Uma certa sobranceria é normal entre vizinhos e dizer mal das pessoas do outro lado da fronteira é um daqueles pequenos prazeres que, se bem que mesquinho, a maioria das pessoas aprecia secretamente, mesmo que se mostrem escandalizados e finjam que não. E confesso que descobri hoje que também sou culpado disso. Quando li no John Hawks Anthropology Weblog que os espanhóis se preparavam para votar uma lei para reconhecer aos grandes símios direitos iguais aos dos seres humanos pensei logo para comigo: só mesmo em Espanha. Mas depois perguntei-me se a notícia não seria uma piada, talvez o dia das mentiras seja mais tarde no país vizinho. [... ler mais]
Após uma busca na Internet encontrei alguns laços e blogs que discutiam a notícia. Traduzida a coisa dá:Com a justificação de o homem partilhar 98.4% dos genes com os chimpanzés, 97.7% com os gorilas e 96.4% com os orangutangos, o grupo socialista apresentará um projecto que pede "direitos humanos" para os símios. Uma organização internacional com o mesmo nome do projecto procura uma declaração da ONU sobre os direitos dos símios e defende direitos iguais aos dos "menores de idade e aos incapacitados mentais da nossa espécie", segundo os responsáveis do projecto.
O ênfase é meu, e levou-me a desconfiar ainda mais da notícia, se bem que a imprensa manobre muitas vezes as notícias colocando as palavras fora do contexto, para conseguir mais sensacionalismo. A fonte pode ser encontrada aqui, ou aqui. Mas tudo parece ser especulação mediática desenfreada. Há de facto um projecto de lei sobre maus-tratos e utilização de grandes símios em espectáculos de circo e experiências. Depois de procurar um bocado encontrei um artigo que me pareceu corresponder melhor à verdade dos factos:A ministra do meio ambiente, Cristina Narbona, assegurou hoje que a proposta de lei apresentada pelo Proyecto Gran Simio como o apoio do PSOE não pretende em caso algum reconhecer "direitos humanos" a estes animais desmentindo o sentido com que algumas informações o interpretaram. "Isso não está correcto, houve uma interpretação equivocada", salientou.
E mais adiante"Em caso algum se criam ou se defendem direitos humanos para os símios; em nenhum momento se fala de outorgar direitos humanos aos grandes símios", reiterou.
Mais uma vez o ênfase é meu. As citações foram encontradas aqui na cadenaser. Embora este artigo não seja claro, pois depois volta a bater na tecla dos direitos humanos, e fala mesmo de uma reacção da igreja, esta história parece ser um caso de orgãos de comunicação social a tentarem arranjar controvérsia para vender papel. Nada a que não estejamos habituados deste lado da fronteira.
quinta-feira, abril 27, 2006
Chimpanzés cidadãos de Espanha
Por CDG laço permanente
Etiquetas: Antropologia
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6 comentários:
Dar direitos iguais a um chimpanzé não é, de certa forma, impossível? Veja, por exemplo, o Artigo 4 da declaração universal dos direitos humanos:
"Ninguém será mantido em escravidão ou servidão; a escravidão e o tráfico de escravos estão proibidos em todas as suas formas."
Chimpanzes de apresentação (que são comuns no Brasil, ao menos) trabalham por comida. O que, de certa forma, os enquadra num caso de escravidão.
Tería, então, de existir - além de todos os direitos trabalhistas - a previdência dos macaquinhos.
Descobri o seu site há um mês e tenho lido os seus posts com entusiasmo, especialmente sobre paleontologia.
Decidi escrever um comentário a respeito deste aqui, pois para mim as considerações éticas sobre o nosso relacionamento com as outras espécies sencientes estão longe de ser uma questão absurda como quer sugerir este post. A observância do princípio moral da igualdade de consideração não apresenta necessariamente nenhuma incompatibilidade com o pensamento científico.
Quanto ao projeto que visa conferir direitos aos grandes símios, leia este pequeno ensaio de Gary Francione: http://garyfrancione.blogspot.com/2006/12/great-ape-project-not-so-great.html
Espero que ele provoque ao menos uma pequena mudança de percepção.
Mas o seu site não deixa de ser sensacional e muito necessário.
Parabéns e vida longa para o "Cais de Gaia"!
Cláudio Godoy,
São Paulo, Brasil
A mim todas as igualdades entre humanos e animais chocam-me um bocado porque acabam sempre por desaguar em coisas perversas. A parte da equiparação aos "incapacitados mentais da nossa espécie" iria causar sofrimento a essas pessoas e às suas famílias. As intenções seriam boas mas na práctica não se estaria a dar tanto humanidade aos símios como simbolicamente a retirá-la a algumas pessoas que com maior ou menor dificuldade conseguem apesar de tudo integrarem-se na nossa sociedade.
É óbvio que como seres "quase humanos" defendo que os símios devem estar num patamar especial, mas deve evitar-se compará-los a grupos de pessoas. Estou de acordo com a não utilização como cobaias, nem em espectáculos.
De qualquer forma se viu a minha contribuição mais recente sobre o Ébola apercebeu-se que as perspectivas não são animadoras. Infelizmente tudo indica que o destino dos grandes símios é a extinção a breve prazo na natureza.
A tão propalada superioridade (no sentido lato) dos seres humanos em relação aos animais não humanos nada mais é do que uma construção social, sem qualquer fundamento científico. Na verdade, esta concepção reveste-se inteiramente de fundo religioso, e parece que até mesmo alguns dos maiores entusiastas do pensamento científico ainda não se libertaram completamente dessa idéia, o que deveriam ter feito pelo menos desde a aceitação do conteúdo da "Origem das Espécies".
Do mesmo modo que qualquer ser humano normal é capaz de atingir um nível de pensamento abstrato jamais sonhado pelo mais inteligente dos chimpanzés, dificilmente o primeiro demonstrará maior agilidade ao subir em uma árvore do que este último. Boa parte dos animais não humanos são infinitamente superiores ao homem em termos de agilidade, faro, audição, visão, resistência e até mesmo de memória em alguns casos. A nossa pretensa "superioridade" decorre do fato de que a nossa capacidade cognitiva nos transformou nas criaturas mais poderosas da face da Terra (com algumas exceções, pois volta e meia aparece uma forma de vida ainda mais "poderosa", como foi o caso do vírus da gripe espanhola, para não mencionar o do vírus da AIDS e o do Ébola - ironicamente as criaturas mais "primitivas"). E devido ao nosso poder esmagador, acreditamos ter carta branca para tratar os animais não humanos como bem nos aprouver. No entanto, a justiça, do ponto de vista moral, não deve decorrer unicamente do poder(sem esquecermos que a moralidade também não passa de uma construção social). E nem do fato de sermos agentes morais, pois neste caso, seres humanos com grave retardamento mental não teriam direitos.
Do ponto de vista dos defensores dos "direitos" dos animais não humanos, existe apenas um único direito que deve ser estendido a todas as criaturas sencientes (capazes de sofrer e de ter prazer) independentemente de seu status taxonômico: o direito fundamental de não serem tratados como propriedade, ou seja, como um MEIO sem qualquer valor intrínseco para satisfazer os FINS dos seres humanos, sejam estes nobres, fúteis, triviais ou inconfessáveis. É neste único sentido que deve haver uma equiparação entre os animais humanos e não humanos. A sociedade atual já aplica este direito à todos os membros da espécie humana, independentemente do grau de retardamento ou de genialidade de cada um de nós. Não vejo porque a extensão deste direito às outras espécies capazes de sofrer me diminuiria como membro da espécie humana. Na verdade, me sinto aviltado por pertencer a uma espécie que, apesar de ser capaz de fazer escolhas morais e de sentir empatia pelo próximo, seja ele humano ou não humano, procura justificar todas as atrocidades perpetradas contra os membros de outras espécies em nome de uma superioridade que não mais se sustenta do ponto de vista racional.
Cláudio Godoy,
São Paulo, Brasil
Cláudio Godoy teceu um dos melhores comentários que já li a respeito do tema.
E digo mais essa distinção que fazemos de Animais racionais x animais irracionais me soa o mesmo que uma ave dizer-se livre x preso, é o mesmo que as aves se acharem seres móveis em comparação aos outros seres que segundo elas seriam imóveis. A cobra diria que a ave não é tão livre quanto ela para chegar em determinado ponto entre os galhos, as gramas, as folhas... e não está preso ao destino de ir atrás de seu alimento, pois a presa vai até a cobra. A cobra poderia muito bem separar os livres dos não livres com base na sua agilidade enquanto rasteja pelos esgueiros mundos terrestres e arbóreos.
Ora, cada ser tem sua própria natureza, seu próprio mundo. Não dá para comparar uma toupeira estrela onde a imagem do seu mundo é através do tato, onde ela é a única espécie de mamífero a sentir o cheiro da água, onde ela é capaz, pela vibração da terra, a antever a ação de sua presa.
Não dá para comparar aos morcegos, aos carrapatos que tem receptores sensoriais para luminosidade e escuro, e pra captar o dióxido de carbono...
São mundos completamente diferentes, não dá para dizer que Messi é melhor do que Lewis Hamilton, um está voltado pras as questões que envolvem o mundo do futebol, outro está voltado pras questões que envolvem o mundo automobilístico.
O homem está preso na sua mente simbólica, e a mente moral é da nossa natureza. Os animais não humanos poderiam muito bem nos chamar de esquizofrênicos.
Mas o fato é que não existe nada escrito nas estrelas, nas pedras, ou em alguma divindade dizendo que nós somos superiores. Nós só somos mais uma das infinitas espécies que vivem nesse planeta.
E a nossa moral não é com base em ser seres humanos ou não (mesmo porque nenhuma espécie deixa de se matar por conta de ser da mesma espécie, muito menos o homem), pelo menos não deveria ser. Mas sim com qualidades sencientes, capacidades de sofrer e de se agradar, sim com base no princípio do RESPEITO, respeito que assim como eu mereço só pelo fato de sentir dor e prazer, todos que tem algum sentimento merecem ter.
Afinal, Cláudio, você tem e-mail para que possamos conversar? gostei muito do seu texto, acho que hoje em dia esse dialetismo "protetores dos animais" x "defensores da nossa cultura" tem-se perdido muito o foco, distorcendo os
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