domingo, dezembro 03, 2006

O Mundo do Hobbit: a pequena senhora das Flores

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Esta é a capa da revista que espantou o mundo. Aquele pequeno crânio esteve na origem de um certo frenesim noticioso que percorreu todo o globo. A surpresa tinha na verdade começado um pouco antes, no seio da equipa de descobridores. Como explicaram os membros da expedição que encontrou os vestígios na caverna de Liang Bua, ninguém ficou mais surpreendido que eles mesmos. Um dos membros da equipa, Peter Brown, disse mesmo que teria ficado menos espantado se tivesse descobrido um extra-terrestre. Originalmente, a expedição destinava-se a investigar uma descoberta algo controversa feita uns quantos anos antes na Ilha das Flores: artefactos em pedra que teriam sido feitos há 840,000 anos. O presumível autor desses utensílios seria o Homo erectus, e eram restos dessa espécie que o grupo de cientistas indonésios e australianos buscava na ilha. Ninguém estava à espera daquilo que se descobriu em 2003, no meio de ossadas de elefantes estegodontes anões, ratos gigantes, e lagartos predadores enormes: vestígios do que poderá ser uma nova espécie de seres humanos. [... ler mais]

A descoberta foi anunciada ao mundo num artigo de Peter Brown e colegas na revista Nature (ref1). Numa tradução livre do resumo:
Hoje em dia aceita-se geralmente que um único género de hominines, o Homo, estava presente no Pleistocénico da Ásia, representado por duas espécies, Homo erectus e Homo sapiens. Ambas as espécies são caracterizadas por um maior tamanho do cérebro, maior altura corporal e dentes menores relativamente ao Australopithecus do Pliocénico da África. Relatamos aqui a descoberta, do Pleistocénico das Flores, Indonésia, de um hominíneo adulto com estatura e capacidade craniana de respectivamente 1 metro e 380 centímetros cúbicos, iguais aos mais pequenos austrolopitecíneos conhecidos. A combinação de características primitivas e derivadas coloca este hominíneo numa nova espécie, Homo floresiensis. A explicação mais provável para a sua existência nas Flores é o isolamente prolongado, com o subsequente nanismo insular endémico, de uma população ancestral de H. erectus. O H. floresiensis mostra que o género Homo é mais variado do ponto de vista morfológico e mais flexível nas suas respostas adaptativas do que se julgava anteriormente.

Na verdade tratava-se de uma hominínea, adulta, com o tamanho de uma criança moderna de cerca de 3 anos de idade. O mais espantoso nesta pequena senhora das Flores até nem é a altura, o que surpreende mesmo é a capacidade craniana. As populações humanas modernas de pequena estatura, como os pigmeus, têm um cérebro com tamanho comparável ao de populações de maior estatura. Isso tem a ver com a forma como se dá a redução de tamanho, por paragem do crescimento durante a puberdade. Com um cérebro cerca de três vezes menor que o do um H. erectus, o H. floresiensis não pode ser simplesmente o equivalente de um pigmeu para o erectus. Os autores propõem um outro mecanismo, o chamado nanismo insular. Muitas espécies de animais de grande porte mostram uma evolução para formas menores, ao longo do tempo, quando ficam restringidos a ilhas. Por exemplo, muitas das ilhas do Mediterrâneo albergaram até recentemente populações de elefantes que, quando adultos, eram mais pequenos que um burro.

Mesmo admitindo que se trata de nanismo insular, a redução de tamanho é apesar de tudo demasiada. Um ser humano moderno tem aquilo a que se chama um coeficiente de encefalização de 6, ou seja um cérebro que é cerca de 6 vezes maior do que o esperado para um mamífero do seu tamanho. O Homo erectus tinha 4 como coeficiente de encefalização. Ora o Homo floresiensis tinha uma encefalização entre 2.5 e 3, comparável aos chimpanzés e hominídeos primitivos como o Australopithecus. Ou seja, admitindo uma origem relacionada com o H. erectus, o H. floresiensis teria seguido algo não anteriormente observado na evolução humana: a diminuição das capacidades cerebrais. Este é um dos aspectos significativos da história e está em grande parte por detrás da polémica que abordarei em contribuições posteriores.

A pequena senhora das Flores tinha um tamanho e uma capacidade craniana comparáveis ao Australopithecus. Por que razão é então incluída no nosso género? Porque não num género próprio, sei lá, Floresianthropus? Os autores notam alguns aspectos do esqueleto que parecem apontar a pertença ao género Homo. Para além disso há a capacidade de cruzar o oceano para chegar à ilha. Na gruta onde foram encontrados os ossos dos floresiensis existem também vestígios de fogo, e utensílios de pedra contemporâneos desses mesmos ossos. Há ainda a questão da idade dos vestígios, e essa foi também uma enorme surpresa. Abordarei todos esses aspectos nas contribuições que se seguem, a começar pela questão da datação dos vestígios.

Referências
(ref1) Brown P., et al (2004). A new small-bodied hominin from the Late Pleistocene of Flores, Indonesia. Nature 431, 1055-1061. Laço DOI.

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