quinta-feira, abril 13, 2006

Tomai meus filhos, comei da minha carne

Não se trata de nenhuma incursão por terrenos religiosos, nem tem a ver com o feriado religioso que atravessamos. A criatura de hoje é uma mãe que vai ao extremo de alimentar os filhos com a própria carne. A coisa com aspecto de minhoca que se vê ao lado, a Boulengerula taitanus, é na verdade um vertebrado, de um grupo de anfíbios designados por cecílias. As cecílias têm hábitos fossoriais e são predadores eficazes que vivem nas zonas húmidas de África e América do Sul. No Brasil são chamadas de cobras-cegas, e assemelham-se às "cobras-cegas" que se encontram em Portugal, embora não sejam a mesma coisa. As cobras cegas portuguesas são répteis, mais exactamente anfisbenídeos, e a parecença é resultado da convergência em função de um modo de vida semelhante. A espécie Boulengerula taitanus intrigou os cientistas devido ao facto de as fêmeas com crias apresentarem um tom de pele diferente das fêmeas sem crias. [... ler mais]

Para além disso, as crias desta espécie apresentam uma boca cheia de dentes, que se mostra na imagem abaixo.

O pequeno traço que define a escala no canto inferior direito corresponde a 30 micrómetros. Estes dentes são bastante diferentes dos dentes dos adultos, parecendo-se com pequenos ganchos, como se pode ver na ampliação à direita. Outras espécies de cecílias têm dentes especializados enquanto jovens, mas essas espécies são vivíparas. Nessas espécies os dentes são utilizados pelas crias para rasparem o oviduto da mãe, que possui uma camada especial de células das quais as crias se alimentam (ref1). Ora a Boulengerula taitanus é uma espécie ovípara, e os cientistas pensaram que, já que as crias não comiam a carne da mãe a partir do interior, talvez o fizessem do exterior. Para isso recolheram alguns exemplares que estudaram no laboratório. O resultado desse estudo de Alexander Kupfer e colegas é descrito num artigo na Nature (ref2). Numa tradução livre do resumo:

Apesar do crescimento inicial e desenvolvimento da maioria do animais multicelulares depender das provisões de vitelo, há muitas e variadas formas pelas quais os animais fornecem um investimento adicional ou alternativo aos seus descendentes.

O vitelo é a parte dos nutrientes num ovo, aquilo que vulgarmente se designa por gema.
Fornecer nutrientes adicionais à descendência deveria ser favorecido pela seleção natural quando o aumento de aptidão dos jovens contrabalança qualquer redução correspondente na fecundidade. Formas alternativas de alimentação podem permitir aos progenitores retardar ou redirecionar o seu investimento. Relatamos aqui uma forma notável de cuidados parentais e o mecanismo de transferência de nutrientes entre progenitores e descendência num anfíbio ceciliano. Boulengerula taitanus é uma cecília ovípara de desenvolvimento directo, cuja pele é transformada nas fêmeas com crias por forma a providenciar uma fonte rica em nutrientes para a descendência em desenvolvimento. Esta forma de cuidados parentais fornece um estádio intermediário plausível na evolução da viviparidade nas cecílias. Aquando da independência, a descendência das cecílias dermatróficas vivíparas e ovíparas são relativamente grandes, apesar de lher ter sido fornecido pouco vitelo. A dentição especializada das cecílias que se alimentam da pele (dermatófagas) podem constituir uma pré-adaptação para a nutrição fetal nos tecidos do oviduto das cecílias vivíparas.

Para terminar nada melhor que mostrar alguma esfomeadas pequenas cecílias a alimentarem-se da pele da sua extremosa mãe.


Referências
(ref1) Parker H.W. et al. (1956). VIVIPAROUS CAECILIANS AND AMPHIBIAN PHYLOGENY. Nature 178 250-252.
(ref2) Alexander Kupfer, Hendrik Müller, Marta M. Antoniazzi, Carlos Jared, Hartmut Greven, Ronald A. Nussbaum and Mark Wilkinson (2006). Parental investment by skin feeding in a caecilian amphibian. Nature 440, 926-929. Laço DOI.

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