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Para perceber os termos que vou utilizar em seguida, sugiro, aos que não o fizeram ainda, a leitura da minha contribuição sobre a filogenia dos golfinhos, pois convém ter presente o cladograma que aí apresento. O tucuxi pertence a um dos grupos desse cladograma, os delfinídeos, que se caracterizam pelos tais assobios tonais; apenas 4 das 32 espécies do grupo não os utilizam. Ser tonal significa concentrar a maior parte da energia acústica numa faixa de frequências muito estreita. Eis em baixo um exemplo da intensidade das vocalizações, em função da frequência da emissão, para o tucuxi:

Outros golfinhos, como por exemplo as belugas, conhecidas como "os canários do oceano", utilizam abundamente os seus dotes vocais, mas não recorrem a nada com um carácter tonal tão marcado. Na verdade, nenhum dos membros dos Phocoenidae ou dos Monondontidae parece incluir os "assobios" no seu reportório vocal. Isso levou alguns autores a sugerirem que os assobios seriam uma inovação associada apenas aos delfinídeos. Ora os botos-vermelhos (Inia geoffrensis) também produzem vocalizações. Se as vocalizações dos botos-vermelhos fossem homólogas às dos delfinídeos, dadas as relações de parentesco mais distantes dos botos-vermelhos com os restantes grupos de golfinhos, poder-se-ia avançar com uma hipótese algo diferente: os assobios seriam algo que existiria num antepassado comum aos botos e restantes golfinhos, e que teria sido perdida posteriormente durante a evolução das belugas, narvais e focenídeos.
Para clarificar o tipo de vocalização efectivamente produzida pelos botos, Jeffrey Podos, Vera da Silva e Marcos Rossi-Santos discutem num estudo publicado na revista Ethology (ref1) os resultados de cerca de 40 horas de registos sonoros obtidos no lago Mamirauá. Numa tradução livre do resumo:
Os golfinhos oceânicos (Odontoceti: Delphinidae) produzem assobios tonais, cuja estrutura e função são razoavelmente bem caracterizadas. Bastante menos se conhece sobre as origens evolutivas dos assobios dos golfinhos, incluindo informação básica sobre a estrutura vocal em grupos taxonómicos irmãos como os golfinhos fluviais dos Platanistidae. Caracterizamos aqui as vocalizações do golfinho do Rio Amazonas (Inia geoffrensis), para o qual foram relatados assobios mas que não foram bem documentados. Estudámos Inia na Reserva de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá na Amazónia Brasileira. Durante 480 blocos de 5 minutos (mais de 5 semanas) monitorizámos e gravámos vocalizações, anotámos o tamanho do grupo e a actividade, e registámos as subidas à superfície para respiração e para mergulho. Globalmente, a produção vocal dos Inia estava correlacionada positivamente com as subidas para mergulho, sugerindo que as vocalizações estão associadas com a alimentação. As análises acústicas mostraram que as vocalizações do Inia são estruturalmente distintas dos assobios delfinídios simples, incluindo aqueles do delfinídio Sotalia fluviatilis registado no nosso local. Estes dados apoiam a hipótese de que os assobios são uma vocalização derivada única aos delfinídeos.
O resumo é algo curto, e alguns dos pontos merecem ser apresentados com um pouco mais de detalhe. Jeffrey Podos e colegas referem que os botos se mostraram muito comedidos, diga-se mesmo avaros, nas suas vocalizações. Cada boto-vermelho só vocalizava em média uma vez a cada 10.1 minutos, e em 40% dos blocos de 5 minutos não foram registadas quaisquer vocalizações. Os autores referem mesmo que cerca de metade das vocalizações dos botos foram produzidas em apenas 10% dos blocos. Contrastando com esta escassez sonora, os tucuxis foram observados a assobiar em 94% das vezes em que foram detectados.
Quanto ao que os botos estavam a fazer nos períodos em que vocalizavam, os autores do artigo, que não podiam observar abaixo da água, pois era bastante turva, conseguiram algumas pistas pela forma como os botos ascendiam à superfície. Distinguiram duas formas distintas. Uma era a subida horizontal ou para respiração. Nesta tipo de subidas o animal trazia a cabeça à tona, ou ascendia com a cabeça e tronco alinhados:


Quando se analisa a intensidade das vocalizações como função de frequência a que são emitidas, vê-se claramente que as emissões do boto são muito diferentes das do tucuxi. Eis um exemplo de emissões de um boto:

Os autores falam um pouco mais sobre as diferenças e possíveis utilizações das vocalizações do boto e dos delfinídeos no final do artigo:
As funções dos assobios dos golfinhos começaram a ser elucidades. Por exemplo, surgem na comunicação entre mãe e cria, e interações nos grupos. O nosso estudo mostro-se pouco esclarecedor sobre a função do comportamento vocal dos Inia. Poderão ser utilizadas para facilitar a pesca cooperativa ou serem apenas um efeito colateral sem nenhuma função particular. Não se encontraram indícios de outros tipos de utilização. Por exemplo, mãe e crias não vocalizam quando se reunem após uma separação temporária, e não foram registadas respostas ao passar de vocalizações gravadas.
Ou seja, há ainda muito que estudar.
Há ainda outro aspecto a merecer a atenção dos autores: poderão as vocalizações dos botos ser um precursor dos assobios dos delfinídeos? Jeffrey Podos e colegas pensam que não. Um dos argumentos que avançam é que o roaz corvineiro (Tursiops truncatus), um delfinídeo, produz vocalizações, chamadas "latidos", que são muito semelhantes às dos botos. O mecanismo que as produz deverá por isso ter sido conservado do ponto de vista evolutivo. Mas a diferença mais importante tem a ver com a forma como a frequência no máximo das emissões varia com o tamanho dos animais. Isso é algo que se mostra na figura abaixo para o boto-vermelho (triângulo) e várias espécies de delfinídios (círculos).

Para já despeço-me do boto-vermelho, mas ficarei atento a novidades. Voltarei no entanto em breve aos delfinídeos, para falar nas funções dos assobios. Se, como tudo parece apontar, se trata de uma característica única dos delfinídeos, para que serve e o que despoletou essa inovação?
Ficha técnica
Imagens "fotográficas" retirada das páginas do Projeto Boto.
Restantes figuras e inspiração para o texto retiradas do artigo abaixo (ref1).
Referências
(ref1) Jeffrey Podos, Vera M. F. da Silva & Marcos R. Rossi-Santos (2002). Vocalizations of Amazon River Dolphins, Inia geoffrensis: Insights into the Evolutionary Origins of Delphinid Whistles. Ethology 108, 601-612. Laço DOI.
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