmissão de alta velocidade para abertura das mandíbulas, produzindo uma fase de rápida expansão semelhante à dos peixes modernos que usam a sucção durante a captura de presas. Os músculos de fecho das mandíbulas impulsionam uma dentada extraordinariamente forte, com uma estimativa máxima para a força da dentada de 4,400 N na ponta da mandíbula e mais de 5,300 N nas placas dentárias da rectaguarda. Este valor da força de dentada é o maior de todos os peixes vivos ou fósseis e está entre as mais poderosas dentadas nos animais.

O N é o símbolo do Newton, uma unidade de força. Como qualquer estudante de física de liceu é suposto saber, um corpo de 1 kg de massa, em repouso sobre uma superfície, exerce sobre essa superfície uma força de 9.8 N, logo 4400 N correspondem a um peso de 449 kg, e 5300 N a um peso de 540 kg, Não é claro como isto se relaciona com o resumo da imprensa, pois eles falam de pressão, mas suponho que seja força, pois não é dada nenhuma unidade de área. Nesse caso, alguém se esqueceu de dividir por 10 (está bem, 9.8 mas vais dar ao mesmo).

A dentada do Dunkleosteus era forte mas não muito acima do que alguns animais modernos conseguem. Por exemplo, as hienas mordem com uma força de cerca de 4,500 N. Deve notar-se aliás que, contrariamente ao que aparece em alguns dos textos na imprensa, como mordida era bastante mais fraca do que aquilo de que o Tyrannosaurus rex era capaz. A análise directa de vestígios de dentadas em fósseis mostra que o T. rex seria capaz de gerar forças acima de 13,400 N num só dente, ou seja 1367 kg-força. Aqui é curioso notar que a versão do Times Online, que também erra pelo tal factor de dez, dando os tais 5,500 kg para o Dunkleosteus, usa a conversão correcta para o tiranossauro. Numa tradução da parte relevante desse comunicado de imprensa:
Uma nova análise do crânio fossilizado da criatura mostrou que tinha a mais poderosa dentada registada. Como comparação os cientistas, estimam que a dentada do T. rex teria tido uma força de cerca de 1,360kg.

Aqui se vê a importância de um factor de dez, a primeira frase está completamente errada. Aliás, como eu referi, o valor de 1367 kg é para apenas um dente. Mesmo admitindo, numa estimativa conservadora, como faz Emily Rayfield (ver ref2), que numa dentada a força total se aplicaria fundamentalmente nos dois dentes maiores, e que nos restantes seria proporcional ao tamanho, o Tyrannosaurus rex seria capaz de gerar pelo menos 31,000 N, ou seja bastante mais que o Dunkleosteus. Esta é a estimativa mais baixa: dependendo de como a dentada era aplicada o T. rex poderia mesmo chegar a 156,000 N, ou seja 16,000 kg-força. O tiranossauro estava claramente num outro campeonato no que diz respeito às mordidas.

Apesar de tudo o Dunkleosteus mordia com força, e o método usado na captura de presas era realmente fabuloso. O Dunkleosteus conseguia abrir a boca numa fracção de segundo, aspirando literalmente as criaturas próximas, que eram então despachadas pelas lâminas nas suas mandíbulas.

Para lá do pescoço o animal não era couraçado e o aspecto era um pouco incerto. Eis uma possível reconstrução:

Para uma reconstrução mais ameaçadora, e com direitos reservados pela autora, encontrei este trabalho de Karen Carr.

Já agora, o que é válido para a imprensa é ainda mais válido bara os blogues, incluindo este. De certeza que também devo ter uns enganos valentes a espreitarem algures nos arquivos. Daí a importância de citar as fontes e se possível visitar os originais.

Ficha técnica
Imagem no início da contribuição cortesia de Cas Liber, retirada da Wikimedia Commons.
Ilustração cortesia de Frederik Spindler, retirada da Wikimedia Commons.

Referências
(ref1) Philip S.L. Anderson and Mark W. Westneat (2006). Feeding mechanics and bite force modelling of the skull of Dunkleosteus terrelli, an ancient apex predator. Biology Letters. Laço DOI.
(ref2) Rayfield E. J. (2004). Cranial mechanics and feeding in Tyrannosaurus rex. Proceedings of the Royal Society of London, B. 271, 1451-1459. Laço DOI.

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