Eis que volto a deixar o meu blogue às moscas. Nesta imagem vêem-se dois machos da mosca-do-vinagre, Drosophila melanogaster, envolvidos numa cena de pancadaria. À margem da cena de pugilato, encontra-se uma terceira mosca, uma fêmea, caída por terra. A fêmea não adormeceu devido ao tédio causado pelo combate, o seu fim foi um pouco mais sinistro. Muitas vezes as fêmeas não se mostravam impressionadas pelos combatentes e iam-se embora. Depois de descobrirem que aos machos tanto fazia se a fêmea estava viva ou morta, os cientistas optaram por anestesiá-las com dióxido de carbono e decapitá-las antes de as colocarem nas arenas onde os machos se guerreavam. O trabalho por detrás desta cena macabra é muito sério: destina-se a estudar os fundamentos da agressividade, um dos aspectos mais importantes do comportamento animal. [... ler mais]
Por quê as moscas? Bem, para animais tão simples, com um cérebro menor que a cabeça de um alfinete, as moscas do vinagre possuem um comportamento elaborado. Os machos da espécie são territoriais e estabelecem relações de dominância. São também organismos baratos, que se podem produzir em grande quantidade, custam pouco a manter, e ocupam pouco espaço. Outra vantagem é que o genoma completo destes animais foi sequenciado, e pode ser manipulado para afectar de forma selectiva subconjuntos de neurónios do sistema nervoso central das moscas, o que permite identificar os mecanismos por detrás de traços do comportamento. Há ainda vantagens nos aspectos éticos: poucos grupos de activistas dos direitos dos animais se manifestam de forma tão violenta e irracional, quanto a experiências em moscas, como o fazem em relação a experiências em primatas ou ratos. Para além disso, há sempre supresas, mesmo em criaturas que se nos afiguram simples. É isso que sucede com o estudo referente à imagem: as moscas do vinagre possuem capacidades de memória e reconhecem mesmo outros indivíduos.
O estudo em questão, que envolve os aspectos da decapitação e lutas entre machos com intuitos necrofílicos, foi publicado por Alexandra Yurkovic e colegas na revista Proceedings of the National Academy of Sciences USA (ref1). Numa tradução livre do resumo:Os machos da Drosophila melanogaster (estirpe Canton-S) exibem agressividade na competição por recursos, ao defenderem o território, e para acesso a parceiros sexuais. No estudo descrito aqui, perguntámo-nos: (i) quanto tempo lutam as moscas; (ii) se as moscas adoptam estratégias distintas de vencedor e perdedor quando se estabelecem relações hierárquicas; (iii) se em lutas subsequentes, as moscas exibem mudanças na estratégia de luta decorrentes da experiência; e (iv) se as moscas lutam de maneira diferente em segundas lutas contra oponentes conhecidos ou desconhecidos.
Os pares de moscas macho lançadas na arena eram aquilo que os autores designam por animais ingénuos do ponto de vista social, isto é, que não tinham tido interações anteriores com indivíduos da mesma espécie. Dois dias antes da experiência as moscas macho foram anestesiadas com dióxido de carbono e foi-lhes feita uma marca com tinta acrílica que permitiu aos investigadores reconhecerem as moscas individualmente. Para além da "noiva-cadáver", também havia alimento em jogo: o copo onde as moscas lutavam possuía uma espécie de papa usada para alimentar as moscas, à qual tinham sido adicionadas umas gotinhas de sumo de maçã. Para terem um ideia da escala, o copo tinha um centímetro de altura, e um centímetro e meio de diãmetro. Trabalhar com estes animais tem realmente o seu quê de económico.
Continuando com o resumo:Os resultados mostraram que as moscas lutaram durante até 5 horas. À medida que se estabeleciam relações hierárquicas, as estratégias de comportamento mudavam: os vencedores progressivamente investiam mais e recuavam menos, enquanto os perdedores progressivamente investiam menos e recuavam mais. Os encontros entre as moscas eram frequentes durante os primeiros 10 minutos do emparelhamento mas depois caíam de forma significativa.
Ou seja, as moscas percebiam mais ou menos rapidamente qual seria o vencedor, que se mostrava cada vez mais agressivo, enquanto que o animal que percebia ser o perdedor, se mostrava mais receoso. Um aspecto pouco usual destes perdedores era que eles apesar de tudo enfrentavam repetidamente o vencedor. Os autores especulam que dado o facto de as moscas não possuirem armas de combate perigosas, não há um verdadeiro perigo à sobrevivência do perdedor, e na verdade é vantajoso para eles voltarem à superfície onde há alimento, embora mantenham as retiradas como o seu comportamento preferido. Os vencedores tendiam a permanecer na vizinhança da fêmea sem cabeça, onde passavam a maior parte do tempo, e o seu comportamento de combate preferido era investir na direcção de um perdedor que se aproximasse.Para responder a se as moscas recordavam combates anteriores, elas foram re-emparelhadas com opositores familiares ou não familiares após 30 minutos de separação. Nos emparelhamentos familiares, houve menos recontros durante os primeiros 10 minutos da luta que nos emparelhamentos com opositores não familiares, e antigos perdedores lutaram de forma diferente contra vencedores familiares que contra vencedores não familiares.
Este é um resultado surpreendente: as moscas do vinagre reconhecem indivíduos. Os autores referem que o mecanismo deste reconhecimento é desconhecido. Sugerem no entanto que durante os toques no corpo dos adversários durante os movimentos de investida, sejam capazes de se aperceber de diferenças nos hidrocarbonetos da cutícula. Um outro resultado inequívoco da experiência tem a ver com a memória que os perdedores guardam dos combates, que influencia o seu desempenho posterior:Os antigos perdedores perderam ou então não se chegou a uma decisão, em todos os segundos combates em emparelhamentos com vencedores conhecidos ou desconhecidos ou com moscas ingénuas. Emparelhamentos vencedor/vencedor, perdedor/perdedor, e ingénuo/ingénuo mostraram que os perdedores utilizaram estratégias de fraca intensidade em lutas posteriores e eram incapazes de formar novas relações hierárquicas, comparados com os vencedores ou com moscas socialmente ingénuas. Estes resultam apoiam fortemente a ideia de que a aprendizagem e memorização acompanham as mudanças de estatuto que resultam das lutas das moscas da fruta.
Pelos vistos os perdedores ficam "traumatizados" e tornam-se perdedores crónicos.
Ficha técnica
Imagem cortesia do Kravitz Lab da Harvard Medical School.
Referências
(ref1) Alexandra Yurkovic, Oulu Wang, Alo C. Basu, and Edward A. Kravitz (2006). Learning and memory associated with aggression in Drosophila melanogaster. PNAS 103: 17519-17524. Laço DOI.
quinta-feira, novembro 30, 2006
Os perdedores não esquecem
Por CDG laço permanente
Etiquetas: Biologia
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