terça-feira, novembro 14, 2006

Mais sobre a ansiedade das jovens ciganas face aos turistas

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Nota: Esta contribuição é a continuação desta aqui.

A ave cigana, Opisthocomus hoazin, é um animal bastante interessante, e não são apenas os adultos que despertam a atenção dos visitantes humanos. A observação das crias, e da sua interação com os adultos, correspondem à época alta da actividade turística em torno destas aves.. Só que há um aspecto do ciclo de vida destas aves que os "ecoturistas" e os operadores "ecoturísticos" têm que considerar com cautela. Por volta das duas semanas de vida as crias da ave cigana abandonam o ninho e passam o tempo empoleiradas nos ramos, tal como se mostra na imagem. Ainda não conseguem voar, e são alimentadas com secreções dos adultos. Para escapar aos predadores possuem um mecanismo de fuga peculiar, que eu já tinha referido em contribuições anteriores: quando se sentem seriamente ameaçadas lançam-se à água, escondem-se e passado algum tempo trepam a uma outra árvore com a ajuda das garras que possuem nas asas. Só que isto deixa marcas nas pequenas criaturas, e num ambiente em que os seres humanos estão constantemente a "importuná-las" a mortalidade dos pequenitos dispara de forma dramática. [... ler mais]

Na primeira parte dedicada ao ecoturismo e aves ciganas, terminei com a citação de parte do resumo de um artigo de Antje Müller e colegas (ref1) em que se dizia que os números da mortalidade nas zonas expostas ou não expostas a turistas diferem de forma vincada. Para perceberem realmente a diferença que os visitantes fazem mostro abaixo uma figura que construí juntando três gráficos desse artigo.

Cada uma das cores representa um ano de observações, entre 1996 e 1998. Os números da taxa de sobrevivência variam de ano para ano, mas todos mostram um mesmo padrão. Nos ninhos não perturbados há uma mortalidade mais ou menos regular durante as primeiras 4 semanas de vida das aves, que depois pára, com cerca de 60 a 80% dos pintos a atingirem as 8 semanas. Nos ninhos sujeitos a visitas dos turistas há um aumento muito claro na mortalidade a partir das duas semanas de vida, e apenas entre 20 a 50% dos animais sobrevivem até às 8 semanas. Os autores do artigo notam que o ano em que as crias expostas a turistas mostraram maior taxa de sobrevivência foi também o ano em que houve menos visitas durante o período de Julho a Agosto: 938 em 1997, a comparar com 1461 visitas em 1996 e 1298 no ano de 1998. Este facto é um argumento muito forte a favor da hipótese de um efeito directo das visitas humanas no sucesso reprodutivo das aves ciganas.

Os autores verificaram ainda aspectos relativos ao peso das avezitas, e também da resposta hormonal dos animais a uma situação de grande tensão emocional. O que os cientistas fizeram foi capturá-los nos ninhos, poleiros, ou mesmo na água, retirando-lhes em seguida pequenas quantidades de sangue para estudo. Os animais foram depois devolvidos ao local onde estavam inicialmente. Continuando a tradução do resumo iniciada na contribuição anterior.
Os juvenis, mas não as avezitas mais jovens ainda no ninho, que viviam em locais expostas a turistas, tinham menor massa corporal e mostravam uma resposta hormonal mais demorada à ansiedade induzida experimentalmente, quando comparados a indivíduos em locais não perturbados. Estes dados sugerem que as aves ciganas juvenis são susceptíveis à ansiedade induzida pelos turistas que por sua vez pode ser responsável pela menor sobrevivência. Contrastando com isso, as aves adultas que se encontravam a incubar estavam aparentemente habituadas à presença de turistas, porque a distância a que levantavam vôo nos ninhos expostos aos turistas eram 50% menores que nos locais não expostos.

As aves adultas a incubarem os ovos no ninho, em locais sem turistas, fugiam em média quando um ser humano se aproximava a menos de 40 metros do ninho. Em locais turísticos, só levantavam vôo se alguém se aproximasse a cerca de menos de 20 metros do ninho. Este ponto é importante: os operadores turísticos diziam que não se notavam efeitos adversos sobre as aves, baseando-se, é claro, no que sucedia com os animais adultos e pediam mesmo o aumento da área onde os guias podiam levar visitantes.

Só que mesmo este aspecto não é claro. Os autores notam que é possível que as aves mais assustadiças tenham simplesmente abandonado a área, e que os adultos que permanecem nessa região sejam animais naturalmente mais tolerantes. Logo não se trata necessariamente de habituação. Mesmo nos adultos os efeitos das visitas humanas ainda estão em aberto.

O resumo termina com:
As nossas descobertas mostram que os indivíduos em diferentes estádios de vida mostram susceptibilidades diferentes ao turismo. Sugerimos que mesmo apenas observar os animais durante o período reprodutivo pode ameaçar a sua sobrevivência, mas que uma gestão científica correcta das zonas de acesso interdito e instruções específicas para cada área poderão reduzir os efeitos adversos.

O ênfase a negrito é meu. Obviamente que a solução ecológica ideal seria deixar as aves em paz. Tem no entanto que se compreender que os milhares de visitantes que permanecem alguns dias nas pousadas locais, e usam guias nas suas deslocações, representam empregos e um reforço financeiro importante para a economia dos habitantes humanos nessa área. Uma situação aceitável seria manter um fluxo turístico economicamente viável sem fazer perigar as aves que sustentam esse mesmo turismo. Este estudo sugere que isso será possível, desde que se tenha em consideração os aspectos relacionados com a ansiedade dos juvenis deste animal fascinante. É preciso, entre outras coisas, que as pessoas interessadas em observar as aves ciganas evitem as semanas críticas entre a data em que as avezitas abandonam o ninho e a data em que começam a voar. Eu compreendo o fascínio pelas crias mas há que "limitar os estragos".

Noto ainda que este estudo não incluiu outros factores como o impacto que uma população humana maior e mais rica, e infrastuturas ligadas a um número razoável de turistas, como a rede de saneamento básico, tratamento de esgotos, ocupação do espaço para pousadas e locais de lazer, poderão ter sobre o meio ambiente local. O "eco" no ecoturismo não significa nada se não for acompanhado de uma regulamentação apertada e de estudos científicos no terreno, mas com cautela pode ser um aspecto importante nos programas de conservação.

Por incrível que pareça ainda vou voltar a estes animais, mas para analisar a filogenia destas aves, e a sua relação de parentesco algo controversa com outros grupos de aves. Demorarei algum tempo com outros temas, mas é provável que na próxima semana apareça a questão: serão as aves ciganas parentes das pombas da paz ou das gigantescas aves do terror?

Ficha técnica
Imagens retiradas desta página do Biozentrum der Bayerische Julius-Maximilians-Universität Würzburg, ou então da tese de Antje Müllner de que falei nesta contribuição.

Referências
(ref1) Antje Mullner, K. Eduard Linsenmair, Martin Wikelski (2004). Exposure to ecotourism reduces survival and affects stress response in hoatzin chicks (Opisthocomus hoazin). Biological Conservation 118, 549–558. Laço DOI.

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