domingo, novembro 26, 2006

Paleogenómica humana

Vivemos neste momento uma verdadeira revolução na biologia com o aparecimento da genómica, em particular com o conhecimento dos genomas completos dos seres vivos. Depois da fanfarra que acompanhou o anúncio da sequenciação do genoma humano, outros se têm seguido a um ritmo razoável. Nos tempos mais recentes lembro-me do genoma do chimpanzé, da abelha melífera, e do ouriço do mar. São tempos fantásticos de descoberta, e isto é apenas o prenúncio do que está para vir. Mas se a genómica é já de si algo fantástico, nos últimos tempos tem-se falado com grande insistência numa coisa chamada paleogenómica, ou seja a sequenciação do genoma de criaturas extintas. Entre essas criaturas extintas a serem estudadas inclui-se mesmo um membro do género Homo, nada mais nada menos que o Homo neanderthalensis. [... ler mais]

Nas últimas semanas foram divulgados dois artigos sobre a sequenciação de partes significativas do genoma do homem de neandertal. Eu tinha referido os trabalhos em curso numa contribuição anterior, mas desta vez é mesmo a valer. Ambos os trabalhos usam um mesmo fragmento de um neandertal encontrado numa gruta na Croácia e que teria vivido há qualquer coisa como 38,000 anos. Um dos estudos recuperou já mais de 1 milhão de pares de bases (os constituintes do ADN) de material genético desse neandertal. Esse artigo, de Richard Green e colegas, foi publicado na revista Nature (ref1). Numa tradução livre do resumo:

Os neandertais são o grupo hominídio extinto que está relacionado de mais perto com os humanos contemporâneos, pelo que o seu genoma oferece uma oportunidade única para identificar mudanças genéticas específicas a humanos completamente modernos do ponto de vista anatómico. Identificámos um fóssil com 38,000 anos de neandertal que estava excepcionalmente livre de contaminação de ADN de humanos modernos. A sequenciação directa de alta cadência de uma amostra de ADN deste fóssil forneceu até a este momento mais de um milhão de pares de bases de sequências de ADN nuclear hominóides. A comparação com os genomas humano e do chimpanzé revela que as sequências de ADN dos humanos modernos e dos neandertais divergiram em média 500,000 anos atrás. Os recursos fósseis e a tecnologia existente são neste momento suficientes para iniciar um esforço de sequenciação do genoma do neandertal.

O ênfase a negrito a meu e indica um facto muito importante a respeito desta amostra. O ADN recuperado do fóssil estava partido em inúmeros fragmentos com umas poucas centenas de pares de bases. Esses fragmentos foram tratados numa espécie de emulsão em que cada fragmento de ADN se assoc ia a uma espécie de conta oleosa suspensa em água. O procedimento de identificação do material na amostra, o chamado passo de pirossequenciação, é fantástico mas ficará para outra altura. As minhas últimas contribuições têm sido gigantescas e tenho perdido leitores. Digamos só que envolve fibras ópticas, luciferase (a enzima que faz os vagalumes brilharem) e um CCD para apanhar a luz.

Num só varrimento do método de sequenciação os cientistas são capazes de recuperar as sequências de centenas de milhar de fragmentos ao mesmo tempo. O que é uma boa coisa pois a maior parte do material genético é ADN de microorganismos que colonizaram o osso, ou que de alguma forma contaminaram a amostra. Esse ADN dos microorganismos é um problema, mas como temos o genoma completo do homem moderno poder ser identificado como muito diferente do humano e excluído da análise. Só que a parecença do ADN do neandertal com os humanos modernos coloca um problema. O fragmento de osso estudado foi manuseado por seres humanos modernos, logo está contaminado com ADN de Homo sapiens. O problema é sério. Em geral mesmo depois de os cientistas lavarem os fragmentos de osso, eliminarem a superfície, trabalharem em ambientes esterilizados e controlados, retirarem apenas amostras do anterior do osso, ainda assim encontram sempre ADN de humanos modernos, em quantidades impressionantes.

Para avaliarem a contaminação os cientistas deste estudo analisaram 70 amostras de ossos e dentes de neandertal. Desses 70 escolheram seis em melhores condições em que procuraram o ADN não do núcleo mas sim das mitocôndrias, usando amostras de 100 a 200 miligramas de osso. As sequências de ADN mitocondrial (ADNmt) dos neandertias são muito semelhantes mais ainda assim fáceis de distinguir do ADNmt do homem moderno. Os resultados foram os seguintes:
Enquanto apenas cerca de 1% do ADNmt presente nas três amostras da França, Rússia e Uzbequistão eram do tipo-neandertal uma amostra da Croácia e uma de Espanha continham 5% e 75% de ADNmt tipo-neandertal. Um osso (Vi-80) da gruta de Vindija na Croácia, destacou-se por possuir ADMmt de neandertal em aproximadamente 99% dos segmentos com 63 pares de base e aproximadamente 94% dos segmentos de 119 pares de bases,

Claro que foi este Vi-80 a ser utilizado neste estudo, pois, admitindo que a frequência de contaminação é a mesma para o ADN nuclear, é uma amostra quase limpa.

Não vou discutir os resultados relativos a comparações com o genoma do chimpazé e dos humanos modernos, pois embora pareça muito um milhão de pares de bases é na verdade muito pouco. Faltam 3 ordens de grandeza mais para ter o genoma completo. Os autores estão no entanto optimistas e dão mesmo um prazo curto para chegar lá:
Os resultados apresentados aqui foram obtidos a partir de aproximadamente um quinze avos de uma amostra preparada com cerca de 100 miligramas de osso. Para conseguir a cobertura completa do genoma neanderal (3 gigabases) sem melhorias na tecnologia, seriam necessários 20 gramas de osso e 6,000 varrimentos da versão corrente da plataforma 454 de sequenciação. Embora no presente essa seja uma tarefa avassaladora, podem facilmente antever-se melhorias técnicas nos procedimentos descritos aqui que fariam a recuperação de sequências de ADN cerca de 10 vezes mais eficiente (resultados nossos não publicados). Com essa perspectiva em vista, iniciámos recentemente um projecto que visa conseguir uma versão preliminar do genoma neandertal no prazo de dois anos.

Ou seja, é para breve.

Ficha técnica
Imagem do neandertal obtida no Neanderthaler Museum.

Referências
(ref1) Green, R. E. et al. (2006). Analysis of one million base pairs of Neanderthal DNA. Nature 444, 330–336. Laço DOI.

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